quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Kieślowski & Irène Jacob: Magia & Técnica, Arte & Política.

                                                                                                               Ubiracy de Souza Braga*

O Professor Ubiracy de Souza Braga, da Universidade Estadual dp Ceará   tem colaborado com o JORNAL CATARSE.
                          Todos os filmes que faço são sobre a necessidade de se abrir”. Krzysztof Kieslowski
                                                 A carreira cinematográfica de Krzysztof  Kieślowski (1941-1996) se divide entre a fase polonesa e a francesa (cf. Furdal e Turigliatto, 1989; Esteve, 1994; Amiel, 1995; Attolini, 1998; Furdal, 2001). Depois de concluir a faculdade, o jovem diretor começa a produzir documentários. A narrativa dos documentários (cf. Wisner, 2002; Haltof, 2004; Ramos, 2005) passa a influenciar os primeiros filmes de ficção do diretor, tais como: “A Cicatriz”, “Blind Chance” e “Amador” que são exemplos desse estilo (cf. Stok, 1993; Haltof, 2004). Mais tarde, Kieślowski realizou para a televisão polonesa uma série de filmes chamada Dekalog (1989) - “um filme por mandamento”, todos tratando de conflitos não apenas éticos e morais. Dekalog (cf. Loretan, 1993), é um projeto “difícil de classificar e árduo de descrever”. Alguns críticos preferem vê-lo não como um filme, mas, como dez médias-metragens independentes entre si. E temos no
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* Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
primeiro caso,  um funcionário do correio que obcecado por uma mulher madura e independente tenta  uma aproximação, mas é um  voyeur. O segundo, através de uma visão amarga da vida, e cena das mais chocantes da história do cinema. O provérbio chinês sobre a imagem não tem sentido para o cinema.
            
Kieślowski's early documentaries focused on the everyday lives of city dwellers, workers, and soldiers. Though he was not an overtly political filmmaker, he soon found that attempting to depict Polish life accurately brought him into conflict with the authorities. His television film Workers '71, which showed workers discussing the reasons for the mass strikes of 1970, was only shown in a drastically censored form. After Workers '71, he turned his eye on the authorities themselves in Curriculum Vitae, a film that combined documentary footage of Politburo meetings with a fictional story about a man under scrutiny by the officials. Though Kieślowski believed the film's message was anti-authoritarian, he was criticized by his colleagues for cooperating with the government in its production. Kieślowski later said that he abandoned documentary filmmaking due to two experiences: the censorship of Workers '71, which caused him to doubt whether truth could be told literally under an authoritarian regime, and an incident during the filming of Station (1981) in which some of his footage was nearly used as evidence in a criminal case. He decided that fiction not only allowed more artistic freedom, but could portray everyday life more truthfully”.
           Tese: O deslocamento entre as duas dimensões do real e do imaginário (cf. Deleuze, 1974; 1976; 1980; 1985; 1988) ocorre necessariamente por disjunção, por divergência: o transcendental (Kant) não pode se assemelhar ao empírico, “senão retornaríamos ao contexto redundante da experiência possível”. Portanto, ainda que sumariamente, diremos que sair do plano dos entes, do vivido, e mergulhar na direção do transcendental, é dissolvê-lo no denso e múltiplo conjunto de forças a partir do qual ele emerge, e de modo que o retorno só pode ser feito em nova estrada: reencontrar o ponto de partida é, em suma, não mais encontrá-lo, mas encontrar outro, pois que modificado, transformado pelas novidades e aspectos que há pouco vieram à tona. O cineasta aprimora seu estilo ao realizar seus próximos filmes. Lembramos que o “sentido-acontecimento” é sempre “extra-ser” e “extra-proposicional”, este paradoxo quer afirmar especificamente seu caráter de indiferença, nem agente nem paciente, frente aos estados de coisas, diversamente deles.
