quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Kieślowski & Irène Jacob: Magia & Técnica, Arte & Política.

                                                                                                               Ubiracy de Souza Braga*

O Professor Ubiracy de Souza Braga, da Universidade Estadual dp Ceará   tem colaborado com o JORNAL CATARSE.
                          Todos os filmes que faço são sobre a necessidade de se abrir”. Krzysztof Kieslowski
                                                 A carreira cinematográfica de Krzysztof  Kieślowski (1941-1996) se divide entre a fase polonesa e a francesa (cf. Furdal e Turigliatto, 1989; Esteve, 1994; Amiel, 1995; Attolini, 1998; Furdal, 2001). Depois de concluir a faculdade, o jovem diretor começa a produzir documentários. A narrativa dos documentários (cf. Wisner, 2002; Haltof, 2004; Ramos, 2005) passa a influenciar os primeiros filmes de ficção do diretor, tais como: “A Cicatriz”, “Blind Chance” e “Amador” que são exemplos desse estilo (cf. Stok, 1993; Haltof, 2004). Mais tarde, Kieślowski realizou para a televisão polonesa uma série de filmes chamada Dekalog (1989) - “um filme por mandamento”, todos tratando de conflitos não apenas éticos e morais. Dekalog (cf. Loretan, 1993), é um projeto “difícil de classificar e árduo de descrever”. Alguns críticos preferem vê-lo não como um filme, mas, como dez médias-metragens independentes entre si. E temos no
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* Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
primeiro caso,  um funcionário do correio que obcecado por uma mulher madura e independente tenta  uma aproximação, mas é um  voyeur. O segundo, através de uma visão amarga da vida, e cena das mais chocantes da história do cinema. O provérbio chinês sobre a imagem não tem sentido para o cinema.
            
