sábado, 15 de setembro de 2012

FALTA DE OPÇÃO, ELITES E DISCURSO COMPETENTE

                                                                                      Benedito Carvalho Filho
                                                                                      Publicado no Jornal Pessoal nº 520, setembro de 2012, publicado em Belém do Pará, onde sou Ombudsman atualmente.

O Jornal Pessoal nº 519, da 2º quinzena de agosto de 2012, oferece ao leitor matérias que provocam reflexões, mesmo discordando delas. A primeira Belém sem opção repete questões que vêm sendo reiteradas nos diversos números do jornal: a eterna ausência de candidatos com perfil positivo capaz de administrar um município, segundo o jornalista, “problemático, marcado pela violência e a criminalidade em geral, o subemprego, péssimos índices sociais, baixa arrecadação e desafios consideráveis”. Pergunta o jornalista: “Por há tantos pretendentes querendo assumir a administração desse município”? Que interesse os move?
A primeira resposta que nos vem à mente para decifrar esse enigma é a ambição, esse desejo insaciável e inescrutável que move o homem na busca do poder, que, segundo velho psicanalista Otto Rank, é muito mais forte do que a sexualidade teorizada pelo seu contemporâneo, Sigmund Freud.
O poder transforma o individuo, cria monstros, capachos, demagogos e estadistas, acolhe oportunistas muito pouco interessados no que se chama “bem comum”, essa palavra mágica que diz tudo e não diz nada. Narcisismo e política andam juntos, não só para garantir a imortalidade imaginária como para envaidecer o ego de personagens insaciáveis. Ou, frequentemente, como um meio de enriquecer e levar vantagem.
No Pará não é diferente. A carência de lideranças realmente comprometidas com o bem público é um fato que vem preocupando o jornalista de longas datas, como podemos perceber nas várias matérias publicadas no Jornal Pessoal. Parece, às vezes, uma voz clamando no deserto. Um deserto de idéias, polêmicas e debates, fazendo com que a política se transforme numa repetição de atos e gestos já vistos, um desfile de vaidades; sempre os mesmos personagens, embalados e recriados por marqueteiros que cobram caro pelo espetáculo mediático. Bem vindo, portanto ao deserto do real.
Mas é possível questionar e relativizar a afirmação de que Belém está sem opção. A população belenense é composta por uma população diversificadas, separada pelas barreiras de classe, de gostos, de capital cultural e possibilidades de mobilidade social. Cada uma dessas camadas tem sua percepção do que significa uma eleição e escolhe seus candidatos de acordo com seus valores, o que tem muito a ver com a compreensão do que seja a política e a relação que esse cidadão estabelece com o seu cotidiano.
Pode ser que, sem opções, esteja o cidadão mais consciente, parte da reduzida elite informada sobre o que se passa no seu país, os que têm discernimento crítico sobre a realidade em que vive. Arrisco em afirmar que a grande maioria, os que vivem nas áreas de conflagração, segundo a expressão do jornalista, possuem outra percepção do que significa o jogo político.
Ao entrarmos nessas zonas de conflagração, realmente ficamos perplexos e assustados com esgarçamento do espaço urbano, a ausência da idéia de direito, justiça e igualdade, (a lei da selva, com afirma), assim como as estratégias de sobrevivência dos seus moradores, que buscam na informalidade a sobrevivência, prestando serviços onde aparecerem, e, não poucas vezes, atuando na ilegalidade com essas virações.
Como nos mostrou Hannah Arendt no seu livro A Condição humana (Editora Forense) quem vive no limiar da sobrevivência não pensa a vida como projeto. No limite os cidadãos nessas condições têm suas opções limitadas ao escolherem seus candidatos. Vão estar, na verdade, subordinados aos seus interesses imediatos.  Por isso aceitam um prato de comida, um milheiro de tijolo, uma camiseta e outra coisa qualquer em troca do voto.
Será que todas as pessoas que vivem na cidade são cidadãos?  Formalmente, todos têm direito à cidade, como afirma a Constituição. Mas, na prática, as cidades como constata Lúcio Flávio, são reflexo do abuso do poder e do capital, liberdade franqueada para a especulação, para a ação privada de grandes negócios, onde vence o mais forte, em geral o que tem dinheiro suficiente para impor sua vontade ou entrada livre para os bastidores do poder institucional. Por isso a miséria convive com a opulência, esta não dando a mínima para aquela, como afirma.
