sexta-feira, 31 de agosto de 2012

SERÁ QUE SOMOS REALMENTE INFORMADOS (OU DEFORMADOS)?

Num evento em defesa da liberdade de expressão e por uma Ley de Medios, realizado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, na segunda feira, dia 27 de agosto de 2012, a professora Marilena Chauí fez uma palestra antológica. Ela foi publicada no blog Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorin e publicamos no Jornal Catarse porque consideramos que as reflexões da filósofa têm muito a ver com o que estamos vivendo hoje, onde temos a ilusão de sermos informados, quando, na verdade, somos “deformados”, imaginando que temos acesso à informação, hoje um monopólio que controla a nossa subjetividade, determina o que temos que gostar e consumir, amar e desejar, como se fossemos cidadãos passivos nesse “Admirável Mundo Novo” em que vivemos.  
Essa palestra deveria ser objeto de discussão não só com quem trabalha nos meios de comunicação, mas por todos os cidadãos que lutam pela ampliação da democracia em nosso país. Leiam a discutam, comentem, divirjam. A apatia sufoca a democracia que é sempre um vir a ser.

A PALESTRA DE MARILENA CHAUI 

I. Democracia e autoritarismo social
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la:
1. Forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor  em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?
3. Forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos ( econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
4. graças à idéia e à prática da criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita aos cidadãos instituir contra-poderes sociais por meio dos quais interferem diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, conseqüentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;  
6. única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;
7. Forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não significam  mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os principais traços da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da representação  — o representante não é visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura temporal da ação política.
Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal,  seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se da  eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do  capital; a economia e a política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços, privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio, aumentando todas as formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.
II. Os meios de comunicação como exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico. Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc.. No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.
A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.
A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.
Enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio, na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver. O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária, educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir na vida.  O principal especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros  — em suma, o chamado “formador de opinião” e o “comunicador”.
Ideologicamente, o poder da comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e idéias, pois, dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais terríveis desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução Francesa,  Hegel considerou que uma de suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade e da igualdade que definem a sociedade democrática.

III.
Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de lazer e cuidados corporais.  
As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é exibida, os hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém: “o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou desagrada.
Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita slogans grandiloqüentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda é informação”.
Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda. Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.
Não é casual, mas uma conseqüência necessária dessa privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão.
É sintomático que, hoje, se fale em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido, isto é, que se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos.
Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”, portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.
É possível perceber três deslocamentos sofridos pela idéia e prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da idéia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social pela idéia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação.
Esses deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo  escreveu que o povo estava contra a opinião pública!
O caso mais interessante é, sem dúvida, o do jornalismo impresso.
Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”, determinação da página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).
O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, freqüentemente, inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.
Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:
1)                    Uma vez que o jornalista concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de um fato e a ser tomada como um acontecimento real ;

2)                     Os efeitos da concentração do poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a idéia de opinião pública.

3)                    Hoje, porém, os  conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.
Esses dois aspectos incidem diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão de credibilidade e  plausibilidade.  Rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública.
De fato, a desinformação é o principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais, no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de maneira a impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.
Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.
Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a existência de um espetáculo e só permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua transmissão.
4)                    Como operam efetivamente os noticiários?

Em primeiro lugar, estabelecem diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite e buscando sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora: em seqüência, apresentam, no início, notícias locais, com ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com ênfase em crises e conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos (maremoto, terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem com as notícias nacionais, enfatizando as idéias de ordem e segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E, nos finais de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro, proteção a espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento de bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem, obrigado.
Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no  tempo. Como desconhecemos as determinações econômico-territoriais (geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e as conseqüências dos fatos noticiados,  não podemos compreender seu verdadeiro significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num mesmo tempo  (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação, mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.
Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as imagens escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é o mundo.
A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e  entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia  a própria realidade fica totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
Na perspectiva da democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa cósmica de informações.  Ou seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois  tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já coletados.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