Kieślowski's early documentaries focused on the everyday lives of city dwellers, workers, and soldiers. Though he was not an overtly political filmmaker, he soon found that attempting to depict Polish life accurately brought him into conflict with the authorities. His television film Workers '71, which showed workers discussing the reasons for the mass strikes of 1970, was only shown in a drastically censored form. After Workers '71, he turned his eye on the authorities themselves in Curriculum Vitae, a film that combined documentary footage of Politburo meetings with a fictional story about a man under scrutiny by the officials. Though Kieślowski believed the film's message was anti-authoritarian, he was criticized by his colleagues for cooperating with the government in its production. Kieślowski later said that he abandoned documentary filmmaking due to two experiences: the censorship of Workers '71, which caused him to doubt whether truth could be told literally under an authoritarian regime, and an incident during the filming of Station (1981) in which some of his footage was nearly used as evidence in a criminal case. He decided that fiction not only allowed more artistic freedom, but could portray everyday life more truthfully”.
           Tese: O deslocamento entre as duas dimensões do real e do imaginário (cf. Deleuze, 1974; 1976; 1980; 1985; 1988) ocorre necessariamente por disjunção, por divergência: o transcendental (Kant) não pode se assemelhar ao empírico, “senão retornaríamos ao contexto redundante da experiência possível”. Portanto, ainda que sumariamente, diremos que sair do plano dos entes, do vivido, e mergulhar na direção do transcendental, é dissolvê-lo no denso e múltiplo conjunto de forças a partir do qual ele emerge, e de modo que o retorno só pode ser feito em nova estrada: reencontrar o ponto de partida é, em suma, não mais encontrá-lo, mas encontrar outro, pois que modificado, transformado pelas novidades e aspectos que há pouco vieram à tona. O cineasta aprimora seu estilo ao realizar seus próximos filmes. Lembramos que o “sentido-acontecimento” é sempre “extra-ser” e “extra-proposicional”, este paradoxo quer afirmar especificamente seu caráter de indiferença, nem agente nem paciente, frente aos estados de coisas, diversamente deles.
 Irène Marie Jacob nasceu em Suresnes, um subúrbio a oeste de Paris, filha mais nova de quatro irmãos. Em alguns filmes é creditada como Iren Zhakob. Cresceu em uma família de boa formação educacional e intelectual: seu pai era médico, e sua mãe, psicóloga; um irmão é músico, e os outros dois são cientistas. Em 1969, aos 3 anos, a família mudou-se para Genebra (Suíça), onde Irène começou a se interessar por artes. Irène desenvolveu interesse por representar após ver os filmes de Charlie Chaplin: “Eles me envolveram completamente”, ela lembra. “Faziam-me rir e chorar, e era exatamente o que eu esperava de um filme - que me despertassem para meus sentimentos”. Estreou nos palcos em 1977, com 11 anos. Estudou no Conservatório de Música de Genebra e obteve graduação em idiomas - ela fala inglês, alemão, francês e italiano. Em 1984, mudou-se para Paris, onde estudou teatro no prestigiado Rue Blanche, a Academia nacional francesa de drama. Depois foi a Londres, assistir às aulas do Dramatic Studio.
Em 1987, Irène Jacob voltou a Paris. Já com 21 anos, fez seu primeiro papel (uma professora de piano), dirigida por Louis Malle em: Au revoir, les enfants. Depois desse, vieram seis papéis menores em filmes franceses, em quatro anos. Em 1991, o diretor polonês Krzysztof Kieślowski a convidou para fazer o papel-título de A Dupla Vida de Véronique, sobre “duas jovens idênticas, uma na Polônia e outra na França”. Por sua atuação, Iréne obteve o premio de “miglior attrice per il film La doppia vita di Veronica”, de Krzysztof Kieślowski no Festival de Cannes. De 1992 a 1993, preferiu fazer filmes franceses de baixo orçamento a aceitar propostas de estúdios hollywoodianos (inclusive para protagonizar Proposta Indecente, papel que ficou com Demi Moore). Em 1994, Irène foi novamente aclamada internacionalmente, desta vez por Trois couleurs: rouge, também de Kieślowski. O filme recebeu três indicações ao Óscar (cf. Braga, 2012), incluindo melhor diretor, melhor fotografia e melhor roteiro original. Além de indicações para melhor filme estrangeiro das seguintes instituições: Círculo de Críticos de Nova York, National Board of Review, prêmio National Society of Film Critics e Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles. Recebeu indicações para o Cesar Award nas categorias Melhor Filme, Melhor Ator (Jean-Louis Trintignant), Melhor Atriz (ela), Melhor diretor e Melhor Roteiro. O New York Times o incluiu entre os “100 melhores filmes de todos os tempos”.
Desnecessário dizer que A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em inglês: Academy of Motion Picture Arts and Sciences - AMPAS, ou simplesmente, Academy, “é uma organização profissional honorária dedicada ao desenvolvimento da arte e ciência do cinema”, cujo conjunto dos indivíduos vive sob as mesmas normas e relações entre eles. Foi fundada em 11 de maio de 1927, na Califórnia, Estados Unidos da América. É composta por mais de 6 mil membros. Naturalmente a maior parte de seus membros é norte-americana, mas a “filiação é aberta a cineastas qualificados de todo o mundo”. No ano de 2004 a Academia possuía em seu quadro cineastas de 36 países. É conhecida no mundo pelo seu prêmio anual, Academy Awards, conhecido informalmente como Óscar. Há também o prêmio para estudantes universitários, o Student Academy Awards, que “premia cineastas graduandos e pós-graduandos”. O atual presidente da Academia é Sid Ganis.Em 1989, o governo comunista foi “derrubado” e a Polônia inaugurou a fase informalmente conhecida como “Terceira República Polaca”. Historicamente o primeiro Estado polaco foi criado em 966, com um território muito semelhante ao da moderna Polônia. Tornou-se um reino em 1025 e, em 1569, fortaleceu uma longa associação com o Grão-Ducado da Lituânia para criar a Comunidade Polaco-Lituana; esta associação desmoronou em 1795, e o território polaco foi dividido entre o Reino da Prússia, o Império da Rússia e a Áustria. O país recuperou sua Independência como a Segunda República Polaca em 1918 após a Primeira grande Guerra, mas foi ocupada pela Alemanha Nazista e pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o período de invasão e extermínio humano, o país perdeu cerca de 6 milhões de cidadãos, emergindo anos depois como a República Popular da Polônia, dentro do Bloco do Leste, sob forte influência soviética. Em 1989, o governo comunista foi derrubado e a Polônia inaugurou a fase informalmente conhecida como “Terceira República Polaca”. Atualmente, a Polônia é uma democracia liberal, membro da União Europeia, da OTAN, da OCDE e da OMC.  Um programa econômico de choque conduzido por Leszek Balcerowicz no início dos anos 1990 dotou o país de uma economia de mercado. Apesar de retrocessos temporários em índices sociais e econômicos, a Polônia foi o primeiro país pós-comunista a atingir o seu nível de PIB pré-1989. Os direitos civis foram ampliados, como a retomada da liberdade de expressão e de pensamento. Em 1991, a Polônia tornou-se membro do Grupo de Visegrád; em 1999, da OTAN, juntamente com a República Checa e a Hungria. A Polônia aderiu à União Europeia em 1° de maio de 2004.
            A Polônia é uma democracia liberal que adota o sistema parlamentarista de governo. O presidente é o chefe de Estado e o primeiro-ministro, chefe de governo. O governo compõe-se do conselho de ministros (gabinete). Incumbe ao presidente nomear o governo por proposta do primeiro-ministro, com base na maioria parlamentar (ou de coligação) da câmara baixa do parlamento (o Sejm). O presidente é eleito por voto direto a cada cinco anos. Os membros do Sejm são eleitos pelo menos a cada quatro anos por voto direto. O parlamento polaco constitui-se por duas câmaras: o senado, com cem cadeiras, e o Sejm, com 460 cadeiras. Este último é eleito por representação proporcional. Com exceção de partidos de minorias étnicas, apenas as agremiações que ultrapassem 5% dos votos nacionais podem ter deputados no Sejm. Quando em sessão conjunta, o senado e o Sejm formam a Assembleia Nacional (Zgromadzenie Narodowe), convocada quando o presidente assume o cargo, é indiciado pelo Tribunal de Estado ou é declarado incapaz devido a sua saúde. O poder Judiciário inclui o Supremo Tribunal da Polônia (Sąd Najwyższy), o Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Estado. O atual presidente é Bronisław Komorowski, sucessor de Lech Kaczyński, o qual faleceu num acidente aéreo no dia 10 de abril de 2010 na região do aeroporto de Smolensk, no oeste da RússiaOs quatros últimos filmes do diretor foram realizados através de uma produção francesa: “La Double Vie de Véronique” (1991, 94 minutos, estrelando Irène Jacob) e a “Trilogia das Cores”: “Bleu” (1993), “Blanc”, (1994), “Rouge” (1994). No caso do filme: “Bleu”, a atriz francesa, Juliette Binoche nascida no ano de 1964 em Paris, filha de atriz e de um escultor que se divorciaram quando ela tinha 4 anos. O seu primeiro filme foi Liberty Belle (1982), não passando despercebida em Rendez-Vous (1985) e Mauvais Sang (1986), mas só chamou a atenção da crítica internacional no filme de Philip Kaufman: The Unbearable Lightness of Being (“A Insustentável Leveza do Ser”, 1988). O seu aspecto gracioso e delicadamente “mignone”, na falta de melhor expressão, que emprestou inocência aos filmes: Vie de Famille (1984), Je Vous Salue Marie (“Eu Vos Saúdo, Maria”, 1985) evoluiu para a mulher fatal que seduziu Jeremy Irons em: Fatale (“Relações Proibidas”, 1992). Em 1993, Juliette Binoche ganhou o César da Melhor Atriz e o Prémio da Melhor Atriz no Festival de Cinema de Veneza com o filme: Trois Couleurs: Bleu (“Azul”) um dos títulos da trilogia de Krzysztof Kieslowski. Retirou-se para ser mãe em 1994, voltando à tela como a heroína de Le Hussard Sur le Toit (1995) e nesse mesmo ano foi escolhida pela Empire Magazine como uma das 100 estrelas mais sexys da história do cinema.
No caso de “La Double Vie de Véronique”, ao assistir na sequência percebem-se as correlações que existem entre as distintas histórias, as cores da bandeira francesa e o slogan da revolução clássica burguesa. O toque de Kieslowski está na sua representação das palavras “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” e na forma em que as cores dão o ambiente psico-afetivo da história política. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes. Depois do último filme da trilogia o diretor anunciou a sua aposentadoria “devido ao fato de estar cansado de fazer cinema”. Ipso facto, salvo engano, como cristão começa a escrever o roteiro da trilogia “Paraíso, Purgatório e Inferno”, baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri. Kieślowski morre em 1996, aos 54 anos, sem concluir esses filmes. Contudo, em 2002, Tom Twyker filma o roteiro de “Paraíso”, idealizado pelo magistral cineasta polonês. 
  O filme: Trois couleurs: Bleu, em francês; e originalmente, Trzy kolory: Niebieski, em polonês (Br: A Liberdade É Azul / Pt: Três Cores: Azul) é um filme francês, polaco e suíço de 1993, do gênero drama, dirigido pelo cineasta polonês Krzysztof Kieślowski. É o primeiro filme da série “Trilogia das Cores”, baseada nas três cores da bandeira francesa, e nas três palavras do lema da Revolução Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade. O toque de Kieślowski está na sua representação das palavras “liberdade, igualdade e fraternidade” e na forma que as cores dão o ambiente psicológico da história. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes. Foi seguido pelos filmes: Trois couleurs: Blanc (1994) e Trois couleurs: Rouge (1994). Neste filme, “A Liberdade é Azul”, Julie é a esposa de um renomado maestro e compositor francês que morre em um desastre automobilístico com a filha do casal, de apenas cinco anos de idade. A mulher, única sobrevivente da tragédia, vê-se na situação de ter que lidar com essas perdas e seguir sua vida, recebendo a encomenda de finalizar uma composição para coro e orquestra que havia sido encomendada ao seu esposo, uma canção pela unificação da Europa. A tarefa a levará a descobrir detalhes da vida do esposo que ela desconhecia, e a se envolver com outro homem, amigo do casal.                                           