 Irène Marie Jacob nasceu em Suresnes, um subúrbio a oeste de Paris, filha mais nova de quatro irmãos. Em alguns filmes é creditada como Iren Zhakob. Cresceu em uma família de boa formação educacional e intelectual: seu pai era médico, e sua mãe, psicóloga; um irmão é músico, e os outros dois são cientistas. Em 1969, aos 3 anos, a família mudou-se para Genebra (Suíça), onde Irène começou a se interessar por artes. Irène desenvolveu interesse por representar após ver os filmes de Charlie Chaplin: “Eles me envolveram completamente”, ela lembra. “Faziam-me rir e chorar, e era exatamente o que eu esperava de um filme - que me despertassem para meus sentimentos”. Estreou nos palcos em 1977, com 11 anos. Estudou no Conservatório de Música de Genebra e obteve graduação em idiomas - ela fala inglês, alemão, francês e italiano. Em 1984, mudou-se para Paris, onde estudou teatro no prestigiado Rue Blanche, a Academia nacional francesa de drama. Depois foi a Londres, assistir às aulas do Dramatic Studio.
Em 1987, Irène Jacob voltou a Paris. Já com 21 anos, fez seu primeiro papel (uma professora de piano), dirigida por Louis Malle em: Au revoir, les enfants. Depois desse, vieram seis papéis menores em filmes franceses, em quatro anos. Em 1991, o diretor polonês Krzysztof Kieślowski a convidou para fazer o papel-título de A Dupla Vida de Véronique, sobre “duas jovens idênticas, uma na Polônia e outra na França”. Por sua atuação, Iréne obteve o premio de “miglior attrice per il film La doppia vita di Veronica”, de Krzysztof Kieślowski no Festival de Cannes. De 1992 a 1993, preferiu fazer filmes franceses de baixo orçamento a aceitar propostas de estúdios hollywoodianos (inclusive para protagonizar Proposta Indecente, papel que ficou com Demi Moore). Em 1994, Irène foi novamente aclamada internacionalmente, desta vez por Trois couleurs: rouge, também de Kieślowski. O filme recebeu três indicações ao Óscar (cf. Braga, 2012), incluindo melhor diretor, melhor fotografia e melhor roteiro original. Além de indicações para melhor filme estrangeiro das seguintes instituições: Círculo de Críticos de Nova York, National Board of Review, prêmio National Society of Film Critics e Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles. Recebeu indicações para o Cesar Award nas categorias Melhor Filme, Melhor Ator (Jean-Louis Trintignant), Melhor Atriz (ela), Melhor diretor e Melhor Roteiro. O New York Times o incluiu entre os “100 melhores filmes de todos os tempos”.
Desnecessário dizer que A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em inglês: Academy of Motion Picture Arts and Sciences - AMPAS, ou simplesmente, Academy, “é uma organização profissional honorária dedicada ao desenvolvimento da arte e ciência do cinema”, cujo conjunto dos indivíduos vive sob as mesmas normas e relações entre eles. Foi fundada em 11 de maio de 1927, na Califórnia, Estados Unidos da América. É composta por mais de 6 mil membros. Naturalmente a maior parte de seus membros é norte-americana, mas a “filiação é aberta a cineastas qualificados de todo o mundo”. No ano de 2004 a Academia possuía em seu quadro cineastas de 36 países. É conhecida no mundo pelo seu prêmio anual, Academy Awards, conhecido informalmente como Óscar. Há também o prêmio para estudantes universitários, o Student Academy Awards, que “premia cineastas graduandos e pós-graduandos”. O atual presidente da Academia é Sid Ganis.Em 1989, o governo comunista foi “derrubado” e a Polônia inaugurou a fase informalmente conhecida como “Terceira República Polaca”. Historicamente o primeiro Estado polaco foi criado em 966, com um território muito semelhante ao da moderna Polônia. Tornou-se um reino em 1025 e, em 1569, fortaleceu uma longa associação com o Grão-Ducado da Lituânia para criar a Comunidade Polaco-Lituana; esta associação desmoronou em 1795, e o território polaco foi dividido entre o Reino da Prússia, o Império da Rússia e a Áustria. O país recuperou sua Independência como a Segunda República Polaca em 1918 após a Primeira grande Guerra, mas foi ocupada pela Alemanha Nazista e pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o período de invasão e extermínio humano, o país perdeu cerca de 6 milhões de cidadãos, emergindo anos depois como a República Popular da Polônia, dentro do Bloco do Leste, sob forte influência soviética. Em 1989, o governo comunista foi derrubado e a Polônia inaugurou a fase informalmente conhecida como “Terceira República Polaca”. Atualmente, a Polônia é uma democracia liberal, membro da União Europeia, da OTAN, da OCDE e da OMC.  Um programa econômico de choque conduzido por Leszek Balcerowicz no início dos anos 1990 dotou o país de uma economia de mercado. Apesar de retrocessos temporários em índices sociais e econômicos, a Polônia foi o primeiro país pós-comunista a atingir o seu nível de PIB pré-1989. Os direitos civis foram ampliados, como a retomada da liberdade de expressão e de pensamento. Em 1991, a Polônia tornou-se membro do Grupo de Visegrád; em 1999, da OTAN, juntamente com a República Checa e a Hungria. A Polônia aderiu à União Europeia em 1° de maio de 2004.