OUSAR PENSAR NA RADICALIDADE: UM CONVITE Á REFLEXÃO - RESENHA


                                                                                                                                                      Benedito Carvalho Filho


Acabo de ler o livro do filósofo Vladimir Safatle, A esquerda que não teme dizer seu nome, Editora Três Estrelas.
 O autor é professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do jornal Folha de São Paulo e autor de uma vasta obra, entre, como A paixão do negativo: Lacan e a dialética (UNESP, 2006), Lacan (Publifolha, 2007), Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Fetichismo: colonizar o outro (Civilização Brasileira, 2010) e Grande Hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento (Martins Fontes). Atualmente Safatle é um dos colunistas da revista paulista Carta Capital.
A esquerda que não teme dizer seu nome é um livro de fácil leitura, ao contrário do Grande Hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. Nele nos defrontamos com questões importantes para repensar o papel das esquerdas hoje, principalmente das derrotas sofridas pelo desmoronamento do chamado Socialismo Real, a queda do Muro de Berlim e a ascensão do neoliberalismo.
Safatle, com sua finess de um intelectual uspiano, trafegando pelo mundo intelectual europeu, não é mais um daqueles intelectuais tão comuns nos tempos de hoje que abdicaram do exercício da crítica e que enxergam o mundo totalmente dominado pela cultura do desânimo, o ceticismo e o cinismo. Pelo contrário, usando da reflexão crítica, revitalizando o pensamento hegeliano e o pensamento frankfurniano, o filósofo uspiano nos oferece nesse livro, como afirma, uma cartografia inicial de questões que podem orientar o pensamento na definição da pauta de uma esquerda renovada.
Quais seriam essas questões que a esquerda não deve temer?
Não vou reproduzir nesta resenha todos os aspectos que o autor nos oferece para uma maior reflexão, assim como as implicações que eles vão adquirindo ao longo do livro.
 Uma das questões bem enfatizada pelo autor é na necessidade de recuperar o conceito de soberania, ou seja, na defesa radical do igualitarismo, que, segundo ele, fornece a pulsão fundamental do pensamento de esquerda. E adianta: por igualitarismo devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política.
Para isso, ao contrário de muitas posições libertárias, que via o Estado como “aparelho da classe dominante”, Safatle afirma que, para vencer o problema das desigualdades sociais, a função do Estado é importante. O Estado, afirma, é a única instituição que garante o estabelecimento de processos gerais capazes de submeter toda a extensão da sociedade.
Mas só o Estado como instituição garantirá garante a igualdade social, pois ele e resultado de uma rede de normas sociais cuja configuração é sensível à pressão da sociedade organizada. Tal pressão pôde, em vários momentos da história do século XX, transformar o Estado em força capaz de limitar interesses de concentração de riquezas vindos dos setores mais afluentes da sociedade.  
Para ele, portanto, não há outra instituição capaz de desempenhar papel semelhante. Por isso, em nome do combate à desigualdade econômica, a esquerda não pode abrir mão do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado.
Ao contrário das críticas que faziam os movimentos animados pelo saldo libertário de Maio de 1968, Safatle afirma que o Estado moderno não pode ser reduzido a um aparato disciplinar, pois os últimos trinta anos demonstraram claramente como dinâmicas de redistribuição e de luta contra fraturas sociais não se realizam sem a intervenção do Estado.
O papel do Estado é certamente um ponto polêmico, principalmente porque certas esquerdas (ou certo setores da esquerda) que ainda trabalham com a idéia do Estado como sendo o “comitê da classe dominante”, segundo a versão leninista, a mais difundida. O autor não explica qual o Estado e em que situação ele se encontra. O Estado burguês? O Estado funcionando em regime democrático?  Isso não ficou muito claro nas reflexões do autor.