Desnecessário dizer que o mito, antropologicamente falando, ensina que “cada ser humano possui um duplo, chamado exatamente doppelgänger, que é fisicamente idêntico a si”. Doppelgänger, segundo as lendas germânicas de onde provém, “é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar”, como dando uma ideia de que cada pessoa tem o seu próprio. Ele imita em tudo a pessoa copiada, até mesmo as suas características internas mais profundas. O nome Doppelgänger se originou da fusão das palavras alemãs: doppel significa “duplo, réplica ou duplicata”, e gänger, “andante, ambulante ou aquele que vaga”. Um mito, do grego antigo μυθος, é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os fenômenos naturais, às origens do Mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis. Ao mito está associado o rito. O rito é o modo de se pôr em ação o mito na vida do homem - em cerimônias, danças, orações e sacrifícios. Este duplo está em algum lugar do planeta, e se conecta ao seu idêntico por laços afetivos e emocionais de natureza sobrenatural. A ideia casa perfeitamente com as teorias sobre “coincidências”, “acasos” e “destinos” que Kieślowski já vinha desenvolvendo desde o “Decálogo”, que fizera para a TV polonesa em 1989 e reproduzida em São Paulo pela TV Cultura.  Nada mais natural que, ao migrar para o país que fora no século XIX o centro difusor maior da ideia do doppelgänger, Kieślowski aproveitasse o tema para continuar abordando a temática das “ligações invisíveis entre pessoas que não se conhecem”. Para o que nos interessa,
Per non smarrire la strada del percorso cinematografico di Irène Jacob, si deve prendere una mappa e una penna: un esordio in Francia con due maestri della storia del cinema europeo (Louis Malle e Jacques Rivette), un'intesa speciale con il polacco Kieslowski, l'incarnazione della grazia di Desdemona in una delle più provocatorie trasposizioni cinematografiche di Othello e bellezza eterea ma inquieta di una pellicola firmata da Michelangelo Antonioni. Basterebbero questi nomi per ammirare una carriera in continua evoluzione che si lascia trasportare dalla magia dell'arte in luoghi e culture così diverse tra loro: dalla Francia all'Italia, passando per la Spagna e attraversando l'oceano per raggiungere gli Stati Uniti. Figlia di un fisico e di una psicologa, è l'unica femmina in una famiglia di quattro figli (un fratello è il famoso musicista jazz Francis Jacob). All'età di tre anni si trasferisce a Ginevra dove trascorre l'intera adolescenza fino a quando, diciottenne, ritorna a Parigi. Debutta al cinema con la direzione di due registi importanti (anche se interpreta due piccoli ruoli): è nel film Leone d'Oro a Venezia '87 Arrivederci ragazzi diretto da Louis Malle e in Una recita a quattro (1989) che porta la firma di Jacques Rivette, maestro della Nouvelle Vague. Dopo alcuni film passati inosservati alla critica francese (da segnalare però Le Secret de Sarah Tombelaine diretto da Daniel Lacambre, che la vede protagonista assoluta della vicenda), nel 1991 è la volta dell'artista polacco Krzysztof Kieslowski che la chiama per La doppia vita di Veronica. Il doppio ruolo rivestito dall'attrice, che impersona due donne molto simili caratterialmente ma che vivono in luoghi molto lontani tra loro, la premia come miglior attrice al festival di Cannes. A soli venticinque anni Irène è già una musa ispiratrice con il fascino discreto di chi sa fare il mestiere dell'attore con rigore e semplicità” (grifos meus).
            Kieślowski então criou duas personagens fascinantes, mas, sobretudo entre criador e criatura, o “maravilhoso” (cf. Braga, 2011), entendido por nós pela compreensão de que a filosofia tem origem na thaumadzein, o “maravilhar-se e ser tomado de espanto, o padecer, que é o mister do filósofo” (mala gar philosophou touto to pathos, to thaumadzein; ou gar allē archē philosophias hē hautē (cf. Teeteto, 155d), afirmação mais tarde citada quase que literalmente por Aristóteles, embora com uma interpretação diferente (cf. Metafísica, i, 982b9) ipso facto para elas tem a representação (εκπροσώπηση) de um jogo lúdico enfocando a ideia do duplo. Weronika (Irène Jacob, foto) é uma jovem cantora lírica que mora em Cracóvia, na Polônia. Já Vèronique (a mesma Jacob), também amante de música, vive em Paris. Elas não se conhecem, mas sentem a presença (dasein) uma da outra, muito embora não consigam explicar este sentimento. Na primeira meia hora, Kieślowski acompanha a jovem polonesa, até uma tragédia se abater sobre ela; depois, passa a espiar o cotidiano de Vèronique. Na cena mais fascinante do filme, salvo engano, as duas quase se cruzam, em uma praça na Polônia, durante uma manifestação política estudantil. Uma fotografia fortuita documenta a presença das duas mulheres idênticas no mesmo local. Isto é maravilhoso (thaumadzein)!
Tese: No caso específico de “La Double Vie de Véronique” (1991), temos um poema visual sobre a solidão. O filme nos propõe um interessante questionamento: e se existir, em algum lugar do mundo, alguém igual a nós, um “duplo”, por assim dizer? Kieślowski parte dessa ideia curiosa para explorar os paralelos entre suas personagens. Weronika parece feliz e completa - de alguma forma ela sempre sentiu a presença de sua “irmã”. Já Véronique, quando a conhecemos na história, sente a solidão (Kierkegaard) que todos nós sentimos. Sua solidão é proveniente não apenas da sua desconexão com outros ao seu redor, mas também da falta que ela passa a sentir da outra. Ao longo da história ela progressivamente passa a ser um pouco mais como Weronika, mas a comovente cena final parece indicar que a sua solidão veio para ficar.            
É da ordem da solidão que trata o filme. Kieślowski adiciona alguns momentos curiosos na trama. Breves momentos, como o do advogado anão ou o homem que abre o casaco para Weronika no meio da rua, intrigam o espectador e parecem estar lá para nos lembrar de que a vida é estranha. Se a vida é estranha, a ideia de haver duas pessoas idênticas, vivendo vidas separadas, mas de alguma forma conscientes da presença uma da outra, não parece tão inacreditável. Vamos de um lado para o outro em nossas vidas e não podemos saber tudo, quase nunca temos uma explicação nem a visão completa das coisas. Somos como Weronika, observando o mundo numa viagem de trem, olhando através de uma bola de vidro. A imagem é distorcida, apenas uma reflexão da realidade. Assim é o cinema poético de Kieślowski. Incomum e ligeiramente distante da realidade, mas repleto de beleza, mesmo assim.
            Na Polônia, a jovem Weronika (Irene Jacob) vive com o pai e consegue ser aceita como cantora em uma orquestra, porém aos poucos ela apresenta problemas de saúde e acaba falecendo após sua apresentação de estreia. Ao mesmo tempo na França, Veronique (Irene Jacob também) é uma jovem idêntica à garota polonesa, que também vive com o pai e tem o mesmo talento para a música. Sua vida muda após assistir a um show de marionetes comandado pelo escritor Alexandre Fabbri (Philippe Volter). Veronique sente-se atraída pelo sujeito e decide desistir da carreira de cantora. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, este filme apresentou ao mundo o trabalho do diretor polonês, Kieślowski sendo extremamente elogiado pela crítica, assim como a interpretação de Irene Jacob que venceu o prêmio de melhor atriz no mesmo festival. Deixar-se levar pela magia e melancolia (Walter Benjamin) de uma história. Essa mistura de fantasia e drama que Kieślowski proporciona encanta desde o início.
Do simples descobrimento de mundo das protagonistas até a apresentação da polonesa Veronika, a película já traz todo o estilo do diretor e como ele tratará do desenvolvimento da trama. Veronika é apaixonante e Kieślowski faz questão de ressaltar as qualidades da moça em sua direção. Com “super-closes”, ele capta as expressões doces e suaves da personagem. E então, a princípio, o close da protagonista cantando na chuva mostra toda a sua felicidade com o simples ato de cantar, Antek apaixonou-se. Paixão não se explica. As diversas possibilidades de mundos paralelos em um único continente. As vidas paralelas, no sentido quase epistemológico do conceito, são diferenciadas pelas inúmeras possíveis escolhas que são feitas em cada uma dessas possíveis vidas. Ambas protagonistas são amáveis e possuem relações familiares fortes e, como é aparentemente fácil notar, possuem uma ligação marcante com a música, para ser mais preciso, com a arte do canto.
Em plena década de 1990, o continente europeu vive uma fase de discordâncias e as moças vivem em universos distintos separados pela economia e cultura, uma na Polônia e outra na França, assim a proposta do diretor e roteirista fica clara quanto à intenção de ressaltar essas diferenças com a possibilidade de serem dois mundos paralelos. Diferente de tudo que sabiam, as jovens sentem essa proximidade. “A Dupla Vida de Veronique” é um filme para ser sentido. Mais do que remeter aos sentidos, a obra faz diversas alusões a elementos lúdicos e oníricos, deixando a cargo do espectador e de sua experiência de vida a sua identificação e o seu entendimento de aspectos apreciáveis da realização. Desse modo, além de ser direcionado à autoridade final - o espectador -, este mesmo ser que vê se torna, em certo sentido, o seu próprio narrador a partir das conexões que consegue estabelecer com sua história pessoal. Ele é o personagem fora-de-campo, ainda que dentro da história. Um exemplo do proposto é, a despeito do elemento fantástico (thaumadzein), a identificação que alguns espectadores podem estabelecem com a possibilidade de existir outro indivíduo igual a si em algum outro lugar. Possibilidade essa levada em conta com relativa frequência, em especial dentro do universo infantil, em diversas culturas. Bibliografia geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, “O maravilhoso (e misterioso) em Krzysztof Kieślowski & Cia”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2011/06/07/; Idem, “O Tapete Vermelho do Óscar 2012 - Viva a nostalgia”. Disponível em: http://estudosviquianos.blogspot.com.br/2012/02/; BRITO, J. B. de, “Oscar - os ignorados”. http://imagensamadas.com/tag/academia-de-hollyood, 2012; Artigo: “Irène Jacob - L`inquietudine di una musa discreta”. In: http://www.mymovies.it/biografia/; LESCH, Walter; LORETAN, Matthias, “et al”, Das Gewicht der Gebote und die Moglichkeiten der Kunst: Krzysztof Kieślowskis Dekalog Filme als ethische Modelle. Freiburg, Schweiz: Universitatsverlag; Freiburg: Herder, 1993; KIESLOWSKI, Krzysztof Piesiewicz, Raj, czyś'ciec, pieklo: [three novels in one case]. Warsaw: Skorpion, 1999; SATRIANI, Lombardi, Antropologia culturale e analisi dela cultura subalterna. Milano: Rizzoli Editore, 1980; Premio miglior attrice per il film La doppia vita di Veronica di Krzysztof Kieślowski. Festival di Cannes, 1991; ENGELS, Friedrich, “O Aniversário da Revolução Polonesa de 1830”. Publicado pela primeira vez em La Réforme, de 5 de dezembro de 1847; BENJAMIN, Walter, Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a Literatura e História da Cultura. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1993, Volume I; GINZBURG, Carlo, “Um lapso do Papa Wojtyla”. In: Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; COSTA, João Paulo, “´Quero te bem`: dialéctica no Pátio?”. In: http://www.patiodosgentios.com/reflexao-teologica/quero-te-bem-dialectica-no-patio/. Escrito a 23 de Março de 2012; STOK, Danusia (ed.), Kieślowski on Kieślowski. London: Faber & Faber, 1993, pp. xiii-iv; Artigo: MERTEN, Luiz Carlos, “Um grande Kieslowski”. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/; artigo: “Sessões entrevista: Krzysztof Kieślowski”. In: http://sessoesdecinema.blogspot.com.br/2011/07/; DEBORD, Guy, Commentaires sur la societé du spectacle. Paris: Galimar, 1966; DELEUZE, Gilles, Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974; Idem, Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976; Idem, Cinéma I: l`Image-Mouvement. Paris: Minuit, 1983; Idem, Cinéma II: l`Image-Temps. Paris: Minuit, 1985; Idem, Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997; Idem, Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988; Idem, & GUATTARI, Felix, El Antiedipo. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1980; MACHADO, Roberto, Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990; DIAS, Sousa, Lógica do Acontecimento - Deleuze e a Filosofia. Porto: Afrontamento, 1995; SPADARO, Antonio, Lo sguardo presente: una lettura teologica di ´Breve film sull'amore` di K. Kieślowski. Rimini: Editore Guaraldi, 1999; ULPIANO, Cláudio, O pensamento de Deleuze ou a grande aventura do espírito. Tese (Doutorado). Campinas: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, 1998; WAHL, François, “O copo de dados do sentido”. In: ALLIEZ, Éric (org), Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000; ŽIŽEK, Slavoj, The Fright of Real Tears: Krzysztof Kieślowski Between Theory and Post-Theory. London, 2001; WIZNER, Dariusz, Stile cinematografico di Krzysztof Kieślowski. Thesis. Roma: Universita Pontificia Salesiana, 2002; HALTOF, Marek, The cinema of Krzysztof Kiéslowski - variations on destiny and chance. Grã-Bretanha: Wallflower Press, 2004; BROWNE, Nick, “O espectador-no-texto: a retórica de No tempo das diligências”. In: RAMOS, Fernão P., org., Teoria Contemporânea do Cinema - Documentário e narratividade ficcional. Volume II. São Paulo: Editora SENAC, 2005; CARREIRO, Rodrigo, “Primeira produção internacional de Kieslowski investiga de modo delicado o mito europeu do doppelgänger”. Texto publicado em 04/12/2006 no Cine Repórter; MESTRINER, Roger, “O encontro de opostos inconciliáveis: analisando A Dupla Vida de Véronique”. Texto publicado em 15/06/2009 na RUA - Revista Universitária do Audiovisual, entre outros.