            A Polônia é uma democracia liberal que adota o sistema parlamentarista de governo. O presidente é o chefe de Estado e o primeiro-ministro, chefe de governo. O governo compõe-se do conselho de ministros (gabinete). Incumbe ao presidente nomear o governo por proposta do primeiro-ministro, com base na maioria parlamentar (ou de coligação) da câmara baixa do parlamento (o Sejm). O presidente é eleito por voto direto a cada cinco anos. Os membros do Sejm são eleitos pelo menos a cada quatro anos por voto direto. O parlamento polaco constitui-se por duas câmaras: o senado, com cem cadeiras, e o Sejm, com 460 cadeiras. Este último é eleito por representação proporcional. Com exceção de partidos de minorias étnicas, apenas as agremiações que ultrapassem 5% dos votos nacionais podem ter deputados no Sejm. Quando em sessão conjunta, o senado e o Sejm formam a Assembleia Nacional (Zgromadzenie Narodowe), convocada quando o presidente assume o cargo, é indiciado pelo Tribunal de Estado ou é declarado incapaz devido a sua saúde. O poder Judiciário inclui o Supremo Tribunal da Polônia (Sąd Najwyższy), o Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Estado. O atual presidente é Bronisław Komorowski, sucessor de Lech Kaczyński, o qual faleceu num acidente aéreo no dia 10 de abril de 2010 na região do aeroporto de Smolensk, no oeste da RússiaOs quatros últimos filmes do diretor foram realizados através de uma produção francesa: “La Double Vie de Véronique” (1991, 94 minutos, estrelando Irène Jacob) e a “Trilogia das Cores”: “Bleu” (1993), “Blanc”, (1994), “Rouge” (1994). No caso do filme: “Bleu”, a atriz francesa, Juliette Binoche nascida no ano de 1964 em Paris, filha de atriz e de um escultor que se divorciaram quando ela tinha 4 anos. O seu primeiro filme foi Liberty Belle (1982), não passando despercebida em Rendez-Vous (1985) e Mauvais Sang (1986), mas só chamou a atenção da crítica internacional no filme de Philip Kaufman: The Unbearable Lightness of Being (“A Insustentável Leveza do Ser”, 1988). O seu aspecto gracioso e delicadamente “mignone”, na falta de melhor expressão, que emprestou inocência aos filmes: Vie de Famille (1984), Je Vous Salue Marie (“Eu Vos Saúdo, Maria”, 1985) evoluiu para a mulher fatal que seduziu Jeremy Irons em: Fatale (“Relações Proibidas”, 1992). Em 1993, Juliette Binoche ganhou o César da Melhor Atriz e o Prémio da Melhor Atriz no Festival de Cinema de Veneza com o filme: Trois Couleurs: Bleu (“Azul”) um dos títulos da trilogia de Krzysztof Kieslowski. Retirou-se para ser mãe em 1994, voltando à tela como a heroína de Le Hussard Sur le Toit (1995) e nesse mesmo ano foi escolhida pela Empire Magazine como uma das 100 estrelas mais sexys da história do cinema.
No caso de “La Double Vie de Véronique”, ao assistir na sequência percebem-se as correlações que existem entre as distintas histórias, as cores da bandeira francesa e o slogan da revolução clássica burguesa. O toque de Kieslowski está na sua representação das palavras “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” e na forma em que as cores dão o ambiente psico-afetivo da história política. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes. Depois do último filme da trilogia o diretor anunciou a sua aposentadoria “devido ao fato de estar cansado de fazer cinema”. Ipso facto, salvo engano, como cristão começa a escrever o roteiro da trilogia “Paraíso, Purgatório e Inferno”, baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri. Kieślowski morre em 1996, aos 54 anos, sem concluir esses filmes. Contudo, em 2002, Tom Twyker filma o roteiro de “Paraíso”, idealizado pelo magistral cineasta polonês. 