Um ponto polêmico, e que, certamente, provoca muitas discussões em vários campos, é a afirmação contundente do autor quando afirma que a esquerda deve ser “indiferente” às diferenças”, ou seja, a política atual da esquerda só pode ser uma política da indiferença”.  
Afirma o autor:
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na “diferença” o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, a exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
Para ele, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais, o que acabou sendo usado pela direita mundial, em especial na Europa, onde um clássico conflito de classe e espoliação transformou-se em choque civilizatório.  
E constata, afirmando que a estratégia de esvaziamento de conflitos sociais por meio da cultura seja responsável também pela inacreditável onda de nacionalismos requentado que invade a Europa.
E afirma:
(...) uma das maiores invenções da modernidade foi o imperativo de que nem a nação como construção imaginária, nem o Estado como aparato jurídico-institucional podem estar relacionados à política com uma lógica que bloqueia o que há de determinação universal em todo e qualquer sujeito. Nação e Estado devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político.
E mais:
O espaço político não pode ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária.
Essa questão levantada por Safatle é importante e tem muitas conseqüências na prática política.  É a “cilada da diferença” em que muitos que se dizem de esquerda ainda estão profundamente impregnados e que hoje, como ele aponta, é usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa.
Até onde suportar a diferença? – pergunta. Quando se fala em suportar a diferença, diz ele, parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se a minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Nada mais falso.
Ao se referir a uma das maiores invenções da modernidade, Safatle lembra que,
(...) uma das maiores invenções políticas da modernidade foi o imperativo de que nem a nação como construção imaginária, nem o Estado como aparato jurídico-institucional podem ser relacionados ao povo como identidade, pois isso significa colonizar a política com uma lógica que bloqueia o que há de determinação universal em todo e qualquer sujeito. Nação e Estado devem ser absolutamente indiferentes às diferenças, no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político.
E conclui:
O espaço político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária.
Outros pontos importantes para a discussão são levantados nesse livro, como a diferença entre Justiça e Direito, o questionamento da idéia de democracia, onde estamos muito acostumados com a idéia de democracia associada com a democracia parlamentar.
Afirma Safatle:
Como dizia Derrida, eis a razão pela qual só podemos falar em “democracia por vir”, e nunca em democracia como algo que se confunde com a configuração do atual do nosso Estado de Direito. Contra os arautos do Estado democrático de Direito, que procuram nos resignar às imperfeições atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma “democracia por vir”, que só poderá ser alcançada se assumirmos a realidade da soberania popular. Estas são, pois, as duas pernas de toda política de esquerda que não teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular.
O livro de Safatle tem 84 páginas. Parece pequeno para as questões que aborda, mas é denso, provocador e toca em temas polêmicos que nos ajuda sair da mesmice e do pensamento único e nos convida a refletir e alargar nosso campo de visão, às vezes tão congelados pelos velhos chavões e paradigmas repetidos à exaustão. Ousar dizer seu nome é ousar pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força da crítica e a força radical do pensamento, como diz o autor.

