sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O MUNDO INVISÍVEL DO TRÁFICO

                                    



                                                         
                                                                         Benedito Carvalho Filho
                                                                         Sociólogo, publicado
                                                                         No Jornal Pessoal, Belém-PA

O Jornal Pessoal nº 525, da segunda quinzena de novembro oferece aos seus leitores dados para refletir sobre a violência no país e na Amazônia. No ranking das 50 cidades mais violentas do mundo, segundo a pesquisa feita por uma organização não governamental do México chamada Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, Belém é a 10ª cidade mais violenta do mundo, entre as 50 relacionadas na pesquisa.
Logo em seguida, no mesmo número do JP, na página 3, temos duas longas páginas na matéria chamada “O mundo do crime no mundo da lei”, onde o jornalista tece longo comentário sobre o livro de Marina Magessi, Duro na queda, publicado pela Editora Objetiva. Trata-se de um relato dos 18 anos de uma pessoa que foi uma autoridade na polícia no Rio de Janeiro.
Ao concluir a leitura dessas duas matérias que o jornal ofereceu ao público não pude deixar de me fazer algumas interrogações:
Que relação existe, por exemplo, entre o fato de Belém ser a 10ª cidade mais violenta do mundo e o tráfico de droga, do qual o Rio de Janeiro, com suas favelas e seus líderes narcotraficantes, constitui o cenário mais visível? 
Por que a violência vem aumentando no Brasil e no mundo e que relação haverá entre esse crescimento e o aumento da corrupção, da lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas, cada vez mais sintéticas e que movimentam milhões de dólares?
Por que a violência assustadora em São Paulo neste momento em que policiais e traficantes se confundem e nos faz ver que a luta não é entre mocinhos e bandidos, como quer nos fazer crer a política repressiva do governador do Estado, que recentemente viu cair seu Secretario de Segurança?
Por que o Brasil tornou-se o país de elevado consumo de cocaína e maconha? Por que a criminalidade dos potentes elegeu o Brasil – país que paga as taxas de juros mais elevadas do planeta – como lugar no qual o dinheiro é multiplicado?
Por que – e de que forma – o dinheiro dos poderosos, sem origem, vai para os paraísos fiscais e retorna para ser investido, em nome de empresas offshore?
Que mãos invisíveis no Brasil atuam nesse mundo invisível do narcotráfico e quais seus personagens, que raramente aparecem nas notícias da mídia nem nos inquéritos policiais?
Ao ler os livros de Argemiro Procópio, O Brasil no mundo das drogas (Editora Vozes, 1999) e de Alessandra Dino e Wálter Franganiello Maierovich chamado Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa, (Editora Unesp) chegaremos à dramática conclusão de que o que vemos e sabemos sobre esse mundo é quase nada. Talvez seja essa a razão de “ninguém se espantar, se indignar nem reagir”.
Não é possível se espantar e se indignar com aquilo que não se conhece e que não aparece nas telas da mídia e em matérias jornalísticas de outros veículos de informação para o grande público. O mundo das drogas é o mundo do silêncio, da cumplicidade, no qual saber muito pode custar a própria vida. É o quer acontece diariamente nas cidades amazônicas, como Belém e Manaus, onde todo dia são assassinados pequenos comerciantes de drogas, devedores nesse mercado subterrâneo, onde a vida não vale nada. 
Por trás da venda de drogas ao consumidor, que concentram os fabulosos capitais do narcotráfico, existe uma economia invisível, onde lucros fabulosos são lavados na economia formal, como nos mostra Argemiro Procópio no seu livro; onde a Amazônia (colombiana, peruana, boliviana e brasileira, ligadas à rede mundial) desempenha um papel fundamental. Uma parte vai para o “consumo doméstico” no país e outra é exportada para a Europa e para os Estados Unidos.
Mário Magalhães, no pequeno livro chamado Narcotráfico, publicado pela Publifolha, em 2000, revela os dados sobre a economia do narcotráfico no Brasil.
Diz ele:
“Foi na década de 90 que o Brasil se consolidou como o maior entreposto da droga enviada da Colômbia (fabricante de no mínimo 80% da produção mundial) para o EUA e a Europa. É o maior produtor de éter e acetona da América Latina. Essas substâncias são utilizadas na produção do cloridrato de cocaína, a dita ‘cocaína pura’”.
O governo da Colômbia afirma que 20% do fornecimento dos dois produtos químicos sai do Brasil. A fabricação de cocaiana em território brasileiro é muito pequena, apesar de haver plantação de epadu, uma variedade de coca, na Amazônia.
A única droga ilícita produzida em larga escala no território brasileiro é a maconha – diz ela. O resto vem de plantações no Paraguai. Cocaina, crak, heroína (em pouca quantidade), anfetaminas e metanfetaminas (como o ecstasy, droga sintética popular entre clubbers) provêm na quase totalidade do exterior.
Para Magalhães, como o narcotráfico se espalha subterraneamente, em organizações de caráter transnacional, multinacional do crime, é difícil saber com precisão muitos dados. Mas, citando dados da Justiça dos Estados Unidos, um procurador de lá afirma que o narcotráfico no Brasil fica com 5% a 10% do bolo mundial. Considerando os US$400 bilhões que o comércio de droga globalizado envolve por ano, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), a fatia nacional iria de US$ 20 bilhões a US$ 40 bilhões.
E faz a contabilidade:
“Com os US$ 20 bilhões (o equivalente a R$ 36 bilhões em maio de 2000), é possível comprar na planta 450 mil apartamentos de três quartos do Plano 100 em São Paulo, 2.320.185 carros Gol Special ou 270 milhões de cestas básicas na capital paulista”.
O espaço para comentar é pequeno. Esse tema levantado pelo JP é importantíssimo e mereceria estudos e debates mais aprofundados. O que o artigo constata é infinitamente pequeno. A Amazônia não é movida pela exportação de minério e o agronegócio. O comércio invisível das drogas movimenta o mercado informal da região, dá emprego para antigos e novos agricultores, com a decadência da agricultura no interior tornando-a cada vez mais inexpressiva.
Hoje, como diz Argemiro Procópio no seu livro, a economia do crime não é movimentado por marginais, mas por novos personagens, como mulheres, crianças e pessoas que jamais entrarão no mercado formal. Quem circula por Manaus sabe que um imenso número de pessoas sobrevive desse comércio. Não por acaso os shoppings centers vivem abarrotados de novos consumidores, mesmo aquele que não recebem bolsa família.