CIÊNCIAS COM FRONTEIRAS: A EXCLUSÃO DAS HUMANIDADES PELO MEC

Por Alyson Freire, enviado para o Jornal Catarse pelo professor Alípio Freire da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde é professor do Curso de Ciências Sociais.   
Como um veículo idealizado por cientistas sociais, e, mais importante, feito a partir dos conhecimentos aprendidos nas Ciências Sociais, a Carta Potiguar não poderia deixar de se manifestar a propósito da suspensão da liminar que determinava a inclusão dos cursos da área de Ciências Humanas no programa Ciência Sem Fronteiras do Ministério da Educação (MEC). A decisão do Tribunal Federal da 5ª Região e o entendimento do MEC sobre a natureza do Programa devem ser não apenas lamentadas e repudiadas, mas, como convém a postura das Humanidades, analisadas e discutidas.  Muito embora, bastasse para verificar o déficit em Humanidades no Brasil confrontar a realidade social do país e as percepções enviesadas e estreitas sobre esta, e, assim, constatar, com certa melancolia, os enormes desafios e incompreensões que existem acerca das questões públicas.
A indignação gerada não pode, porém, embotar a reflexividade exigida para produzir, de uma só vez, um entendimento claro do que está em disputa no CsF e, sobretudo, uma crítica aos pressupostos tácitos que o presidem. Afinal de contas, as Ciências Humanas notabilizam-se precisamente por constituírem um tipo de trabalho intelectual cujo cerne consiste em sua capacidade ímpar de elaborar autorreflexão crítica, a partir da qual a sociedade pode dispor das ferramentas para pensar a si mesma como problema e fenômeno humano, aberto e contingente, e, desse modo, entender por meio de que processos sociais e históricos as coisas se tornaram de uma forma e não de outra.
A posição do MEC e a interpretação da Justiça não são simplesmente neutras e técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que expressam, por um lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e, por outro, concepções e valores acerca das classificações das ciências e o papel destas no interior de um projeto determinado de sociedade e desenvolvimento.
A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do Ciências sem Fronteiras ou que áreas devem ser priorizadas no financiamento de bolsas, intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito da visão de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar uma determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a concepção de certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa polêmica resume-se a questão de definir os parâmetros pelos quais a sociedade deve ser organizada e estruturada para atingir os tão almejados fins do desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país e a vida das pessoas devem trilhar para alcançar um estágio elevado de bem-estar humano, segurança, conforto e liberdade.
Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no Ciências Sem Fronteiras? Ora, uma ideia redutora e estreita de “desenvolvimento” que o identifica prioritariamente com crescimento econômico e progresso tecnológico puro e simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade desenvolvida é sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e criativa de indústrias e empresas, aumento da renda per capita e da disponibilidade de recursos humanos hiperqualificados do ponto de vista técnico, etc.. Sem satisfazer esses indicadores e critérios uma sociedade não pode considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta concepção tecnicista de progresso.
É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas divisões adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse paradigma, as Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas para fomentar as condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de progresso porque seus resultados e inventos podem ser diretamente aplicados e apropriados pelo Estado e pelas empresas, segundo, obviamente, os interesses estratégicos de dominação política, militar, social e econômica. Por isso, a elas reservam-se as melhores oportunidades de recursos e investimentos.
O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos no campo das ditas “ciências duras” ganha prioridade sobre todos os demais por conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições de apoio e fomento com uma determinada visão de progresso, assim como pela força dos interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para manter sua governabilidade –  esse comprometimento pode ser observada no conjunto de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por exemplo a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e Mercado) neste processo. Elas seriam “ciências moles”, imprecisas e teóricas, e o progresso necessita de “ciências duras”, fálicas e masculinas, as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de serem suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento numa sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e androcentrismo na ideia de “ciências duras e moles” não é nada gratuita e acidental – o que reforça o argumento de a ciência existe num contexto de valores, representações e repertórios culturais.
A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para obter o devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem mais o resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O valor e as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas sobre progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo papel que elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a finalidade de atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do crescimento econômico – PIB, renda per capita, etc..
Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica e biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o mercado e as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios técnicos e humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento econômico de uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da formação de quadros hiperqualificados para o mercado e suas necessidades.
O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção de desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente expressa no Ciência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências Humanas do CsF é resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista de conceber o progresso de uma sociedade. Nesta concepção de desenvolvimento, o sucesso de uma sociedade é medido pela elevação das riquezas que um país produz mais do que a forma e o grau com que ele a distribui; mais pela quantidade e exploração de recursos que ela capaz de realizar do que pela qualidade dos serviços públicos básicos que oferece; mais pela industrialização do que pelo impacto que ela causa nas condições ambientais e de existência das pessoas; mais pelo progresso tecnológico e quadros qualificados que possui do que pelo grau de participação política e social das pessoas na vida pública.
O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento de outros indicadores qualitativos e sociais ligados ao que o economista Amartya Sen chamou de expansão das “liberdades substantivas” e das capacitações para o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen, desde as liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de condições para evitar subnutrição e a mortalidade precoce e capacidades de promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida política da sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).
Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia, defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as Ciências Humanas possuem um papel central e pertinente como “indutoras” das condições de desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das liberdades reais e na efetivação das capacidades humanas são resultados, em larga medida, de fenômenos humanos, isto é, de processos, instituições e estruturas sociais que modelam o destino das pessoas, suas chances de vida e oportunidades.
Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram, de maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e restrições que impactam enormemente o exercício dos direitos e o desenvolvimento das capacidades pessoais, então, a contribuição das Ciências Humanas é indispensável e inestimável para reverter tal quadro. O entendimento, com clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a reprodução da pobreza, da violência, da ineficiência institucional, os conflitos entre grupos, a exploração e injustiça econômica, os dramas interpessoais, a desigualdade e marginalização social, a privação de direitos em razão de estigmas e preconceitos, entre tantos outros, somente é possível mediante um consistente conhecimento e pesquisas pertencentes ao campo das Ciências Humanas. Esses conhecimentos podem ser convertidos em políticas públicas e reformas políticas. No entanto, a contribuição das Ciências Humanas não se esgota em oferecer informações úteis que servirão de matéria para políticas sociais.
As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável de desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de vistas morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a noção de desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades subjetivas e causais do comportamento e pensamento humanos, situando-os histórica e socioculturalmente, é o seu principal mérito. O esclarecimento que as Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento não tanto da ordem da previsão e do controle dos fenômenos mas da reflexividade dos sujeitos sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações – o que pode servir tanto numa escala individual quanto, também, numa escala coletiva para governos comprometidos com reformas e movimentos sociais engajados na luta por transformações sociais.
Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas do CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível acerca do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em particular para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas sociais responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior emancipação, liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar os pressupostos tácitos que governam as tentativas políticas de superação e solução desses mesmos mecanismos e estruturas.
De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas contribuem com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas podem fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo sobre os fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e, também, acerca das implicações dos valores, compreensões e aspirações em nome dos quais esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O investimento em conhecimentos orientados para a explicação dos fatos humanos e para o esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos assumem e praticam em suas percepções e aspirações é um fator indispensável para qualquer sociedade que se pretenda desenvolvida num sentido mais pleno da palavra. Engenharias e tecnologias ajudam a construir e fazer crescer um país, mas não produzem por si mesmas compreensões capazes de impulsionar um processo de autoentendimento sobre o país, seus dilemas e ambições.
A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa Ciências sem Fronteiras abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos rumos que o Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão de “pensar e entender o Brasil” para além das categorias econômicas mais redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco ultrapassado, é antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e ameaçador.