domingo, 26 de agosto de 2012

DUAS CRÔNICAS QUE NOS FAZ PENSAR

Prezado leitor, leia as duas crônicas abaixo e reflita:
1.    O que elas têm em comum ?
2.    A realidade descrita tem alguma semelhança com as elites do Amazonas? Em que aspectos você vê semelhanças com as elites de São Paulo?

Quanto mais rico, pior
Postado no Blog de Eduardo Guimarães no dia 26/08/12
O título do texto não é só uma provocação e um exagero completo. Agora mesmo surgiu indício científico de que o dinheiro, ao invés de tornar a pessoa melhor, freqüentemente pode torná-la bem pior – ao menos do ponto de vista intelectual.
Muitos ficarão surpresos. Ora, como o dinheiro pode tornar alguém mais burro se permite ao endinheirado pagar por educação de melhor qualidade?
Burrice e inteligência são conceitos vagos. Quem já não julgou “burro” alguém com enorme bagagem de diplomas acadêmicos? Quem já não se espantou com a sagacidade e com clarividência de alguém sem instrução formal e de origem pobre?
Em termos de inteligência política, ao menos, ter dinheiro parece danoso. É o que mostra pesquisa Datafolha recém divulgada pelo jornal Folha de São Paulo. A sondagem quis saber a opinião do eleitor sobre o horário eleitoral na TV e no rádio.
Apesar de o Datafolha mostrar que 64% dos paulistanos apóiam a propaganda eleitoral “gratuita” nos meios eletrônicos e que apenas 32% querem que seja extinta, entre os que têm renda acima de dez salários mínimos o percentual contrário à propaganda chega a 43%.
Ao ler sobre essa pesquisa me veio à mente um amigo que tem instrução formal e muita grana no banco, sem falar do vasto patrimônio. Para ele, política é uma brincadeira, um fla-flu. Discute o assunto seriíssimo sem qualquer compromisso com a seriedade.
Como quase todo paulistano de classe média alta, esse amigo é antipetista até a raiz dos cabelos – meu filho é mesário há várias eleições em um bairro desse estrato social e relata que, ali, a direita costuma ganhar com até 90% dos votos. Serra, em 2010, teve 93%.
Até aí, tudo bem. Por óbvio, não se sugere, aqui, que só quem tem inteligência política são os simpatizantes do PT. O problema do sujeito é outro, é o seu descompromisso com fatos e com a seriedade que o assunto requer.
Anda sempre com um jornal da direita midiática a tiracolo (Estadão ou Jornal da Tarde ou Folha de São Paulo), quando não carrega a Veja. Sai por aí vomitando acusações contra o PT e, quando perguntado se não vê corrupção nos partidos que apóia, muda de assunto.
Liguei para o amigo após ler a tal pesquisa Datafolha. Perguntei, sem falar da pesquisa, sua opinião sobre o horário eleitoral. A resposta era previsível: quer acabar com ele, pois decide seu voto pela orientação que recebe da “imprensa”.
Perguntei se não era melhor, então, acabar com as eleições e delegar à imprensa a prerrogativa de escolher parlamentares e chefes do poder Executivo (prefeitos, governadores e presidentes). A resposta foi a de que “Até que não seria má idéia”.
Poucos dias antes, o amigo foi me visitar em meu escritório. Já entrou cantarolando o jingle de José Serra. Fitei-o demoradamente enquanto refletia sobre sua postura. Decidi ir mais fundo em seu ideário político.