O INCÊNDIO NA FAVELA SÃO JORGE: “É A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, ESTÚPIDO!”





                           
Benedito Carvalho Filho
Sociólogo, professor da UFAM 
 

O mês de novembro de 2012 terminou com uma tragédia que abalou centenas de moradores da cidade. Na manhã nublada do dia 27 de novembro muitos moradores podiam avistar de longe uma grande e sinistra nuvem negra subindo em um dos pontos da segunda maior cidade da região Norte do país. De onde viria aquela fumaça escura? Um incêndio em alguma casa comercial, algum Shoppings Center? – perguntavam.  
Trafegando por uma das avenidas mais movimentadas da capital amazonense naquela manhã chuvosa, em meio a um trânsito caótico na  Av. Constantino Nery, uma das artérias que liga o resto da cidade ao Centro, era possível perceber que algo de anormal estava acontecendo. A avenida estava entupida de veículos, e, rapidamente, surgiam viaturas do Corpo de Bombeiro, ambulâncias, carros policiais que disputavam espaços com os carros particulares que impediam a chegada ao local do sinistro.
Os transeuntes que circulavam naquela parte congestionada da cidade observavam aquela gigantesca fumaça negra, que parecia um tornado, e percebiam que, pela dimensão das chamas, um grande incêndio estava ocorrendo. Muitos tentavam sintonizar os rádios de seus veículos em busca a informações mais detalhadas, mas já foi o tempo em que o jornalismo cobria os acontecimentos de forma imediata como se fazia nos velhos tempos, mesmo quando não existiam as parafernálias sofisticadas que têm hoje os meios de comunicação, porque os antigos repórteres de rua sumiram das redações depois do aparecimento da Internet. Também, as empresas jornalísticas se retiraram das grandes coberturas de rua, enviando repórteres para o coração do furacão, mesmo com todos os riscos. Era a imprensa à serviço da sociedade, cobrindo os acontecimentos e sentindo a dramaticidade da situação em cima da hora, sempre a serviço do distinto público.
As chamas atingiram 547 casas na chamada “comunidade” (uma nova denominação para caracterizar as favelas no Brasil) batizada com o nome de Arthur Bernardes, o brasileiro de Viçosa, Minas Gerais, advogado, presidente do Brasil entre 15 de novembro de 1922 a 15 de novembro de 1926.
Foram quatro longas (e sofridas) horas, inesquecíveis para os moradores do lugar.  O fogo atingiu 30 metros de altura, destruiu casas e causou medo e pânico nos moradores que viram seus pertences serem rapidamente destruídos apesar dos esforços dos 130 membros do efetivo de bombeiros e da solidariedade de pessoas que saíram de seus veículos e foram socorrê-los.
As autoridades afirmaram que a causa principal da tragédia foi a rede de fios elétricos trançados nos postes, ligações clandestinas chamadas “gatos”, tão comuns nas favelas brasileiras, principalmente nesses tempos desenfreado em que as classes populares têm acesso ao crédito e enchem suas frágeis casas de eletrodomésticos, transformando aqueles lugares num verdadeiro pavio de pólvora prestes à explodir, fazendo com que o fogo se  espalhe pelos casebres da favela,  como tem acontecido com frequência nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro e aqui em Manaus.
 Segundo informações oficiais divulgadas nos jornais da cidade, existem quase 9 mil ligações clandestinas, que, se considerarmos cinco pessoas residindo numa casa, perfaz um total e 450 mil pessoa vivendo sob risco de incêndio, como aconteceu na Favela São Jorge.
Assim, a cidade, que vem crescendo num ritmo avassalador nas últimas décadas, sem infraestrutura e planejamento urbano, transforma-se num lócus de tragédias anunciadas sem que medidas preventivas sejam tomadas, como tem acontecido em todo o país. 
Mas existem outros “gatos” não eletrificados rondando e pondo em risco os moradores desses lugares. Francisco Palheta, líder comunitário, numa entrevista, afirmou que o incêndio estava programado e que outras tragédias já ocorreram no Igarapé do Mestre Chico, na Cachoeirinha e na Comunidade Bariri, ambas programadas para as obras do PROSAMIN,” conforme afirma no jornal A Crítica, 28 de novembro de 2012.
Uma tragédia anunciada? Estariam alguns os moradores das favelas espalhando a destruição de seu local de moradia com a intenção de receber o dinheiro da indenização?
A interrogação faz sentido, pois o governo começou a intervenção no dia 12 de dezembro de 2011. O cronograma está atrasado. Os moradores ainda não receberam o dinheiro das indenizações. As autoridades afirmam que a obra será concluída até o dia 5 de dezembro de 2013, quando 5,5 mil famílias serão retiradas das margens dos igarapés para a realização da obra. (jornal A Crítica, 28 de novembro de 2012).
O incêndio na favela Arthur Bernardes, no bairro de São Jorge, Zona Oeste de Manaus, de fato, foi um acontecimento traumático na vida da cidade. Gerou gestos louváveis de solidariedade por parte de diversos cidadãos que se deslocaram de seus empregos e de suas casas para ajudar o povo da favela nas horas difíceis, o que revela um sentimento humanitário, causando surpresa, porque muitos achavam que não mais existiam esses gestos cada vez mais raros nesses tempos cruéis em que vivemos.  
Por outro lado, uma contradição: junto com os gestos de solidariedade presenciamos ações deploráveis, como os saques por parte de oportunistas que, se aproveitando do momento, buscavam levar vantagem e roubar os pertences de pessoas tão próximas de sua condição social.
Infelizmente a rapinagem na sociedade em que vivemos espalha-se de forma desigual, mas com a mesma virulência, por todas as classes sociais nessa era sombria, onde pipocam escândalos por toda parte nessa época de jogatina do capital financeiro, onde predomina a idéia de que o importante é levar vantagem, como na Lei de Gerson.