  O filme: Trois couleurs: Bleu, em francês; e originalmente, Trzy kolory: Niebieski, em polonês (Br: A Liberdade É Azul / Pt: Três Cores: Azul) é um filme francês, polaco e suíço de 1993, do gênero drama, dirigido pelo cineasta polonês Krzysztof Kieślowski. É o primeiro filme da série “Trilogia das Cores”, baseada nas três cores da bandeira francesa, e nas três palavras do lema da Revolução Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade. O toque de Kieślowski está na sua representação das palavras “liberdade, igualdade e fraternidade” e na forma que as cores dão o ambiente psicológico da história. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes. Foi seguido pelos filmes: Trois couleurs: Blanc (1994) e Trois couleurs: Rouge (1994). Neste filme, “A Liberdade é Azul”, Julie é a esposa de um renomado maestro e compositor francês que morre em um desastre automobilístico com a filha do casal, de apenas cinco anos de idade. A mulher, única sobrevivente da tragédia, vê-se na situação de ter que lidar com essas perdas e seguir sua vida, recebendo a encomenda de finalizar uma composição para coro e orquestra que havia sido encomendada ao seu esposo, uma canção pela unificação da Europa. A tarefa a levará a descobrir detalhes da vida do esposo que ela desconhecia, e a se envolver com outro homem, amigo do casal.                                           
Desnecessário dizer que o mito, antropologicamente falando, ensina que “cada ser humano possui um duplo, chamado exatamente doppelgänger, que é fisicamente idêntico a si”. Doppelgänger, segundo as lendas germânicas de onde provém, “é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar”, como dando uma ideia de que cada pessoa tem o seu próprio. Ele imita em tudo a pessoa copiada, até mesmo as suas características internas mais profundas. O nome Doppelgänger se originou da fusão das palavras alemãs: doppel significa “duplo, réplica ou duplicata”, e gänger, “andante, ambulante ou aquele que vaga”. Um mito, do grego antigo μυθος, é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os fenômenos naturais, às origens do Mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis. Ao mito está associado o rito. O rito é o modo de se pôr em ação o mito na vida do homem - em cerimônias, danças, orações e sacrifícios. Este duplo está em algum lugar do planeta, e se conecta ao seu idêntico por laços afetivos e emocionais de natureza sobrenatural. A ideia casa perfeitamente com as teorias sobre “coincidências”, “acasos” e “destinos” que Kieślowski já vinha desenvolvendo desde o “Decálogo”, que fizera para a TV polonesa em 1989 e reproduzida em São Paulo pela TV Cultura.  Nada mais natural que, ao migrar para o país que fora no século XIX o centro difusor maior da ideia do doppelgänger, Kieślowski aproveitasse o tema para continuar abordando a temática das “ligações invisíveis entre pessoas que não se conhecem”. Para o que nos interessa,
Per non smarrire la strada del percorso cinematografico di Irène Jacob, si deve prendere una mappa e una penna: un esordio in Francia con due maestri della storia del cinema europeo (Louis Malle e Jacques Rivette), un'intesa speciale con il polacco Kieslowski, l'incarnazione della grazia di Desdemona in una delle più provocatorie trasposizioni cinematografiche di Othello e bellezza eterea ma inquieta di una pellicola firmata da Michelangelo Antonioni. Basterebbero questi nomi per ammirare una carriera in continua evoluzione che si lascia trasportare dalla magia dell'arte in luoghi e culture così diverse tra loro: dalla Francia all'Italia, passando per la Spagna e attraversando l'oceano per raggiungere gli Stati Uniti. Figlia di un fisico e di una psicologa, è l'unica femmina in una famiglia di quattro figli (un fratello è il famoso musicista jazz Francis Jacob). All'età di tre anni si trasferisce a Ginevra dove trascorre l'intera adolescenza fino a quando, diciottenne, ritorna a Parigi. Debutta al cinema con la direzione di due registi importanti (anche se interpreta due piccoli ruoli): è nel film Leone d'Oro a Venezia '87 Arrivederci ragazzi diretto da Louis Malle e in Una recita a quattro (1989) che porta la firma di Jacques Rivette, maestro della Nouvelle Vague. Dopo alcuni film passati inosservati alla critica francese (da segnalare però Le Secret de Sarah Tombelaine diretto da Daniel Lacambre, che la vede protagonista assoluta della vicenda), nel 1991 è la volta dell'artista polacco Krzysztof Kieslowski che la chiama per La doppia vita di Veronica. Il doppio ruolo rivestito dall'attrice, che impersona due donne molto simili caratterialmente ma che vivono in luoghi molto lontani tra loro, la premia come miglior attrice al festival di Cannes. A soli venticinque anni Irène è già una musa ispiratrice con il fascino discreto di chi sa fare il mestiere dell'attore con rigore e semplicità” (grifos meus).