Quis saber se estava satisfeito com São Paulo. Respondeu que adora a cidade. Expliquei que não me referia a isso, que o que perguntara fora se estava satisfeito com a administração da cidade. Resposta: “No meu bairro, sim”.
Então lhe perguntei se achava que os outros bairros estão bons. Respondeu-me que os da periferia continuam uma porcaria, mas que, para ele, o que interessa é onde vive.
Decidi, então, aferir seus conhecimentos sobre seu próprio bairro – de fato, um bairro dito nobre.
Quis saber sobre a limpeza. Começou dizendo que era boa. Como meu escritório fica no bairro em que mora, pedi que viesse à janela e lhe mostrei a rua emporcalhada. A resposta foi a esperada: a sujeira em seu bairro “maravilhoso” é culpa da “baianada”.
Então perguntei sobre a educação pública. Respondeu que nunca precisou da educação pública para os seus filhos, apesar de ter estudado em escola pública. Mas como tem mais de sessenta anos, cursou-a à época em que servia a poucos, mas tinha qualidade.
Agora, pergunto sobre a saúde pública. A resposta é a de que nunca precisou de saúde pública e que seu plano de saúde familiar é “top de linha” – paga inacreditáveis 3,7 mil reais por um plano de saúde para si, a mulher e duas filhas.
E a segurança pública em São Paulo, é boa? Claro que sim. Só não é melhor por culpa de quem mesmo? Adivinhe, leitor, se puder…
Pergunto como a segurança pode ser boa se a sua casa parece um campo de concentração – fica em uma vila particular em que um portão enorme fecha o espaço público, além de grades, fios elétricos e câmeras por toda parte. Mais uma vez, a “baianada” levou a culpa.
Burrice, preconceito, irresponsabilidade… Tudo isso na boca de um ex-juiz do Trabalho, contador formado e que tem conta bancária com quase sete dígitos. Que desculpa tem esse homem para suas opiniões cretinas?
É tudo bem simples: vivemos em um país que está entre os 12 mais socialmente desiguais em um planeta que tem cerca de duas centenas de países. Essa minúscula elite que concentra renda, como ficou demonstrado acima, não precisa do Estado.
Criou-se, entre esse segmento microscópico – e influente – da sociedade, uma fé fervorosa no mais legítimo fascismo. Quer, no mínimo, deportar os nordestinos excedentes aos que necessita como empregados domésticos, garçons, manobristas, porteiros etc.
Alguns devem ter visto, aliás, entrevista que uma socialite chamada Anna Maria Corsi deu à mesma Folha de São Paulo, entre outras congêneres que também se manifestaram. A mulher disse, com todas as letras, o que afirmo no parágrafo anterior.
A mesma coisa é o meu amigo supracitado – que é infinitamente menos rico, mas igualmente preconceituoso. Aliás, mais radical, pois prega que coloquem todos os nordestinos “no paredão” e “passem fogo”.
“Horário eleitoral pra quê?”, diz o amigo reacionário. Segundo ele, os jornais já dizem quem é o candidato que “vai defender a gente dos comunistas que querem dar aos baianos indolentes o que conseguimos com nosso suor”.
Quis perguntar como ele pode ter “suado” para conseguir seu patrimônio se herdou tudo do pai, mas desisti. Vivo em um bairro de classe média alta – apesar de não ser dessa classe – e não posso brigar com a vizinhança toda.
PAIS TRAÍDO
Mino Carta, na Carta Capital, 28.08.2012