São tempos de barbárie assumindo feição brutal e cruel, onde o importante é ter, consumir, mesmo que tenha que passar por cima do cadáver de seu irmão mais próximo, o que  nos faz descrer no ser humano. Banqueiros milionários e pobres coitados, nessa era de “vida para o consumo”, como denominou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, transformam as pessoas em mercadorias, onde as cidades passaram a ser espaços de medo e insegurança, onde a solidariedade é substituída pela competição, fazendo com que os indivíduos se sintam abandonados a si mesmos, entregues aos seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados. A corrosão e a dissolução dos laços comunitários nos transformaram, sem pedir nossa aprovação, em indivíduos “jure” (de direito); mas circunstâncias opressivas e persistentes dificultam que alcancemos o status implícito e indivíduos de fato. (Ver do mesmo autor Confiança e medo na cidade, Editora Zahar, Rio de janeiro).
 O grande risco, mesmo diante de uma tragédia como essa, é voltarmos para a nossa rotina e, com o tempo (não muito longo), “esquecermos” do acontecimento, reação muito conhecida quando nos sentimos impotentes para compreender o significado de um fato traumático em nossa vida. Evidentemente, não deixa de ser uma forma de negar o que passou, até que outra tragédia seja anunciada.
É a sobrevivência em tempos difíceis, onde gestos de solidariedade são rapidamente transformados em espetáculos da mídia para depois voltarmos à rotina dos massacres, pois a favela é sempre representada como o lugar da criminalidade, da violência, dos assassinatos, onde homens e mulheres aparecem como monstros, como afirmou Agamben, no seu livro Homo Sacer; o poder dos soberanos, como os homens “sem direitos”, os “matáveis”,. 
Será que o povo de Arthur Bernardes será lembrado daqui há dois ou três meses?  Sob que condições se encontram nesse momento, quando a festa de Natal se aproxima? O governo manterá o compromisso de fornecer o aluguel social, cesta básica e os objetos necessários prometidos aos desabrigados?  
ALÉM DA TRAGÉDIA
Seria lamentável que a tragédia na favela São Jorge, ficasse reduzida somente aos gestos de solidariedade a que nos referimos acima e não buscássemos elementos mais críticos e racionais para compreendermos o que se passa em nossa cidade, porque esse acontecimento não foi um fato esporádico nem um castigo divino trazido pelo acaso da vida. A tragédia que fez o fogo destruir 394 domicílios, desalojando adultos e crianças, e que o Secretário do governo Hermógenes Rabelo, afirma ser um dos maiores incêndio dos últimos tempos é obra do próprio homem.
Por isso é preciso perguntar: o que é hoje a cidade de Manaus? Para quem é feita essa cidade? Para uma maioria ou para uma minoria? Quais são as formas de viver, morar e morrer na cidade? A cidade tem crescido como e para quem? Seu crescimento é planejado?  Quem de fato se beneficia da cidade, de seu espaço urbano, da saúde, da educação e dos empregos? Manaus é uma cidade justa?
Algumas dessas perguntas não aparecem nos noticiários nem nos comentários dos chamados especialistas, onde certamente muitos nunca pisaram os seus pés numa favela, mesmo residindo nas suas proximidades.
Por que os moradores dessas chamadas “comunidades” utilizam-se dos chamados “gatos” nas suas residências? Qual a renda desses moradores? Eles têm condições de pagar a energia elétrica, a água encanada fornecida pessimamente (diga de passagem) pelo serviço público?
O que vai acontecer depois da revitalização do Igarapé de Cachoeira Grande, de onde serão retiradas 5,5 mil famílias, que custará 73.881.591,99 milhões, na intervenção que será feita em um trecho de 1,75 km, que se estende da Ponte da Av. Brasil até o Igarapé Nova Esperança, e se estenderá pelo Igarapé dos Franceses e da Cachoeira Grande (parte da 3ª etapa do PROSAMIN) conforme noticiou a imprensa?
Quem garantirá que essas áreas onde residem esses moradores não serão valorizadas depois que as obras de saneamento estirem concluídas? Não tem sido a lógica especulativa que tem predominando e que se repete na maioria das cidades brasileiras, onde o Estado entra com a infraestrutura, a terra é valorizada, o preço sobe, e as incorporadoras imobiliárias constroem torres e condomínios fechados?
É só observar a cidade de Manaus, hoje transformada num canteiro de obra, com seus apartamentos, condomínios fechados e lojas de luxo? Será que as pessoas que irão morar nas casas do PROSAMIN resistirão à especulação imobiliária?   Conseguirão subsistir nesses locais, pagando luz, água quando muitos nem emprego têm?
A urbanista Raquel Rolnik, uma profunda conhecedora das mazelas urbanas desse país já nos advertia: “É a especulação imobiliária, estúpido!” Uma especulação visível nessa era de domínio do capital financeiro; especulação monstruosa, que não leva em conta necessidades sociais básicas da maioria da população, pois vivemos num tempo em que a política, cujo objetivo é o bem comum, é esquecida em função dos interesses econômicos e privados. Uma política econômica movida pela lógica do mercado, onde a história de vida das pessoas não são levadas em consideração nos projetos urbanísticos, elaborados, muitas vezes, nos gabinetes dos tecnocratas, sem ouvir o povo, a sociedade, a principal interessada.
Um exemplo disso são os Planos Diretores, como o da cidade de Manaus, voltados para os interesses do mercado imobiliário e não para a população mais carente e necessitada. Ou seja, a cidade deixou de ser um território chave da modernidade e da urbanidade, importante para o desenvolvimento do processo civilizatório e tornou-se num espaço loteado, onde impera o domínio de grandes negócios privados, uma espécie de tabuleiro dos bancos e negócios para poucos.
 Nessa luta darwiniana pela existência, como exigir que seus moradores, inclusive, os mais pobres atuem como cidadãos civilizadas se a lei que impera é a do mais forte? Se olharmos de outra perspectiva podemos nos perguntar se o fato de alguns moradores saquearem seus próprios semelhantes não é, na verdade, a reprodução das práticas especulativas legitimadas pelos grandes quando ocupam e especulam os espaços das cidades?  