sábado, 19 de janeiro de 2013

O QUE FAZ A ADMINISTRAÇÃO DE UM PREFEITO SER RUIM?

Benedito Carvalho Filho

O último número do Jornal Pessoal, o nº 528, traz como matéria de capa o prefeito sorridente e cheio de ânimo penetrando no seu gabinete. Ao lado da sua mesa uma bomba relógio armada e o tic-tac do relógio.
O simbolismo, segundo a minha interpretação, é que o novo alcaide corre contra o tempo e terá como desafio administrar uma cidade arrasada, como a maioria das cidades brasileiras durante várias décadas.
A carta aberta do jornalista Lúcio Flávio Pinto afirma, entre outras coisas que a vitória de Zenaldo Coutinho terá que ser legitimada por mudanças imediatas, pois Belém não suporta mais a degradação da vida pública que, segundo o jornalista, está indo para o bebeléu.
Ao ler cuidadosamente a Carta Aberta por Belém, assim com a lista de propostas feita pelo jornalista, não pude deixar de me perguntar: o que faz a administração de um prefeito, ou mesmo do governador, ser ruim? Será que é somente a falta de compromisso com a população? Ou porque pensa somente nos seus interesses particulares, aliando-se com grupos econômicos que só querem, como na lei de Gerson, levar vantagens em tudo?
Um prefeito quando ganha uma eleição é membro de um partido. Para ganhar uma eleição, como fez Zenaldo Coutinho, assumiu compromissos, fez alianças, foi fortemente apoiado pelo governo estadual, que financiou a sua campanha. Ele não age movido somente por seu voluntarismo e, dependendo, do perfil do partido que faz parte, terá uma margem de manobra para governar, porque, afinal de contas, ele não é somente um administrador, mas sobretudo um político, como seus projetos, suas ambições, como bem nos ensinou Maquiavel.
Acho as propostas do jornalista exposto da sua Carta Aberta excelente, mas falta um ingrediente de fundamental importância: o povo, a organização popular. A Carta redigida por um cidadão como o Lúcio Flávio é louvável – e quantas ele já fez nas administrações anteriores e restou só o silêncio, como ele mesmo reconhece.
Não acredito em um prefeito, seja lá de que partido for, se não for capaz de abrir o diálogo e a interlocução  com os governados, com a sociedade, o que não significa ser populista ou demagogo. Um prefeito se torna ruim não só quando não tem ética, mas quando se encontra diante de uma sociedade civil débil, desorganizada, amorfa, acéfala, que facilmente é seduzida por propostas que nada têm a ver com seus reais interesses.  
Gostaria imensamente – será um sonho utópico? – que as propostas do jornalista fossem apresentadas pelas representações populares da cidade de Belém e não somente por uma figura pública como o Lúcio Flávio. O governo que se diz democrático sem participação popular acaba no exemplo que o mesmo JP descreveu na matéria da página 3 (Procuradores do Estado são advogados do povo?),onde o que se viu uma festa dos notáveis, pessoas bonitas, bem vestidas e perfumadas, a massa cheirosa, como dizia uma jornalista de um jornal paulista.
Também pensei: será que as propostas apresentadas na Carta Aberta correspondem às principais reivindicações da grande maioria da população belenense? Por exemplo: por que um Museu do Cirio? Assim poderiam ser questionadas varias outras propostas.
O meu receio não é o possível silêncio do alcaide, mas o silêncio do povo de uma cidade que se vê diante de problemas graves e se sente impotente para agir diante da corrupção que cresce e aparece a partir das oportunidades proporcionada pela falha em administrar em escala e a complexidade com sucesso.
O povo brasileiro, e o paraense, em particular, é um povo trabalhador, ao qual infelizmente ainda faltam habilidades necessárias para administrar os sistemas complexos criados espontaneamente por uma população que se multiplicou por dez ao longo do último século. Belém é uma das 13 cidades brasileiras com mais de 1 milhão de habitantes, onde existem ineficiências e injustiças.Uma das prioridades de um alcaide, deveria ser a educação, a criação de uma melhor infraestrutura nos bairros, que proporcionasse um melhor atendimentos de saúde e outros aspectos, cujas deficiências o povo que reside nas chamadas Baixadas conhece muito bem, e, por isso, merece ser ouvido.
 Um prefeito que não foca sua administração na educação é um prefeito ruim, que governa para a massa cheirosa. A educação não apenas para reduzir as desigualdades, mas para dotar a população de senso crítico, pois sem saber ler e escrever ela não terá acesso às informações e não poderá participar da vida pública, e muito menos ler o Jornal Pessoal, como afirmei no meu último comentário.
Espero que esse pequeno espaço incentive um maior debate na cidade. Tenho a esperança que a Carta Aberta do JP seja aberta e destinada não só ao prefeito da cidade, mas lida, discutida e ampliada pelas reivindicações do povo desta cidade onde nasci e cresci.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O MUNDO INVISÍVEL DO TRÁFICO

                                    



                                                         
                                                                         Benedito Carvalho Filho
                                                                         Sociólogo, publicado
                                                                         No Jornal Pessoal, Belém-PA