Em São Paulo, tempos ásperos. Leio: uma residência particular é assaltada a cada hora, o roubo de carros multiplica-se nos estacionamentos dos shopping centers. Entre parênteses, recantos deslumbrantes, alguns são os mais imponentes e ricos do mundo. Que se curva. Um jornalão, na prática samaritana do serviço aos leitores, fornece um receituário destinado a abrandar o risco. Reforce as fechaduras, instale um sistema de alarme etc. etc.
Em vão esperemos por algo mais, a reflexão séria de algum órgão midiático, ou de um solitário editorialista, colunista, articulista, a respeito das enésimas provas da inexorável progressão da criminalidade. Diga-se que uma análise honesta não exige esforço desumano, muito pelo contrário.
Enquanto as metrópoles nacionais figuram entre as mais violentas do mundo, acima de 50 mil brasileiros são assassinados anualmente, e um relatório divulgado esta semana pelas Nações Unidas coloca o Brasil em quarto lugar na classificação dos mais desiguais da América Latina, precedido por Guatemala, Honduras e Colômbia. O documento informa que 28% da população brasileira mora em favelas, sem contar quem vive nos inúmeros grotões do País.
Vale acrescentar que mais de 60% do nosso território não é alcançado pelo saneamento básico. Ou sublinhar a precariedade da saúde pública e do nosso ensino em geral. Dispomos de uma cornucópia maligna de dados terrificantes. Em contrapartida, capitais brasileiros refugiados em paraísos fiscais somam uma extravasante importância que coloca os graúdos nativos em quarto lugar entre os maiores evasores globais.
É do conhecimento até do mundo mineral que o desequilíbrio social é o maior problema do País. Dele decorrem os demais. Entrave fatal para o exercício de um capitalismo razoavelmente saudável. E evitemos tocar na tecla do desenvolvimento democrático. Mas quantos não se conformam? Não serão, decerto, os ricos em bilhões, e a turma dos aspirantes, cada vez mais ostensivos na exibição de seu poder de compra e de seu mau gosto. Não serão os profissionais da política, sempre que não soe a hora da retórica. Não será a mídia, concentrada no ataque a tudo que se faça em odor de PT, ou em nome da igualdade e da justiça.
Nada de espantos, o Brasil ainda vive a dicotomia casa-grande–senzala. CartaCapital e especificamente o acima assinado queixam-se com frequência do silêncio da mídia diante de situações escusas, de denúncias bem fundamentadas, de provas irrefutáveis de mazelas sem conta. Penso no assunto, para chegar à conclusão de que há algo pior. Bem pior. Trata-se da insensibilidade diante da desgraça, da miséria, do atraso. Da traição cometida contra o País que alguns canalhas chamam de pátria.
Exemplo recentíssimo. Há quem lamente os resultados relativamente medíocres dos atletas brasileiros nas Olimpíadas de Londres. Parece-me, porém, que ninguém se perguntou por que um povo tão miscigenado, a contar nas competições esportivas inclusive com a potência e a flexibilidade da fibra longa da raça negra, não consegue os mesmos resultados alcançados em primeiro lugar pelos Estados Unidos. Ou pela Jamaica. Responder a este por que é tão simples quanto a tudo o mais. O Brasil não é o que merece ser, e está muito longe de ser, por causa de tanto descaso, de tanto egoísmo, de tanta ferocidade. De tanta incompetência dos senhores da casa-grande. Carregamos a infelicidade da maioria como a bola de ferro atada aos pés do convicto.
Mesmo o remediado não se incomoda se um mercado persa se estabelece em cada esquina. Basta erguer os vidros do carro e travar as portas. Outros nem precisam disso, sua carruagem relampejante é blindada. Ou dispõem de helicóptero. Impávidos, levantam seus prédios como torres de castelos medievais e das alturas contemplam impassíveis os casebres dos servos da gleba espalhados abaixo. A dita classe média acostumou-se com os panoramas da miséria, com a inestimável contribuição da mídia e das suas invenções, omissões, mentiras. E silêncios.
Às vezes me ocorre a possibilidade, condescendente, de que a insensibilidade seja o fruto carnudo da burrice.