O que acontece na cidade é consequência das políticas urbanas e, junto com elas, a injustiça social que discrimina os pobres. A verdade não admitida pelas autoridades públicas, mas visível aos olhos de qualquer pessoa bem informada, é que as cidades brasileiras, dentre elas Manaus, que se orgulha de ser a cidade que mais cresce e que mais recebe imigrante, são inviáveis porque uma grande parte da população não cabe mais nela.
Não é por acaso, por exemplo, que a população mais pobre foi morar na beira dos igarapés que circundam Manaus, sujeitas a incêndios, como esse que aconteceu recentemente na favela São Jorge, e inundações de seus infectos igarapés, quando as águas do rio Negro sobem no período das freqüentes cheias. 
Não podemos esperar que o Estado, que tenta sempre aparecer para a sociedade como neutro e à serviço  população mais pobre, seja capaz de intervir politicamente, criando as condições para a existência de uma política habitacional mais justa e voltada para os interesse da maioria. O Estado e os governos federativos e municipais na verdade governam as cidades em função dos interesses dos especuladores. Não estão preocupados com os problemas estruturais, com o planejamento e assim vão administrando a cidade e tentando resolver problemas pontuais, sempre pensando nas próximas eleições. Estender a rede elétrica e de água rende  votos, passar uma camada de asfalto numa rua, sabendo que brevemente será destruído, também rende votos e assim vai funcionando a cidade, na base do improviso, sem políticas públicas consistentes, porque nem mesmo a União sabe o que fazer com as cidades brasileiras.
É por isso que muitos bons administradores, que possuem uma visão mais competente não ousam assumir um cargo de administração em uma cidade como Manaus que em 1970 tinha 800 mil habitantes e hoje chega na casa dos 2 milhões. Sabem que o problema é estrutural, o que implica não só mais verbas, mas planejamento estratégico, o que supõe a existência de um Estado capaz de enfrentar a lógica especulativa-financeira que hoje predomina.
Não há como lutar com os poderosos interesses econômicos se sociedade amazonense e seus habitantes não criarem espaços de debates e mobilização na sociedade civil independente do Estado, pois ele tem um poder de cooptação muito grande, principalmente porque o desenvolvimento urbano, o planejamento, saiu da agenda política depois do enfraquecimento do Ministério das Cidades.
O que fazer com um população empobrecida, que não teve outra alternativa senão invadir áreas não ocupadas em terras altas e depois nas encosta, nascentes de igarapés, barrancos, antigos depósitos de lixo e tantos outros lugares, como o local em que se encontra a favela São Jorge?
É sabido que a falta de planejamento da cidade está ligado a uma concentração fundiária. Não preciso circular muito na cidade para perceber como está sendo grande o processo de concentração das propriedades. Em Manaus existe um mercado imobiliário funcionando a todo vapor. Os jornais, as propagandas e outros meios de comunicação, anunciam a venda de apartamentos e prédios milionários, alguns com valores semelhantes aos imóveis na zona sul carioca, enquanto o Poder Público (Municipal e Estadual) afirma que quer incorporar a cidade real à cidade legal através dos assentos fundiários.
Qualquer pessoa que circule pela cidade pode perceber sem muita observação que a cidade não possui infraestrutura para receber o enorme fluxo de imigrantes que para cá se desloca do interior e de todas as partes do Brasil e até de outros países em busca de empregos no Distrito Industrial. Esse aumento brutal e acelerado da população, não previsto pelo Estado, tem causado um enorme impacto na vida cotidiana da cidade, com seu trânsito caótico, o aumento crescente da criminalidade e, sobretudo, a falta de infraestrutura como hospitais, postos de saúde, escolas e outros serviços essenciais capaz de atender a sua população.
Uma grande parcela da população que vem para essa “cidade repartida”, para usar uma expressão do jornalista Zuenir Ventura, quando se referia ao Rio de Janeiro, tem pouca instrução e preparo profissional e não tendo outra alternativa senão ir para o mercado informal.
Sabemos que hoje esse vasto comércio informal não é o mesmo dos anos 70 e 80, também conhecida como economia submersa, portanto, como se dizia na época, invisível. Hoje se sabe que sob essa invisibilidade submersa se esconde hoje todo um comércio clandestino de drogas, que envolve não só aquele antigo personagem que movimentava a marginalidade. Seus atores são novos, como tem mostrado as reportagens das páginas policiais dos jornais. São inocentes donas de casa, jovens desocupados, crianças e pessoas insuspeitas que jamais imaginaríamos fazendo parte do tráfico. Esse mercado é próspero e certamente movimenta hoje uma parte significativa da economia local.
Como explicar, por exemplo, o perfil da renda do amazonense que é baixíssima quando relacionamos com o alto consumo no comércio? Como explicar as redes de shoppings lotados diante de uma população tão pobre como é a de Manaus? 
A droga já é uma realidade e mobiliza uma parte da economia local, envolvendo não só as populações pobres, mas muita gente importante da cidade. Não é sem razão que os crimes ligados ao narcotráfico tem sido constante, e mereceria um estudo mais aprofundado.[1]
Como reconhece outra estudiosa da questão urbana no Brasil, Ermínia Maricato:
“São mais de vinte anos sem política pública de habitação, saneamento e transporte. Isso passa pelo neoliberalismo e pela década perdida. São políticas ligadas ao território e não basta distribuir a renda para resolver o problema urbano. Aqui tem de distribuir ativo, que é cidade, é terra urbanizada. A questão da terra é central na política urbana, pois ela é dominada por esse mercado restrito, elitista e especulativo.”