O Jornal Pessoal nº 525, da segunda quinzena de novembro oferece aos seus leitores dados para refletir sobre a violência no país e na Amazônia. No ranking das 50 cidades mais violentas do mundo, segundo a pesquisa feita por uma organização não governamental do México chamada Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, Belém é a 10ª cidade mais violenta do mundo, entre as 50 relacionadas na pesquisa.
Logo em seguida, no mesmo número do JP, na página 3, temos duas longas páginas na matéria chamada “O mundo do crime no mundo da lei”, onde o jornalista tece longo comentário sobre o livro de Marina Magessi, Duro na queda, publicado pela Editora Objetiva. Trata-se de um relato dos 18 anos de uma pessoa que foi uma autoridade na polícia no Rio de Janeiro.
Ao concluir a leitura dessas duas matérias que o jornal ofereceu ao público não pude deixar de me fazer algumas interrogações:
Que relação existe, por exemplo, entre o fato de Belém ser a 10ª cidade mais violenta do mundo e o tráfico de droga, do qual o Rio de Janeiro, com suas favelas e seus líderes narcotraficantes, constitui o cenário mais visível? 
Por que a violência vem aumentando no Brasil e no mundo e que relação haverá entre esse crescimento e o aumento da corrupção, da lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas, cada vez mais sintéticas e que movimentam milhões de dólares?
Por que a violência assustadora em São Paulo neste momento em que policiais e traficantes se confundem e nos faz ver que a luta não é entre mocinhos e bandidos, como quer nos fazer crer a política repressiva do governador do Estado, que recentemente viu cair seu Secretario de Segurança?
Por que o Brasil tornou-se o país de elevado consumo de cocaína e maconha? Por que a criminalidade dos potentes elegeu o Brasil – país que paga as taxas de juros mais elevadas do planeta – como lugar no qual o dinheiro é multiplicado?
Por que – e de que forma – o dinheiro dos poderosos, sem origem, vai para os paraísos fiscais e retorna para ser investido, em nome de empresas offshore?
Que mãos invisíveis no Brasil atuam nesse mundo invisível do narcotráfico e quais seus personagens, que raramente aparecem nas notícias da mídia nem nos inquéritos policiais?
Ao ler os livros de Argemiro Procópio, O Brasil no mundo das drogas (Editora Vozes, 1999) e de Alessandra Dino e Wálter Franganiello Maierovich chamado Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa, (Editora Unesp) chegaremos à dramática conclusão de que o que vemos e sabemos sobre esse mundo é quase nada. Talvez seja essa a razão de “ninguém se espantar, se indignar nem reagir”.
Não é possível se espantar e se indignar com aquilo que não se conhece e que não aparece nas telas da mídia e em matérias jornalísticas de outros veículos de informação para o grande público. O mundo das drogas é o mundo do silêncio, da cumplicidade, no qual saber muito pode custar a própria vida. É o quer acontece diariamente nas cidades amazônicas, como Belém e Manaus, onde todo dia são assassinados pequenos comerciantes de drogas, devedores nesse mercado subterrâneo, onde a vida não vale nada. 
Por trás da venda de drogas ao consumidor, que concentram os fabulosos capitais do narcotráfico, existe uma economia invisível, onde lucros fabulosos são lavados na economia formal, como nos mostra Argemiro Procópio no seu livro; onde a Amazônia (colombiana, peruana, boliviana e brasileira, ligadas à rede mundial) desempenha um papel fundamental. Uma parte vai para o “consumo doméstico” no país e outra é exportada para a Europa e para os Estados Unidos.
Mário Magalhães, no pequeno livro chamado Narcotráfico, publicado pela Publifolha, em 2000, revela os dados sobre a economia do narcotráfico no Brasil.
Diz ele:
“Foi na década de 90 que o Brasil se consolidou como o maior entreposto da droga enviada da Colômbia (fabricante de no mínimo 80% da produção mundial) para o EUA e a Europa. É o maior produtor de éter e acetona da América Latina. Essas substâncias são utilizadas na produção do cloridrato de cocaína, a dita ‘cocaína pura’”.
O governo da Colômbia afirma que 20% do fornecimento dos dois produtos químicos sai do Brasil. A fabricação de cocaiana em território brasileiro é muito pequena, apesar de haver plantação de epadu, uma variedade de coca, na Amazônia.
A única droga ilícita produzida em larga escala no território brasileiro é a maconha – diz ela. O resto vem de plantações no Paraguai. Cocaina, crak, heroína (em pouca quantidade), anfetaminas e metanfetaminas (como o ecstasy, droga sintética popular entre clubbers) provêm na quase totalidade do exterior.
Para Magalhães, como o narcotráfico se espalha subterraneamente, em organizações de caráter transnacional, multinacional do crime, é difícil saber com precisão muitos dados. Mas, citando dados da Justiça dos Estados Unidos, um procurador de lá afirma que o narcotráfico no Brasil fica com 5% a 10% do bolo mundial. Considerando os US$400 bilhões que o comércio de droga globalizado envolve por ano, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), a fatia nacional iria de US$ 20 bilhões a US$ 40 bilhões.
E faz a contabilidade:
“Com os US$ 20 bilhões (o equivalente a R$ 36 bilhões em maio de 2000), é possível comprar na planta 450 mil apartamentos de três quartos do Plano 100 em São Paulo, 2.320.185 carros Gol Special ou 270 milhões de cestas básicas na capital paulista”.
O espaço para comentar é pequeno. Esse tema levantado pelo JP é importantíssimo e mereceria estudos e debates mais aprofundados. O que o artigo constata é infinitamente pequeno. A Amazônia não é movida pela exportação de minério e o agronegócio. O comércio invisível das drogas movimenta o mercado informal da região, dá emprego para antigos e novos agricultores, com a decadência da agricultura no interior tornando-a cada vez mais inexpressiva.
Hoje, como diz Argemiro Procópio no seu livro, a economia do crime não é movimentado por marginais, mas por novos personagens, como mulheres, crianças e pessoas que jamais entrarão no mercado formal. Quem circula por Manaus sabe que um imenso número de pessoas sobrevive desse comércio. Não por acaso os shoppings centers vivem abarrotados de novos consumidores, mesmo aquele que não recebem bolsa família.

O INCÊNDIO NA FAVELA SÃO JORGE: “É A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, ESTÚPIDO!”