DEBATE ABERTO: AFINAL O QUE FIZEMOS DE NOSSOS SONHOS?





Publico nesse blog o artigo de Jacques Gruman, editado no blog Carta Maior, e convido o leitor do Jornal Catarse para um debate. Afinal, o que fizemos com os nossos sonhos depois de termos vivido os tempos tormentosos da ditadura nesse país?
 Ainda ousamos sonhar? – pergunta o articulista abaixo?
Ainda recordo do jovem comunista do PC do B que fazia trabalho de base (como era denominado naquela época quem ia para o meio do povo tentando conscientizá-lo, palavra mágica naquele tempo) tentando sintonizar com a Rádio Tirana para saber das últimas notícias da Guerrilha do Araguaia. Também recordo de meus tempos juvenis participando nas passeatas, greves, a luta pelas diretas cantando a música de Vandré. Caminhávamos cantando e querendo viver sem razão. Quantas lembranças!
O que fizemos (e o que fizeram) com nossos sonhos e os “velhos e íntimos desejos” que de nos fala o autor abaixo? Embarcamos em que “canoa” nesses tempos de globalização? O “paraíso” se transformou em embarcar num baseado, ou nos tornarmos budistas ou evangélicos buscando a salvação individual em outro mundo menos caótico?
Ou nos entediamos assistindo os Faustões de domingo global? Ou preferimos circular tediosamente pelos corredores dos Shopings Centers apreciando Sua Majestade a mercadoria nas tardes de domingo?  
O que buscamos, afinal? O amor facebookiano? As mensagens melosas impressas no visor do meu celular me convidando para sair?  
Lembro o que, na época, era considerado como comportamento desviante, aquele comportamento tido como não convencional não aceito pelas normas impostas.
Por onde andam aqueles jovens que assustavam pais, professores e autoridades, circulando com suas calças jeans, blusões de couro, óculos escuros, topetes emplastrados com brilhantina?
Onde andam aqueles que gostavam também de ouvir e dançar ao som do rock de Elvis Presley e de ver filmes como O Selvagem (Marlon Brando), Juventude Transviada (James Dean) e o Balanço das Horas (Bill Haley) que enlouqueciam o Cine Rian, na cidade do Rio de Janeiro?
O que vejo hoje nas novas gerações é o conformismo sem paralelo. Tive um susto quando a maior emissora de TV do país, ao comentar o resultado medíocre do IDEB, o que mede a qualidade da educação brasileira, deu como exemplo a educação fornecida pelas escolas militares. A receita oferecida por um comentarista global para o sucesso: o rigor da disciplina nessas escolas, exemplo que, segundo ele, deveria ser adotado em todas as escolas do país. Ou seja, a nova geração deveria marchar uniformizada em ordem unida sob o comando do professor militarizado. O velho e falecido Michel Foucault deve ter se revirado no túmulo com esse vigiar e punir.
E o que dizer da proposta de um candidato à prefeitura da maior cidade da América Latina para combater a criminalidade: criar em cada bairro uma igreja, tentando ganhar corações e mentes dos jovens e, assim, prevenir o uso de drogas, que vem dizimando uma geração delirante. Vejam para onde foram os sonhos libertários da geração 60.
Não é por menos que o autor abaixo diz:
“Frustração no trabalho, excesso de cobrança nos estudos e falta de afeto familiar, encaixados numa sociedade extremamente hierarquizada, fazem o número de suicídios crescer todos os anos no Japão. No ano passado, 150 japoneses com menos de 30 anos cometeram suicídio. A maioria por não conseguir emprego ou julgar que não tinha bom desempenho na escola ou no trabalho. Dá para imaginar com o que sonham jovens submetidos a esse tipo de tirania corporativo-familiar”.
Só no Japão?
Aqui, o suicido é sutil. Os nossos jovens, especialmente os que desejam entrar no mercado de consumo e vivem nos grandes centros urbanos vêm se suicidando de outra forma, como nos mostra os dados alarmantes de jovens mortos pela polícia e pelo narcotráfico. Portanto, bem vindo ao deserto do real. (Benedito Carvalho Filho)