  


[1] Não podemos esquecer que a cidade de Manaus é uma das rotas importantes  do tráfico de drogas. Como descreve Mário Magalhães no seu pequeno livro chamado O Nercotráfico, Editora Publifolha, 2000, São Paulo, o “balé das drogas”, como ele assim denomina a rota do tráfico passa por dez rotas. “A carga vem do Peru e da Bolivia e entra por Cruzeiro do Sul e Brasiléia, no Acre. Na fronteira com a Colômbia, ingressa por Tabatinga, de barco, hidroavião ou avião pequeno, como o Cessna. Depois atravessa a Bolivia e passa pelo Paraguaia, de onde por Puerto Súarez, chegando a Corumbá, Mato Grosso. Vem da Colômbia e segue de barco ou hidroavião pelo Rio Negro. No Peru, navega pelo rio Javari. Da Colombia pelo rio Iça. Em seguida a droga alcança o Porto de Manaus e vai até Belém e Macapá, de onde segue pelo Atlântico até os Estados Unidos. Sai da Bolívia, passa por Juan Caballero no Paraguaia, e entra por Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Pra despistar as autoridades, a carga da Colômbia, entra no Brasil por Roraima, segue até Manaus e recomeça um trajeto que levará até a Guiana. De lá, é despachado para a Europa, o Caribe e os EUA Vinda da Bolívia, ingressa em Rondônia e segue em caminhões carregados de madeira, até os portos de Santos e Paranaguá (PR), de onde irá para o exterior.” Esse balé, descrito em 2000, deve ter se alterado inúmeras vezes devido à repressão, mas é importante para compreendemos a sua dimensão e como Manaus se situa dentro desse contexto.

sábado, 1 de dezembro de 2012






















MUNDO EM CRIAÇÃO
(E EM DESTRUIÇÃO)

                                                              LúcioFlávio Pinto

Reproduzo a seguir o prefácio que fiz para Conflitos sociais e a formação da Amazônia (486 páginas), livro de Marianne Schmink e Charles Wood, lançado na Feira do Livro pela ed.ufpa. Finalmente traduzido para o português, passa a ser um clássico da bibliografia amazônica acessível a um público maior e um dos livros mais bem editados no Pará, candidato forte ao melhor reconhecimento nacional. Uma obra prima da editora da Universidade Federal do Pará.