            Kieślowski então criou duas personagens fascinantes, mas, sobretudo entre criador e criatura, o “maravilhoso” (cf. Braga, 2011), entendido por nós pela compreensão de que a filosofia tem origem na thaumadzein, o “maravilhar-se e ser tomado de espanto, o padecer, que é o mister do filósofo” (mala gar philosophou touto to pathos, to thaumadzein; ou gar allē archē philosophias hē hautē (cf. Teeteto, 155d), afirmação mais tarde citada quase que literalmente por Aristóteles, embora com uma interpretação diferente (cf. Metafísica, i, 982b9) ipso facto para elas tem a representação (εκπροσώπηση) de um jogo lúdico enfocando a ideia do duplo. Weronika (Irène Jacob, foto) é uma jovem cantora lírica que mora em Cracóvia, na Polônia. Já Vèronique (a mesma Jacob), também amante de música, vive em Paris. Elas não se conhecem, mas sentem a presença (dasein) uma da outra, muito embora não consigam explicar este sentimento. Na primeira meia hora, Kieślowski acompanha a jovem polonesa, até uma tragédia se abater sobre ela; depois, passa a espiar o cotidiano de Vèronique. Na cena mais fascinante do filme, salvo engano, as duas quase se cruzam, em uma praça na Polônia, durante uma manifestação política estudantil. Uma fotografia fortuita documenta a presença das duas mulheres idênticas no mesmo local. Isto é maravilhoso (thaumadzein)!
Tese: No caso específico de “La Double Vie de Véronique” (1991), temos um poema visual sobre a solidão. O filme nos propõe um interessante questionamento: e se existir, em algum lugar do mundo, alguém igual a nós, um “duplo”, por assim dizer? Kieślowski parte dessa ideia curiosa para explorar os paralelos entre suas personagens. Weronika parece feliz e completa - de alguma forma ela sempre sentiu a presença de sua “irmã”. Já Véronique, quando a conhecemos na história, sente a solidão (Kierkegaard) que todos nós sentimos. Sua solidão é proveniente não apenas da sua desconexão com outros ao seu redor, mas também da falta que ela passa a sentir da outra. Ao longo da história ela progressivamente passa a ser um pouco mais como Weronika, mas a comovente cena final parece indicar que a sua solidão veio para ficar.            
É da ordem da solidão que trata o filme. Kieślowski adiciona alguns momentos curiosos na trama. Breves momentos, como o do advogado anão ou o homem que abre o casaco para Weronika no meio da rua, intrigam o espectador e parecem estar lá para nos lembrar de que a vida é estranha. Se a vida é estranha, a ideia de haver duas pessoas idênticas, vivendo vidas separadas, mas de alguma forma conscientes da presença uma da outra, não parece tão inacreditável. Vamos de um lado para o outro em nossas vidas e não podemos saber tudo, quase nunca temos uma explicação nem a visão completa das coisas. Somos como Weronika, observando o mundo numa viagem de trem, olhando através de uma bola de vidro. A imagem é distorcida, apenas uma reflexão da realidade. Assim é o cinema poético de Kieślowski. Incomum e ligeiramente distante da realidade, mas repleto de beleza, mesmo assim.