Afirma o jornalista: “Enquanto uma elite econômica se orienta pela diretriz do lucro rápido e a qualquer preço, a elite política se enriquece nos esquemas de poder que se alternam apenas na forma. Não há qualquer novidade no horizonte: nem de pessoas nem de programa. A rigor, programa não há.”
O uso do termo “elite” me fez pensar: o que seria uma elite? Olhando para Belém, e o Pará, em particular, perguntei para mim mesmo: quem faz parte da elite paraense? A elite local está no poder? Como considerar a elite política e a elite econômica, a que se refere o jornalista?
Elite, como reconhece a sociologia, é um dos termos genéricos usados em estudos descritivos quando se refere aos grupos privilegiados, como os políticos, empresários e também aos intelectuais, sacerdotes, bispos e outras camadas sociais. O sociólogo Gaetano Mosca nos mostra que esse conceito deveria abranger os ocupantes das posições mais elevadas numa hierarquia de comando. Mills chamou de “elites no poder”, formando grupo nem sempre unificado e coeso.
No Pará, por exemplo, será que as elites empresariais se sentem representadas pela elite política? Possuem uma consciência de seu papel na sociedade e desejam tornar a sociedade mais moderna, com tudo o que significa ser moderno enquanto processo civilizador, no sentido burguês da palavra? Onde seus interesses convergem? Que interesses os move?  
Talvez, para entender os entrelaçamentos entre a elite política e a elite econômica paraense será preciso compreender como os seus interesses se associam em situações concretas, como numa eleição, por exemplo. Será que essa elite está sem opção para as próximas eleições municipais? Ou será que esse estado de coisas, essa cumplicidade entre políticos medíocres e empresários não é funcional para a manutenção do status quo?
Não se trata de possuir um programa, ou procurar um líder providencial, com capacidade de aglutinar forças e conduzir racionalmente o Estado na direção correta. Como foi possível perceber nas discussões sobre a divisão do Estado, os interesses em jogo são bem visíveis, como mostraram as várias reportagens e análises do Jornal Pessoal durante esse período.
 A matéria chamada Justiça para a duplicação da ferrovia mais do que revelar a luta entre David e Golias nos sertões do Maranhão mostra o quanto o Pará é colonizado enquanto brinca de fazer política. Hoje, como nos mostra a reportagem, somos fornecedores de commodities para a China (que compra 60% do ferro) e o Japão (20%). O que fica no Pará, que cresce como o rabo de cavalo (para baixo), como diz com freqüência o jornalista, é disputado ferrenhamente pelos grupos dominantes locais que brigam pelas fatias dos recursos públicos a serem aplicados em obras, sempre sujeitas às práticas das licitações duvidosas que enriquece um número reduzido de pessoas.
Assim é a Belém que vai completar 400 anos de fundação em 2016. Talvez fosse mais correto dizer 400 anos de colonização, se formos um pouco rigorosos na análise histórica dessa cidade, da região e do país em que vivemos (a matéria do JP 515, Podemos deixar de ser colônia, reforça esse argumento).
 A história do Pará não é diferente da história desse país, que carrega o peso de ser um dos mais injustos do mundo, aquele em que a distribuição da renda é a pior; onde a injustiça não decorre da pobreza, mas sua péssima má distribuição.
Na verdade, carregamos o peso da colonização, do trabalho escravo durante séculos (afinal fomos o último país a terminar a escravidão), marca que se projeta sobre nós. Nos tempos atuais, em pleno século XXI,  o que vemos é uma verdadeira máquina de gerar desigualdades e injustiças com essa financeirização desenfreada, com a hegemonia do capital especulativo, endividando o povo enquanto o Estado usa maior parte dos impostos que arrecada para pagar juros da dívida externa, isto é, transferindo para o setor financeiro, que comanda a economia mundial.
 A isso se soma o crescente desinteresse pela política, onde muitos cidadãos parecem ter asco, pois ela é associada à política partidária, aos acordos espúrios e à corrupção. O desprezo pela política talvez seja, por outras vias, um ato político. Quem sabe?  Quem ainda recorda o rinoceronte Cacareco, do Zoológico de São Paulo, que obteve cem mil votos nas eleições de 1959 para a Câmara Municipal. Sua “candidatura” foi lançada por um jornalista que se dizia decepcionado com a atuação dos homens públicos. Em plena democracia de hoje os rinocerontes são outros.
O voto para um amplo número de pessoas, não só de Belém, como de outras regiões do país, ainda é uma idéia abstrata, como a  cidadania. Como diz uma estudiosa do voto no Brasil: ao longo dos mais de quinhentos anos de nossa história, ele foi colocado à disposição do cidadão e introduzido na rotina eleitoral em meio às tentativas incertas das elites políticas para impor outro princípio legítimo que permitiu aos governantes assegurarem de outro modo a obediência dos governados. (Ver Aprendendo a Votar, Letícia Bicalho Canêdo, in História da Cidadania, Editora Contexto, p. 518)