                           
Benedito Carvalho Filho
Sociólogo, professor da UFAM 
 

O mês de novembro de 2012 terminou com uma tragédia que abalou centenas de moradores da cidade. Na manhã nublada do dia 27 de novembro muitos moradores podiam avistar de longe uma grande e sinistra nuvem negra subindo em um dos pontos da segunda maior cidade da região Norte do país. De onde viria aquela fumaça escura? Um incêndio em alguma casa comercial, algum Shoppings Center? – perguntavam.  
Trafegando por uma das avenidas mais movimentadas da capital amazonense naquela manhã chuvosa, em meio a um trânsito caótico na  Av. Constantino Nery, uma das artérias que liga o resto da cidade ao Centro, era possível perceber que algo de anormal estava acontecendo. A avenida estava entupida de veículos, e, rapidamente, surgiam viaturas do Corpo de Bombeiro, ambulâncias, carros policiais que disputavam espaços com os carros particulares que impediam a chegada ao local do sinistro.
Os transeuntes que circulavam naquela parte congestionada da cidade observavam aquela gigantesca fumaça negra, que parecia um tornado, e percebiam que, pela dimensão das chamas, um grande incêndio estava ocorrendo. Muitos tentavam sintonizar os rádios de seus veículos em busca a informações mais detalhadas, mas já foi o tempo em que o jornalismo cobria os acontecimentos de forma imediata como se fazia nos velhos tempos, mesmo quando não existiam as parafernálias sofisticadas que têm hoje os meios de comunicação, porque os antigos repórteres de rua sumiram das redações depois do aparecimento da Internet. Também, as empresas jornalísticas se retiraram das grandes coberturas de rua, enviando repórteres para o coração do furacão, mesmo com todos os riscos. Era a imprensa à serviço da sociedade, cobrindo os acontecimentos e sentindo a dramaticidade da situação em cima da hora, sempre a serviço do distinto público.
As chamas atingiram 547 casas na chamada “comunidade” (uma nova denominação para caracterizar as favelas no Brasil) batizada com o nome de Arthur Bernardes, o brasileiro de Viçosa, Minas Gerais, advogado, presidente do Brasil entre 15 de novembro de 1922 a 15 de novembro de 1926.
Foram quatro longas (e sofridas) horas, inesquecíveis para os moradores do lugar.  O fogo atingiu 30 metros de altura, destruiu casas e causou medo e pânico nos moradores que viram seus pertences serem rapidamente destruídos apesar dos esforços dos 130 membros do efetivo de bombeiros e da solidariedade de pessoas que saíram de seus veículos e foram socorrê-los.
As autoridades afirmaram que a causa principal da tragédia foi a rede de fios elétricos trançados nos postes, ligações clandestinas chamadas “gatos”, tão comuns nas favelas brasileiras, principalmente nesses tempos desenfreado em que as classes populares têm acesso ao crédito e enchem suas frágeis casas de eletrodomésticos, transformando aqueles lugares num verdadeiro pavio de pólvora prestes à explodir, fazendo com que o fogo se  espalhe pelos casebres da favela,  como tem acontecido com frequência nos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro e aqui em Manaus.
 Segundo informações oficiais divulgadas nos jornais da cidade, existem quase 9 mil ligações clandestinas, que, se considerarmos cinco pessoas residindo numa casa, perfaz um total e 450 mil pessoa vivendo sob risco de incêndio, como aconteceu na Favela São Jorge.
Assim, a cidade, que vem crescendo num ritmo avassalador nas últimas décadas, sem infraestrutura e planejamento urbano, transforma-se num lócus de tragédias anunciadas sem que medidas preventivas sejam tomadas, como tem acontecido em todo o país. 
Mas existem outros “gatos” não eletrificados rondando e pondo em risco os moradores desses lugares. Francisco Palheta, líder comunitário, numa entrevista, afirmou que o incêndio estava programado e que outras tragédias já ocorreram no Igarapé do Mestre Chico, na Cachoeirinha e na Comunidade Bariri, ambas programadas para as obras do PROSAMIN,” conforme afirma no jornal A Crítica, 28 de novembro de 2012.
Uma tragédia anunciada? Estariam alguns os moradores das favelas espalhando a destruição de seu local de moradia com a intenção de receber o dinheiro da indenização?
A interrogação faz sentido, pois o governo começou a intervenção no dia 12 de dezembro de 2011. O cronograma está atrasado. Os moradores ainda não receberam o dinheiro das indenizações. As autoridades afirmam que a obra será concluída até o dia 5 de dezembro de 2013, quando 5,5 mil famílias serão retiradas das margens dos igarapés para a realização da obra. (jornal A Crítica, 28 de novembro de 2012).
O incêndio na favela Arthur Bernardes, no bairro de São Jorge, Zona Oeste de Manaus, de fato, foi um acontecimento traumático na vida da cidade. Gerou gestos louváveis de solidariedade por parte de diversos cidadãos que se deslocaram de seus empregos e de suas casas para ajudar o povo da favela nas horas difíceis, o que revela um sentimento humanitário, causando surpresa, porque muitos achavam que não mais existiam esses gestos cada vez mais raros nesses tempos cruéis em que vivemos.  
Por outro lado, uma contradição: junto com os gestos de solidariedade presenciamos ações deploráveis, como os saques por parte de oportunistas que, se aproveitando do momento, buscavam levar vantagem e roubar os pertences de pessoas tão próximas de sua condição social.
Infelizmente a rapinagem na sociedade em que vivemos espalha-se de forma desigual, mas com a mesma virulência, por todas as classes sociais nessa era sombria, onde pipocam escândalos por toda parte nessa época de jogatina do capital financeiro, onde predomina a idéia de que o importante é levar vantagem, como na Lei de Gerson.
São tempos de barbárie assumindo feição brutal e cruel, onde o importante é ter, consumir, mesmo que tenha que passar por cima do cadáver de seu irmão mais próximo, o que  nos faz descrer no ser humano. Banqueiros milionários e pobres coitados, nessa era de “vida para o consumo”, como denominou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, transformam as pessoas em mercadorias, onde as cidades passaram a ser espaços de medo e insegurança, onde a solidariedade é substituída pela competição, fazendo com que os indivíduos se sintam abandonados a si mesmos, entregues aos seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados. A corrosão e a dissolução dos laços comunitários nos transformaram, sem pedir nossa aprovação, em indivíduos “jure” (de direito); mas circunstâncias opressivas e persistentes dificultam que alcancemos o status implícito e indivíduos de fato. (Ver do mesmo autor Confiança e medo na cidade, Editora Zahar, Rio de janeiro).
 O grande risco, mesmo diante de uma tragédia como essa, é voltarmos para a nossa rotina e, com o tempo (não muito longo), “esquecermos” do acontecimento, reação muito conhecida quando nos sentimos impotentes para compreender o significado de um fato traumático em nossa vida. Evidentemente, não deixa de ser uma forma de negar o que passou, até que outra tragédia seja anunciada.
É a sobrevivência em tempos difíceis, onde gestos de solidariedade são rapidamente transformados em espetáculos da mídia para depois voltarmos à rotina dos massacres, pois a favela é sempre representada como o lugar da criminalidade, da violência, dos assassinatos, onde homens e mulheres aparecem como monstros, como afirmou Agamben, no seu livro Homo Sacer; o poder dos soberanos, como os homens “sem direitos”, os “matáveis”,. 
Será que o povo de Arthur Bernardes será lembrado daqui há dois ou três meses?  Sob que condições se encontram nesse momento, quando a festa de Natal se aproxima? O governo manterá o compromisso de fornecer o aluguel social, cesta básica e os objetos necessários prometidos aos desabrigados?  
ALÉM DA TRAGÉDIA
Seria lamentável que a tragédia na favela São Jorge, ficasse reduzida somente aos gestos de solidariedade a que nos referimos acima e não buscássemos elementos mais críticos e racionais para compreendermos o que se passa em nossa cidade, porque esse acontecimento não foi um fato esporádico nem um castigo divino trazido pelo acaso da vida. A tragédia que fez o fogo destruir 394 domicílios, desalojando adultos e crianças, e que o Secretário do governo Hermógenes Rabelo, afirma ser um dos maiores incêndio dos últimos tempos é obra do próprio homem.
Por isso é preciso perguntar: o que é hoje a cidade de Manaus? Para quem é feita essa cidade? Para uma maioria ou para uma minoria? Quais são as formas de viver, morar e morrer na cidade? A cidade tem crescido como e para quem? Seu crescimento é planejado?  Quem de fato se beneficia da cidade, de seu espaço urbano, da saúde, da educação e dos empregos? Manaus é uma cidade justa?
Algumas dessas perguntas não aparecem nos noticiários nem nos comentários dos chamados especialistas, onde certamente muitos nunca pisaram os seus pés numa favela, mesmo residindo nas suas proximidades.
Por que os moradores dessas chamadas “comunidades” utilizam-se dos chamados “gatos” nas suas residências? Qual a renda desses moradores? Eles têm condições de pagar a energia elétrica, a água encanada fornecida pessimamente (diga de passagem) pelo serviço público?
O que vai acontecer depois da revitalização do Igarapé de Cachoeira Grande, de onde serão retiradas 5,5 mil famílias, que custará 73.881.591,99 milhões, na intervenção que será feita em um trecho de 1,75 km, que se estende da Ponte da Av. Brasil até o Igarapé Nova Esperança, e se estenderá pelo Igarapé dos Franceses e da Cachoeira Grande (parte da 3ª etapa do PROSAMIN) conforme noticiou a imprensa?
Quem garantirá que essas áreas onde residem esses moradores não serão valorizadas depois que as obras de saneamento estirem concluídas? Não tem sido a lógica especulativa que tem predominando e que se repete na maioria das cidades brasileiras, onde o Estado entra com a infraestrutura, a terra é valorizada, o preço sobe, e as incorporadoras imobiliárias constroem torres e condomínios fechados?
É só observar a cidade de Manaus, hoje transformada num canteiro de obra, com seus apartamentos, condomínios fechados e lojas de luxo? Será que as pessoas que irão morar nas casas do PROSAMIN resistirão à especulação imobiliária?   Conseguirão subsistir nesses locais, pagando luz, água quando muitos nem emprego têm?
A urbanista Raquel Rolnik, uma profunda conhecedora das mazelas urbanas desse país já nos advertia: “É a especulação imobiliária, estúpido!” Uma especulação visível nessa era de domínio do capital financeiro; especulação monstruosa, que não leva em conta necessidades sociais básicas da maioria da população, pois vivemos num tempo em que a política, cujo objetivo é o bem comum, é esquecida em função dos interesses econômicos e privados. Uma política econômica movida pela lógica do mercado, onde a história de vida das pessoas não são levadas em consideração nos projetos urbanísticos, elaborados, muitas vezes, nos gabinetes dos tecnocratas, sem ouvir o povo, a sociedade, a principal interessada.
Um exemplo disso são os Planos Diretores, como o da cidade de Manaus, voltados para os interesses do mercado imobiliário e não para a população mais carente e necessitada. Ou seja, a cidade deixou de ser um território chave da modernidade e da urbanidade, importante para o desenvolvimento do processo civilizatório e tornou-se num espaço loteado, onde impera o domínio de grandes negócios privados, uma espécie de tabuleiro dos bancos e negócios para poucos.
 Nessa luta darwiniana pela existência, como exigir que seus moradores, inclusive, os mais pobres atuem como cidadãos civilizadas se a lei que impera é a do mais forte? Se olharmos de outra perspectiva podemos nos perguntar se o fato de alguns moradores saquearem seus próprios semelhantes não é, na verdade, a reprodução das práticas especulativas legitimadas pelos grandes quando ocupam e especulam os espaços das cidades?  
O que acontece na cidade é consequência das políticas urbanas e, junto com elas, a injustiça social que discrimina os pobres. A verdade não admitida pelas autoridades públicas, mas visível aos olhos de qualquer pessoa bem informada, é que as cidades brasileiras, dentre elas Manaus, que se orgulha de ser a cidade que mais cresce e que mais recebe imigrante, são inviáveis porque uma grande parte da população não cabe mais nela.
Não é por acaso, por exemplo, que a população mais pobre foi morar na beira dos igarapés que circundam Manaus, sujeitas a incêndios, como esse que aconteceu recentemente na favela São Jorge, e inundações de seus infectos igarapés, quando as águas do rio Negro sobem no período das freqüentes cheias. 
Não podemos esperar que o Estado, que tenta sempre aparecer para a sociedade como neutro e à serviço  população mais pobre, seja capaz de intervir politicamente, criando as condições para a existência de uma política habitacional mais justa e voltada para os interesse da maioria. O Estado e os governos federativos e municipais na verdade governam as cidades em função dos interesses dos especuladores. Não estão preocupados com os problemas estruturais, com o planejamento e assim vão administrando a cidade e tentando resolver problemas pontuais, sempre pensando nas próximas eleições. Estender a rede elétrica e de água rende  votos, passar uma camada de asfalto numa rua, sabendo que brevemente será destruído, também rende votos e assim vai funcionando a cidade, na base do improviso, sem políticas públicas consistentes, porque nem mesmo a União sabe o que fazer com as cidades brasileiras.
É por isso que muitos bons administradores, que possuem uma visão mais competente não ousam assumir um cargo de administração em uma cidade como Manaus que em 1970 tinha 800 mil habitantes e hoje chega na casa dos 2 milhões. Sabem que o problema é estrutural, o que implica não só mais verbas, mas planejamento estratégico, o que supõe a existência de um Estado capaz de enfrentar a lógica especulativa-financeira que hoje predomina.
Não há como lutar com os poderosos interesses econômicos se sociedade amazonense e seus habitantes não criarem espaços de debates e mobilização na sociedade civil independente do Estado, pois ele tem um poder de cooptação muito grande, principalmente porque o desenvolvimento urbano, o planejamento, saiu da agenda política depois do enfraquecimento do Ministério das Cidades.
O que fazer com um população empobrecida, que não teve outra alternativa senão invadir áreas não ocupadas em terras altas e depois nas encosta, nascentes de igarapés, barrancos, antigos depósitos de lixo e tantos outros lugares, como o local em que se encontra a favela São Jorge?
É sabido que a falta de planejamento da cidade está ligado a uma concentração fundiária. Não preciso circular muito na cidade para perceber como está sendo grande o processo de concentração das propriedades. Em Manaus existe um mercado imobiliário funcionando a todo vapor. Os jornais, as propagandas e outros meios de comunicação, anunciam a venda de apartamentos e prédios milionários, alguns com valores semelhantes aos imóveis na zona sul carioca, enquanto o Poder Público (Municipal e Estadual) afirma que quer incorporar a cidade real à cidade legal através dos assentos fundiários.
Qualquer pessoa que circule pela cidade pode perceber sem muita observação que a cidade não possui infraestrutura para receber o enorme fluxo de imigrantes que para cá se desloca do interior e de todas as partes do Brasil e até de outros países em busca de empregos no Distrito Industrial. Esse aumento brutal e acelerado da população, não previsto pelo Estado, tem causado um enorme impacto na vida cotidiana da cidade, com seu trânsito caótico, o aumento crescente da criminalidade e, sobretudo, a falta de infraestrutura como hospitais, postos de saúde, escolas e outros serviços essenciais capaz de atender a sua população.
Uma grande parcela da população que vem para essa “cidade repartida”, para usar uma expressão do jornalista Zuenir Ventura, quando se referia ao Rio de Janeiro, tem pouca instrução e preparo profissional e não tendo outra alternativa senão ir para o mercado informal.
Sabemos que hoje esse vasto comércio informal não é o mesmo dos anos 70 e 80, também conhecida como economia submersa, portanto, como se dizia na época, invisível. Hoje se sabe que sob essa invisibilidade submersa se esconde hoje todo um comércio clandestino de drogas, que envolve não só aquele antigo personagem que movimentava a marginalidade. Seus atores são novos, como tem mostrado as reportagens das páginas policiais dos jornais. São inocentes donas de casa, jovens desocupados, crianças e pessoas insuspeitas que jamais imaginaríamos fazendo parte do tráfico. Esse mercado é próspero e certamente movimenta hoje uma parte significativa da economia local.
Como explicar, por exemplo, o perfil da renda do amazonense que é baixíssima quando relacionamos com o alto consumo no comércio? Como explicar as redes de shoppings lotados diante de uma população tão pobre como é a de Manaus? 
A droga já é uma realidade e mobiliza uma parte da economia local, envolvendo não só as populações pobres, mas muita gente importante da cidade. Não é sem razão que os crimes ligados ao narcotráfico tem sido constante, e mereceria um estudo mais aprofundado.[1]
Como reconhece outra estudiosa da questão urbana no Brasil, Ermínia Maricato:
“São mais de vinte anos sem política pública de habitação, saneamento e transporte. Isso passa pelo neoliberalismo e pela década perdida. São políticas ligadas ao território e não basta distribuir a renda para resolver o problema urbano. Aqui tem de distribuir ativo, que é cidade, é terra urbanizada. A questão da terra é central na política urbana, pois ela é dominada por esse mercado restrito, elitista e especulativo.”