Foi quase por acaso, mais de 30 anos atrás, que Charles Wood e Marianne Schmink chegaram a São Félix do Xingu, que se tornaria a principal metáfora deste precioso livro sobre um dos locais e um dos momentos seminais da história recente da Amazônia, o “Sul do Pará”.
Os dois pesquisadores já sabiam que seria estratégica aquela pequena cidade, isolada em mais um dos encontros de grandes rios que delimitaram os marcos da ocupação primitiva da Amazônia pelos colonizadores europeus (os novos marcos, para desgraça da Amazônia, viriam a resultar do encontro dos rios com as estradas e das primeiras rodovias com as rodovias seguintes, rasgando a terra e submetendo o homem).
Se não fosse o problema mecânico no pequeno avião em que viajavam para um local próximo, Charles e Marianne não teriam pousado em São Félix naquele dia de 1976. Demorariam mais dias (ou meses) para realizar a incursão e talvez não tivessem usufruído de um acaso tão feliz, que uma máxima de Gentil Cardoso para o futebol – e extensiva à vida como um todo – instrui: quem se desloca, recebe.
Numa Amazônia enorme, disforme, distinta e polifônica (ou diacrônica), só quem circula por suas artérias defronta a história viva, a pré-história, ainda em processo, e, em geral, a anti-história, que fecha as portas da escrita ao registro retardatário (ou retardado) dos que a pesquisam.
Mal desembarcaram do “teço-teco”, Marianne e Charles já estavam no bar da principal rua de São Félix, no meio de um conselho de moradores. Não havia muitas ruas, nem muitos moradores. Quase o universo amostral se exibia aos acadêmicos, oferecendo-lhes tudo que tinha, em conversa franca, amistosa, prestativa.
Os moradores tinham esperanças, mas também tinham fundados receios. Sabiam que da mesma direção originária dos visitantes vinha em seu rumo uma estrada, a PA-279, ainda arranhando a partida, 200 quilômetros a leste daquele ponto ermo, que sobrevivera à decadência da extração da borracha na bacia do Xingu, eixo monopolizador de suas vidas até então.
Em dois ou três anos, porém, a estrada chegaria, trazendo consigo a cornucópia do rodoviarismo com sua epidemia de efeitos nocivos ao domínio da floresta na paisagem amazônica (fazendo-se sentir antes mesmo de chegar fisicamente, como Marianne e Charles perceberiam, em mais uma das suas muitas descobertas de campo, que enriqueceria o marco teórico da pesquisa).
O dono do bar foi telegraficamente profético: “A estrada nos dará acesso ao resto do Brasil. Mas também irá trazer o resto do Brasil até nós”. Dessa relação tem dependido a Amazônia nas últimas quatro décadas, as mais decisivas da sua história, não só pela grandeza nela envolvida, mas por seu tom de coisa irreversível, definitiva, sem volta – e, em grande medida, sem correção. O Brasil quer a Amazônia. Mas a Amazônia quer o Brasil? Que Amazônia o Brasil quer? Qual Brasil a Amazônia recusa?
São algumas das muitas questões que a “ocupação” ou a “integração” da Amazônia suscitam. Mas elas são consideradas para valer? Há uma margem de liberdade e tolerância com a qual podem ser abordadas e resolvidas, ou as interrogações são meramente retóricas e sob elas age um apagador categórico, impondo decisões de fora para dentro, do alto para baixo, com prazo pré-estabelecido?
O colonizador sabe o que quer e procura realizar o seu projeto na fronteira, antes mesmo de conhecê-la e independentemente de aceitá-la. O processo obedece ao velho esquema colonial. Integração e desenvolvimento significam, na verdade, submissão da terra e do homem às determinações do agente externo.
Nas últimas quatro décadas, a principal característica da ocupação da Amazônia pelo colonizador foi a destruição do componente mais caracteristicamente amazônico do bioma: a floresta. Uma área equivalente a quase três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, que concentra um terço da riqueza brasileira, foi posta abaixo: 700 mil quilômetros quadrados de floresta, em algumas regiões com a maior concentração da espécie vegetal de maior valor, o mogno, massacrada pela extração predatória. Nenhum povo na história humana destruiu com tanta ferocidade e velocidade um patrimônio botânico como esse, em grande parte perdido para sempre, sobretudo na sua incomparável diversidade biológica.
 Madeira foi queimada aos milhões de metros cúbicos ou transformada em toras para uso na indústria de móveis, na construção civil e outros fins, praticados em outras regiões do Brasil e em outros países, ou para servir de matéria-prima para a queima de carvão, colocado em altos-fornos para aumentar o teor natural do minério de ferro, que, em Carajás, é o mais rico do planeta, com 65% de hematita pura, o dobro do concorrente australiano no disputado mercado asiático (que fica com 80% do fornecimento).
A ocupação dos “espaços vazios”, ilusão e absurdo edulcorado por uma geopolítica de conveniência (pleonasmo?), permitiu o surgimento de cidades de porte médio em todo o sul do Pará (acima de 50 mil habitantes), por cujas ruas trafegam carros de luxo, levando pessoas envolvidas em múltiplos negócios, alguns dos quais se medem por centenas de milhões de reais, com conexões internacionais.
Mas quem apertar a vista e avivar a mente sentirá um ar de irrealismo e artificialidade nesse “mundo novo”, como uma Las Vegas no (quase) deserto adaptado, sem jogos de azar, mas marcada por outros imponderáveis, como campos de pastagem, precários cultivos agrícolas, minas exuberantes ou hidrelétricas, que substituíram o primado da floresta.
O mundo amazônico ficou mais complexo e diversificado, é verdade, e este livro de Marianne e Charles demonstra essa verdade com exuberância de dados e profundidade de reconstituição. Esse mundo, porém, deixou de ser amazônico, daquele “amazonismo” que os dois autores deste livro perceberam ao longo de suas sete excursões de campo, numa demorada e apaixonada dedicação ao tema das suas pesquisas – mais do que pesquisas, um móvel de paixão e amor pelo que estudavam, que os mantêm até hoje ligados ao objeto da sua atenção e cuidados.