            Na Polônia, a jovem Weronika (Irene Jacob) vive com o pai e consegue ser aceita como cantora em uma orquestra, porém aos poucos ela apresenta problemas de saúde e acaba falecendo após sua apresentação de estreia. Ao mesmo tempo na França, Veronique (Irene Jacob também) é uma jovem idêntica à garota polonesa, que também vive com o pai e tem o mesmo talento para a música. Sua vida muda após assistir a um show de marionetes comandado pelo escritor Alexandre Fabbri (Philippe Volter). Veronique sente-se atraída pelo sujeito e decide desistir da carreira de cantora. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, este filme apresentou ao mundo o trabalho do diretor polonês, Kieślowski sendo extremamente elogiado pela crítica, assim como a interpretação de Irene Jacob que venceu o prêmio de melhor atriz no mesmo festival. Deixar-se levar pela magia e melancolia (Walter Benjamin) de uma história. Essa mistura de fantasia e drama que Kieślowski proporciona encanta desde o início.
Do simples descobrimento de mundo das protagonistas até a apresentação da polonesa Veronika, a película já traz todo o estilo do diretor e como ele tratará do desenvolvimento da trama. Veronika é apaixonante e Kieślowski faz questão de ressaltar as qualidades da moça em sua direção. Com “super-closes”, ele capta as expressões doces e suaves da personagem. E então, a princípio, o close da protagonista cantando na chuva mostra toda a sua felicidade com o simples ato de cantar, Antek apaixonou-se. Paixão não se explica. As diversas possibilidades de mundos paralelos em um único continente. As vidas paralelas, no sentido quase epistemológico do conceito, são diferenciadas pelas inúmeras possíveis escolhas que são feitas em cada uma dessas possíveis vidas. Ambas protagonistas são amáveis e possuem relações familiares fortes e, como é aparentemente fácil notar, possuem uma ligação marcante com a música, para ser mais preciso, com a arte do canto.
Em plena década de 1990, o continente europeu vive uma fase de discordâncias e as moças vivem em universos distintos separados pela economia e cultura, uma na Polônia e outra na França, assim a proposta do diretor e roteirista fica clara quanto à intenção de ressaltar essas diferenças com a possibilidade de serem dois mundos paralelos. Diferente de tudo que sabiam, as jovens sentem essa proximidade. “A Dupla Vida de Veronique” é um filme para ser sentido. Mais do que remeter aos sentidos, a obra faz diversas alusões a elementos lúdicos e oníricos, deixando a cargo do espectador e de sua experiência de vida a sua identificação e o seu entendimento de aspectos apreciáveis da realização. Desse modo, além de ser direcionado à autoridade final - o espectador -, este mesmo ser que vê se torna, em certo sentido, o seu próprio narrador a partir das conexões que consegue estabelecer com sua história pessoal. Ele é o personagem fora-de-campo, ainda que dentro da história. Um exemplo do proposto é, a despeito do elemento fantástico (thaumadzein), a identificação que alguns espectadores podem estabelecem com a possibilidade de existir outro indivíduo igual a si em algum outro lugar. Possibilidade essa levada em conta com relativa frequência, em especial dentro do universo infantil, em diversas culturas. Bibliografia geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, “O maravilhoso (e misterioso) em Krzysztof Kieślowski & Cia”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2011/06/07/; Idem, “O Tapete Vermelho do Óscar 2012 - Viva a nostalgia”. Disponível em: http://estudosviquianos.blogspot.com.br/2012/02/; BRITO, J. B. de, “Oscar - os ignorados”. http://imagensamadas.com/tag/academia-de-hollyood, 2012; Artigo: “Irène Jacob - L`inquietudine di una musa discreta”. In: http://www.mymovies.it/biografia/; LESCH, Walter; LORETAN, Matthias, “et al”, Das Gewicht der Gebote und die Moglichkeiten der Kunst: Krzysztof Kieślowskis Dekalog Filme als ethische Modelle. Freiburg, Schweiz: Universitatsverlag; Freiburg: Herder, 1993; KIESLOWSKI, Krzysztof Piesiewicz, Raj, czyś'ciec, pieklo: [three novels in one case]. Warsaw: Skorpion, 1999; SATRIANI, Lombardi, Antropologia culturale e analisi dela cultura subalterna. Milano: Rizzoli Editore, 1980; Premio miglior attrice per il film La doppia vita di Veronica di Krzysztof Kieślowski. Festival di Cannes, 1991; ENGELS, Friedrich, “O Aniversário da Revolução Polonesa de 1830”. Publicado pela primeira vez em La Réforme, de 5 de dezembro de 1847; BENJAMIN, Walter, Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a Literatura e História da Cultura. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1993, Volume I; GINZBURG, Carlo, “Um lapso do Papa Wojtyla”. In: Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; COSTA, João Paulo, “´Quero te bem`: dialéctica no Pátio?”. In: http://www.patiodosgentios.com/reflexao-teologica/quero-te-bem-dialectica-no-patio/. Escrito a 23 de Março de 2012; STOK, Danusia (ed.), Kieślowski on Kieślowski. London: Faber & Faber, 1993, pp. xiii-iv; Artigo: MERTEN, Luiz Carlos, “Um grande Kieslowski”. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/; artigo: “Sessões entrevista: Krzysztof Kieślowski”. In: http://sessoesdecinema.blogspot.com.br/2011/07/; DEBORD, Guy, Commentaires sur la societé du spectacle. Paris: Galimar, 1966; DELEUZE, Gilles, Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974; Idem, Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976; Idem, Cinéma I: l`Image-Mouvement. Paris: Minuit, 1983; Idem, Cinéma II: l`Image-Temps. Paris: Minuit, 1985; Idem, Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997; Idem, Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988; Idem, & GUATTARI, Felix, El Antiedipo. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1980; MACHADO, Roberto, Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990; DIAS, Sousa, Lógica do Acontecimento - Deleuze e a Filosofia. Porto: Afrontamento, 1995; SPADARO, Antonio, Lo sguardo presente: una lettura teologica di ´Breve film sull'amore` di K. Kieślowski. Rimini: Editore Guaraldi, 1999; ULPIANO, Cláudio, O pensamento de Deleuze ou a grande aventura do espírito. Tese (Doutorado). Campinas: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, 1998; WAHL, François, “O copo de dados do sentido”. In: ALLIEZ, Éric (org), Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000; ŽIŽEK, Slavoj, The Fright of Real Tears: Krzysztof Kieślowski Between Theory and Post-Theory. London, 2001; WIZNER, Dariusz, Stile cinematografico di Krzysztof Kieślowski. Thesis. Roma: Universita Pontificia Salesiana, 2002; HALTOF, Marek, The cinema of Krzysztof Kiéslowski - variations on destiny and chance. Grã-Bretanha: Wallflower Press, 2004; BROWNE, Nick, “O espectador-no-texto: a retórica de No tempo das diligências”. In: RAMOS, Fernão P., org., Teoria Contemporânea do Cinema - Documentário e narratividade ficcional. Volume II. São Paulo: Editora SENAC, 2005; CARREIRO, Rodrigo, “Primeira produção internacional de Kieslowski investiga de modo delicado o mito europeu do doppelgänger”. Texto publicado em 04/12/2006 no Cine Repórter; MESTRINER, Roger, “O encontro de opostos inconciliáveis: analisando A Dupla Vida de Véronique”. Texto publicado em 15/06/2009 na RUA - Revista Universitária do Audiovisual, entre outros.

CIÊNCIAS COM FRONTEIRAS: A EXCLUSÃO DAS HUMANIDADES PELO MEC

Por Alyson Freire, enviado para o Jornal Catarse pelo professor Alípio Freire da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde é professor do Curso de Ciências Sociais.   
Como um veículo idealizado por cientistas sociais, e, mais importante, feito a partir dos conhecimentos aprendidos nas Ciências Sociais, a Carta Potiguar não poderia deixar de se manifestar a propósito da suspensão da liminar que determinava a inclusão dos cursos da área de Ciências Humanas no programa Ciência Sem Fronteiras do Ministério da Educação (MEC). A decisão do Tribunal Federal da 5ª Região e o entendimento do MEC sobre a natureza do Programa devem ser não apenas lamentadas e repudiadas, mas, como convém a postura das Humanidades, analisadas e discutidas.  Muito embora, bastasse para verificar o déficit em Humanidades no Brasil confrontar a realidade social do país e as percepções enviesadas e estreitas sobre esta, e, assim, constatar, com certa melancolia, os enormes desafios e incompreensões que existem acerca das questões públicas.