 Mas, como fazer com que esse novo cidadão, recém saído do escravismo, o sujeito sem qualidades, de repente passassem a acreditar ser um indivíduo independente e igual em qualidade como todos os outros?
Quem sabe se pesquisas (e não simplesmente sondagens) feita pela Ciência Política nos ajudaria compreender melhor as opções dos cidadãos belenenses? Isso, certamente, no ajudaria compreender as razões das escolhas feitas, tanto por setores da população mais aquinhoados, como os residentes nas áreas conflagradas. Possibilitaria compreender a lógica do voto, os seus condicionamentos, antes de fazer generalizações apressadas.
É verdade que os atuais candidatos não correspondem aos nossos ideais democráticos, mas penso que não sairemos do lugar se persistirmos raciocinando com um ideal de democracia vivido na velha Atena grega, que, diga-se de passagem, nem era tão perfeita, pois o escravos e a mulheres estava dela alijados. A democracia pode ser pensada como um “valor universal”, mas ela procura se concretiza dentro das condições históricas concretas de uma dada sociedade.  
A política é um aprendizado lento, principalmente em nosso país que experimentou muito pouco a democracia, que só participa depositando o seu voto na urna durante as eleições sem compreender o significado e o peso do seu voto.
O historiador José Murilo de Carvalho, no seu livro Os bestializados, O Rio de Janeiro e a República que não foi (Editora Cia das Letras), já observava o comportamento do eleitor em épocas anteriores de nossa história que ainda hoje persiste:
“Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande maioria de fluminenses, o poder permanecia fora do alcance, do controle e mesmo da compreensão.Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia com expectador ou, no máximo, como figurante. Ele se relacionava com o governo seja pela indiferença aos mecanismos oficiais de participação, seja pelo pragmatismo na busca de empregos e favores, seja, enfim, pela reação violenta quando se julgava atingido em direitos e valores por ele considerados extravasantes da competência do poder. Em qualquer desses casos, uma visão cínica e irônica do poder, a ausência de qualquer sentimento de lealdade, o outro lado da moeda da inexistência de direitos.”
É nesse caldo de cultura política que, em parte, vivemos até hoje. Enquanto pequena parte de nossa classe dominante se locupleta, o que vemos é a indiferença, onde o povo observa o que se passa como expectador, como naquele quadro que está no Museu do Ipiranga, em São Paulo, onde, no canto da tela, vemos um carroceiro espantado sem saber o que estava se passava.
A matéria Aula magna do Mensalão, sobre a Ação Penal 470, o chamado “mensalão,” foi uma magnífica aula, segundo Lúcio Flavio, principalmente para quem estuda Direito, os futuros doutores (e, diga-se de passagem, os que estão nas poucas e boas Faculdades de Direito desse país, ou os versados no assunto).
Mas, por que o ex-presidente Lula teria que participar e compreender aquele emaranhado jurídico? Por essa lógica não deveriam participar todos os ex-presidentes do país ainda vivos, já que o JP deseja que esse fosse um programa obrigatório para todos os homens públicos, que certamente cochilariam como o Barbosa e Mendes retratado na grande imprensa?
JP, em vários números, não deixa de alfinetar o ex-presidente operário quando ironiza: “Mais uma vez, confiante no seu carisma e na sua individualidade prodigiosa em um universo de sete bilhões de almas sem o mesmo brilho, o ex-presidente dá péssimo exemplo. Se sua consciência não lhe obrigasse a acompanhar o julgamento, sua condição especial de cidadania lhe impunha essa tarefa. Ele aprenderia, ainda que precisasse, antes, aprender a aprender.”

Isso me faz pensar na crítica do chamado “discurso competente”, o do “especialista”, possuidor de um suposto saber que aceita tacitamente a incompetência dos outros sujeitos sociais, reduzindo-os à meros objetos e invalidados como seres sociais e políticos.   
Não é isso que faz certos setores da elite brasileira e seus os jornais da chamada grande imprensa?  Não é isso que se tem feito com o ex-presidente operário, que “não sabe falar inglês” e outras “pérolas” que aparecem nos comentários diariamente cheios de rancor, ódio e preconceito?  
Mas esse é outro assunto.

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