Esse ethos amazônico exige capacidade de harmonia, de compreensão e adaptação do homem à natureza. É preciso conhecê-la antes de decidir o que fazer nela e com ela, patrimônio que os novos colonizadores não quiseram receber dos ocupantes anteriores, com presença de muito mais largo espectro, contadas em milênios e não apenas décadas ou mesmo séculos. O conteúdo amazônico implica o respeito, reconhecimento e uso desse patrimônio de saber, sem o qual a estrada é o veículo da destruição e seus usuários fazedores deserto.
O produto desse apossamento e “amansamento” da terra é transformar a Amazônia em sertão, com sua paisagem devastada, com seus conflitos inevitáveis (e inelutáveis), com sua violência e irracionalidade. O homem que chega transforma tudo para que essa fronteira desconhecida (e temida) passe a ser sua imagem e semelhança.
A dialética natural é banida, assim como as conquistas do processo civilizatório, na forma de liberdade, pluralidade e cidadania (por isso, apesar da democracia ter voltado ao Brasil em 1985, a Amazônia continua sob o cutelo da doutrina de segurança nacional dos militares, passados cinco governos civis). É o império da vontade do mais forte, que torna a Amazônia, idílio do Éden, a reprodução ampliada e desfigurada da matriz das desigualdades e da barbárie.
Quando Charles e Marianne iniciaram sua saga pela Amazônia, prosseguindo e levando às últimas consequências o empreendimento marcante do Cedeplar, o centro de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, no estudo demográfico da Amazônia, todo comércio exterior do Pará não chegava a meio bilhão de dólares.
Hoje, só a conta do minério de ferro de Carajás, explorado pela privatizada Companhia Vale do Rio Doce, é 12 vezes maior. A diferença dá uma idéia do que aconteceu desde então na dinâmica econômica. Mas se a grandeza quantitativa é mesmo de impressionar, e até de louvar, o contrapasso da dança social é de quebrar cadeiras: socialmente, a Amazônia se parece às colônias africanas submetidas pelos sofisticados bwanas europeus.
O Pará é o terceiro destino migratório do país. Legiões de esperançosos trabalhadores ou ferozes aventureiros o buscam, atraídos por suas bugigangas tecnológicas e de capital intensivo, os “grandes projetos” (a recriação dos espelhinhos que fascinaram os índios atraídos do fundo da mata para o contato com os “brancos”).
Como efeito perverso de uma lógica perversa, boa parte dos imigrantes chegam de outros Estados sem família, sem regras, sem limites, dispostos ao enriquecimento de qualquer maneira (ou, quando nada, à sobrevivência), por isso sem trazer família (que virá se derem certo), prontos para a loteria da fronteira, atrasada no tempo em relação às partes modernas do país e do mundo.
Daí a fronteira, em pleno século XXI, conviver com matança de índios, conflitos pela terra, trabalho escravo, prostituição infantil, métodos de produção remanescentes à revolução industrial inglesa do século 18. O lugar onde mais se mata para ter um pedaço de terra, embora a Amazônia ainda seja um “espaço vazio” do tamanho de dois terços do Brasil.
Marianne Schmink e Charles Wood nos oferecem neste livro, traduzido para o português com atraso de duas décadas (o que dá uma boa medida do interesse real do “sul maravilha” pela maior fronteira do país), um retrato sem retoques e com notável acuidade de uma história que serve de parâmetro para saber de onde vem e para onde vai a Amazônia contemporânea. É um marco de referência que se beneficiou do legado deixado na Universidade de Gainesville, na Flórida, pelo legendário Charles Wagley.
Como seus dois discípulos e sucessores, Wagley localizou na beira de rio uma cidade que também estava isolada e logo seria tocada pelo dedo pervertido do Midas colonizador da Amazônia, em Gurupá (mitologicamente recriada como Itá). Gurupá, com todas as suas seqüelas e vícios, sofreu menos, em mais tempo, do que São Félix do Xingu, o eixo da metáfora de Marianne e Charles, porque a tecnologia da destruição é mais sofisticada e o cliente dos produtos amazônicos, intensivos de capital natural, são impacientes e vorazes.
Esperança de um modo de utilizar a terra mais racional e justo, quando ativistas amazônicos tentavam impedir que a PA-279 prosseguisse a inefável marcha para oeste, sangrando a terra firme (da floresta verdadeira, a kaapor dos índios), São Félix se tornou a contrafação desses sonhos, a capital do município que tem o maior rebanho bovino do Estado, de importância nacional. A floresta serviu de pasto para a produção de gado. Um produto nobre sacrificado a um produto de valor incomparavelmente inferior.
Apesar de todas as histórias de infortúnios, solidamente documentadas, com uma amplitude que os diversos métodos de pesquisa e análise utilizados pelos autores possibilitaram (com ênfase em ver com os próprios olhos, antes e depois de ler as fontes já escritas), Charles e Marianne mantêm, ao final, um “otimismo cauteloso” quanto ao futuro da Amazônia. Convencidos de que quaisquer “previsões mais específicas sobre o futuro da Amazônia são arriscadas”, apostam suas fichas – intelectuais e emocionais – no poder da razão e da consciência.
É impossível não chegar ao final da leitura deste livro rigoroso e apaixonado sem também acreditar que o homem não se permitirá continuar a garatujar nesta página do Gênesis que Deus nos delegou. A Amazônia era um mundo por fazer quando Euclides da Cunha, exatamente um século atrás, encontrou a bela metáfora para defini-la.
Contudo, hoje ela se aproxima mais da terra “vaga e informe” do dito bíblico do que então, vaga por falta de definição justa para a presença humana nela e informe por ter sido destituída de suas formas originais, sem substituto à altura.
Ainda há tempo e espaço para evitar que sua ocupação seja o anteato da destruição, ao invés do ato da criação sugerida pelo grande escritor. Mas não muito. Aliás, a rigor, cada vez menos tempo e espaço, como este livro revela retrospectivamente, como uma coragem, uma lucidez e um compromisso raros no mundo, sobretudo o acadêmico, em relação à nossa (ainda) Amazônia.