  


[1] Não podemos esquecer que a cidade de Manaus é uma das rotas importantes  do tráfico de drogas. Como descreve Mário Magalhães no seu pequeno livro chamado O Nercotráfico, Editora Publifolha, 2000, São Paulo, o “balé das drogas”, como ele assim denomina a rota do tráfico passa por dez rotas. “A carga vem do Peru e da Bolivia e entra por Cruzeiro do Sul e Brasiléia, no Acre. Na fronteira com a Colômbia, ingressa por Tabatinga, de barco, hidroavião ou avião pequeno, como o Cessna. Depois atravessa a Bolivia e passa pelo Paraguaia, de onde por Puerto Súarez, chegando a Corumbá, Mato Grosso. Vem da Colômbia e segue de barco ou hidroavião pelo Rio Negro. No Peru, navega pelo rio Javari. Da Colombia pelo rio Iça. Em seguida a droga alcança o Porto de Manaus e vai até Belém e Macapá, de onde segue pelo Atlântico até os Estados Unidos. Sai da Bolívia, passa por Juan Caballero no Paraguaia, e entra por Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Pra despistar as autoridades, a carga da Colômbia, entra no Brasil por Roraima, segue até Manaus e recomeça um trajeto que levará até a Guiana. De lá, é despachado para a Europa, o Caribe e os EUA Vinda da Bolívia, ingressa em Rondônia e segue em caminhões carregados de madeira, até os portos de Santos e Paranaguá (PR), de onde irá para o exterior.” Esse balé, descrito em 2000, deve ter se alterado inúmeras vezes devido à repressão, mas é importante para compreendemos a sua dimensão e como Manaus se situa dentro desse contexto.