De sonhos e gerações


Jacques Gruman (Engenheiro Químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro) 
Das ruínas de velhos e íntimos desejos, contemplo “minha” geração. Quantos de nós ainda ousam sonhar? Quantos se limitam a reclamar? Quantos trocaram o assalto ao paraíso por um bom restaurante rodízio? Quantos se deslumbram com ilusionistas apenas para mascarar o tédio e a preguiça?
 Nada. Assim Ney Matogrosso respondeu à pergunta de Eric Nepomuceno sobre o que restara dos sonhos de sua geração. Bastante pessimista, o ex-Secos e Molhados falou do frenesi narcisista em que se travestiram os projetos libertários da geração 60.
O que, afinal, define uma geração ? Como juntar numa categoria única interesses, identidades e objetivos necessariamente fragmentados, muitos deles contraditórios? Os sonhos do artista não serão os mesmos, por exemplo, do militar e do sem terra, mesmo que tenham nascido no mesmo intervalo de tempo. Óbvio que Ney falava de seus pares, subgrupo da classe média amordaçada pela censura, que desbundou e foi viver uma utopia ruralista, nutrida por sexo-drogas-rock’n’roll, da qual não restaram sequer escombros.
Tínhamos, é verdade, um inimigo comum: a ditadura militar. Os milicos que exilavam Chico, Caetano e Gil, eram os mesmos que censuravam o Pasquim, matavam adversários políticos a rodo, colocavam tarjas negras nas genitálias que apareciam em filmes da moda (o caso da Laranja Mecânica entrou, por grotesco, para o folclore da boçalidade), baniam músicas, confundiam A Capital, de Eça de Queiroz, com O Capital, de Marx (e era cana dura para quem tinha qualquer um dos dois). Época curiosa, em que ficávamos atentos a uma leitura excitante como o Almanaque do Exército, à cata de pistas para descobrir a linha ideológica dos futuros comandantes regionais. Quem é que sabe, hoje, o nome do comandante do 1º Exército ? Pouca gente, espero. Virou cultura de Almanaque Capivarol. A unir os incomodados e oprimidos, de liberais legítimos a comunistas, um filamento de esperança pelo colapso da hegemonia da caserna e seus cúmplices civis.
Sem o guarda-chuva do inimigo comum, o mar se abre. O que fazer com a liberdade ? Essa é uma questão nada trivial. Acompanhei as notícias da lusitana Revolução dos Cravos (lindo nome), em 1974, por um velho rádio a válvula Halicrafters. Ondas curtas, chiado irritante. “Agora”, dizia um locutor emocionado, “música clássica não é mais privilégio das elites”. E toma de Mozart, Bach, Haydn. Pureza d’alma, ó pá. Os escritores, habituados a se expressar por entrelinhas, se sentiram órfãos da pressão dos censores. Estranho, não ? Havia que decifrar sonhos atolados em décadas de lama verde-oliva, sem o filtro do Grande Irmão.
Sonhar não é um exercício neutro. O inconsciente tem interferências de classe, momento histórico, heranças culturais. Frustração no trabalho, excesso de cobrança nos estudos e falta de afeto familiar, encaixados numa sociedade extremamente hierarquizada, fazem o número de suicídios crescer todos os anos no Japão. No ano passado, 150 japoneses com menos de 30 anos cometeram suicídio. A maioria por não conseguir emprego ou julgar que não tinha bom desempenho na escola ou no trabalho. Dá para imaginar com o que sonham jovens submetidos a esse tipo de tirania corporativo-familiar. O que pensar, por exemplo, dos projetos da nova geração de jovens nascidos na Mauritânia ? Poucos escapam da fome crônica da África Ocidental. Só na chamada região do Sahel, estima-se que 1,5 milhão de crianças não conseguem se alimentar adequadamente. Para essa geração, o projeto é sobreviver.
E no Brasil ? Pergunte-se a um jovem executivo o que Eric perguntou a Ney e ele responderá que o sonho de sua geração será, digamos, adquirir o Global 6000, jato de luxo produzido pela Embraer, pela bagatela de US$ 60 milhões. Ou um casamento com todos os penduricalhos. Coisa de meros US$ 1 milhão. Os multimilionários vão muito bem, obrigado, no Brasilzão. Geração tanquinho ? Girando a roleta para um despossuído, o que ele diria ? Ah, doutor, quero mesmo é que me expliquem o que é tomada e interruptor (5 milhões de domicílios brasileiros não têm acesso à energia elétrica). Se isso for pedir demais, gostaria de arrumar um jeito de sair da barriga da miséria (16,2 milhões de brasileiros, de acordo com o último censo do IBGE, encontram-se em situação de extrema pobreza, a maioria deles pardos ou negros). Geração calango?
Das ruínas de velhos e íntimos desejos, contemplo “minha” geração. Quantos de nós ainda ousam sonhar? Quantos se limitam a reclamar? Quantos trocaram o assalto ao paraíso por um bom restaurante rodízio? Quantos se deslumbram com ilusionistas apenas para mascarar o tédio e a preguiça? Não tenho respostas, mas também não cheguei ao pessimismo do setentão Matogrosso. Continuo, ranzinza e teimoso, a repetir Fernando Pessoa: Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.