A AMAZÔNIA DE TRINTA ANOS ATRÁS. E A DE HOJE?

                            Benedito Carvalho Filho (de Manaus)
                                                             OMBUDSMAN




Vou começar os meus comentários sobre a belíssima apresentação que o Lúcio Flávio fez no número 522 do JP, da 1ª quinzena de 2017, ao apresentar o livro Conflitos sociais e a formação da Amazônia (486 páginas), de Marianne Schmink e Charles Wood, lançado na Feira do Livro pela Ed.Ufpa. que, segundo o jornalista, passa a ser um clássico da bibliografia amazônica.
Explico a razão de começar por aqui:
Em primeiro lugar por uma razão que diria  afetiva e acadêmica. Afetiva porque tive o privilégio e a honra de ter participado durante quase dois meses com os dois pesquisadores nas suas incursões por São Félix do Xingu como pesquisador de campo, indicado pelo próprio Lúcio Flávio, apesar de, na época, estar residindo em São Paulo, onde fazia meus estudos universitários na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-São Paulo).
Foram momentos de muito aprendizado para esses dois pesquisadores e para mim que, apesar de ter passado minha infância, adolescência e parte da juventude na capital paraense e conhecido o pouco o interior da Amazônia (morei dois anos em Cametá ainda jovem fazendo trabalho do que hoje se chama educação popular) pude testemunhar a simplicidade desses dois pesquisadores e, ao mesmo tempo a paixão e amor com que se dedicavam à pesquisa.
Vivemos momentos inesquecíveis. Recordo um incidente de campo que ocorreu na pesquisa de campo. Charles, de estatura alta, e com uma bolsa amarrada na cintura, entrou comigo na casa de um camponês que se assustou, pensando que o pesquisador americano estava armado com uma pistola.
Era uma época de muita tensão na região e o camponês imaginou que alguma coisa ia aconteceu com ele. Eu era da região e consegui explicar para o cidadão quem éramos e o que desejávamos. As coisas se acalmaram e consegui entrevistar o morador. Charles, assustado, temia fazer o trabalho de campo. Coisas que acontecem com todo pesquisador, principalmente quando vão a campo.
Mas a aventura do trabalho do campo nos desafiava, e graças a nossa paciência e os laços de amizade que construímos em tão pouco tempo, demos conta da tarefa e aprendemos muito com essa experiência inesquecível.
A segunda razão de ter começado com essa recordação da pesquisa de campo no Xingu tem muito a ver com as matérias do JP anteriores, especialmente A Odisséia de Carajás, os interesses do Brasil, Escândalo ignorado: as grandes queimadas e O fogo foi apagado pela história oficial.
Se não estou enganado, na época, os anos 80, Lúcio Flávio Pinto escrevia a sua coluna no O Liberal chamada Informe Amazônico e comentava os grandes projetos amazônicos. Muitos desses artigos foram publicados em livros posteriormente.
Mas, as minhas perguntas são as seguintes: 1) Será que naquela época (30 anos atrás) imaginávamos o que viria acontecer na Amazônia, em especial no Sul do Pará, naquela região rica e longínqua da Amazônia?
 2) Imaginávamos que trinta anos depois que  os trens da Vale do Rio Doce levaria  de Carajás  aquela imensa quantidade de minério de ferro, citados na reportagem, transportando uma carga diária que vale 60 milhões de dólares quando chega a seu destino (60% para a China e 20% para o Japão) levando ao dia 576 mil toneladas do melhor minério de ferro do mundo, com pureza de mais de 65% de hematita, sem igual na crosta terrestre, segundo a informação do jornalista? 3) Imaginávamos que os 400 hectares de solo fértil, uma das melhores do Estado do Pará, se transformariam  para a produção de gado e hoje tem o maior gado bovino do Estado, de importância nacional, como afirma o JP?
Se, como afirmam Marianne e Charles, é difícil fazer quaisquer previsões mais específica sobre o futuro da Amazônia são arriscadas, o que poderíamos imaginar quando lemos na matéria O escândalo ignorado:
as grandes queimadas, que nos informa que “entre 1º de janeiro e 10 de agosto do ano passado, os satélites que monitoram os recursos naturais da Terra registraram 23,6 mil incêndios no Brasil?” Que,  o mesmo período deste ano, a soma atingiu 40,2 mil focos de fogo? E, mais: “que nesse caso, acredita que as queimadas chegarão a 200 mil ou mesmo 250 mil, cinco vezes mais do que a marca do ano recorde, o de 2010, quando foram anotados 44,8 mil incêndios
Sem negar uma dose de nostalgia, pelas informações que o JP nos tem fornecido, não dá para ser otimista sobre o futuro da região, principalmente porque forças poderosíssimas estão por trás desse processo; a força do capital, que, segundo o Antônio Delfim Netto, chamou num artigo da revista Carta Capital de um novo processo civilizatório, o que significa a adoção de um desenvolvimento que privilegia os donos do setor agroindustrial e pecuário, o setor mineral, que segundo o ex-ministro da ditadura, são grandes poupadores de mão de obra, embora exportem  para fora (China e Japão, como vimos) as nossas matérias primas, esgotando a mais preciosa jazida de ferro do mundo.
 Como constata o JP, a partir de 2017, quando a duplicação estará feita, a melhor concentração do minério mais usado pelo homem só durará mais 80 anos. Não haverá mais Carajás quando o século XXII estiver começando. Grande parte desse ferro terá sido transformada em construções e produtos na China, que tem um terço da produção siderúrgica mundial. Ou, quem sabe, ainda estará guardada em seu território para uso futuro.
O capital comanda a Amazônia, não mais pelos rios, como na época da borracha, mas pelas estradas. Já percebíamos isso há trinta anos atrás quando observávamos o que estava acontecendo no Xingu.
 O grande Capital quer a Amazônia e não tem o pudor de passar por cima de nacionalidades e bairrismos. No mais, brincamos de fazer política, como vemos na matéria sobre as disputas nas eleições municipais, sob o domínio de uma elite subserviente e aventureira que se alimenta do rescaldo aqui deixado pelo colonizador, atraídos pelas bugigangas tecnológicas, como diz Lúcio, e pelos “grandes projetos”.