A indignação gerada não pode, porém, embotar a reflexividade exigida para produzir, de uma só vez, um entendimento claro do que está em disputa no CsF e, sobretudo, uma crítica aos pressupostos tácitos que o presidem. Afinal de contas, as Ciências Humanas notabilizam-se precisamente por constituírem um tipo de trabalho intelectual cujo cerne consiste em sua capacidade ímpar de elaborar autorreflexão crítica, a partir da qual a sociedade pode dispor das ferramentas para pensar a si mesma como problema e fenômeno humano, aberto e contingente, e, desse modo, entender por meio de que processos sociais e históricos as coisas se tornaram de uma forma e não de outra.
A posição do MEC e a interpretação da Justiça não são simplesmente neutras e técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que expressam, por um lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e, por outro, concepções e valores acerca das classificações das ciências e o papel destas no interior de um projeto determinado de sociedade e desenvolvimento.
A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do Ciências sem Fronteiras ou que áreas devem ser priorizadas no financiamento de bolsas, intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito da visão de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar uma determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a concepção de certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa polêmica resume-se a questão de definir os parâmetros pelos quais a sociedade deve ser organizada e estruturada para atingir os tão almejados fins do desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país e a vida das pessoas devem trilhar para alcançar um estágio elevado de bem-estar humano, segurança, conforto e liberdade.
Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no Ciências Sem Fronteiras? Ora, uma ideia redutora e estreita de “desenvolvimento” que o identifica prioritariamente com crescimento econômico e progresso tecnológico puro e simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade desenvolvida é sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e criativa de indústrias e empresas, aumento da renda per capita e da disponibilidade de recursos humanos hiperqualificados do ponto de vista técnico, etc.. Sem satisfazer esses indicadores e critérios uma sociedade não pode considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta concepção tecnicista de progresso.
É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas divisões adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse paradigma, as Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas para fomentar as condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de progresso porque seus resultados e inventos podem ser diretamente aplicados e apropriados pelo Estado e pelas empresas, segundo, obviamente, os interesses estratégicos de dominação política, militar, social e econômica. Por isso, a elas reservam-se as melhores oportunidades de recursos e investimentos.
O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos no campo das ditas “ciências duras” ganha prioridade sobre todos os demais por conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições de apoio e fomento com uma determinada visão de progresso, assim como pela força dos interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para manter sua governabilidade –  esse comprometimento pode ser observada no conjunto de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por exemplo a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e Mercado) neste processo. Elas seriam “ciências moles”, imprecisas e teóricas, e o progresso necessita de “ciências duras”, fálicas e masculinas, as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de serem suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento numa sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e androcentrismo na ideia de “ciências duras e moles” não é nada gratuita e acidental – o que reforça o argumento de a ciência existe num contexto de valores, representações e repertórios culturais.
A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para obter o devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem mais o resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O valor e as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas sobre progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo papel que elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a finalidade de atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do crescimento econômico – PIB, renda per capita, etc..
Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica e biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o mercado e as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios técnicos e humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento econômico de uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da formação de quadros hiperqualificados para o mercado e suas necessidades.
O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção de desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente expressa no Ciência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências Humanas do CsF é resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista de conceber o progresso de uma sociedade. Nesta concepção de desenvolvimento, o sucesso de uma sociedade é medido pela elevação das riquezas que um país produz mais do que a forma e o grau com que ele a distribui; mais pela quantidade e exploração de recursos que ela capaz de realizar do que pela qualidade dos serviços públicos básicos que oferece; mais pela industrialização do que pelo impacto que ela causa nas condições ambientais e de existência das pessoas; mais pelo progresso tecnológico e quadros qualificados que possui do que pelo grau de participação política e social das pessoas na vida pública.
O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento de outros indicadores qualitativos e sociais ligados ao que o economista Amartya Sen chamou de expansão das “liberdades substantivas” e das capacitações para o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen, desde as liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de condições para evitar subnutrição e a mortalidade precoce e capacidades de promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida política da sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).
Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia, defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as Ciências Humanas possuem um papel central e pertinente como “indutoras” das condições de desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das liberdades reais e na efetivação das capacidades humanas são resultados, em larga medida, de fenômenos humanos, isto é, de processos, instituições e estruturas sociais que modelam o destino das pessoas, suas chances de vida e oportunidades.
Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram, de maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e restrições que impactam enormemente o exercício dos direitos e o desenvolvimento das capacidades pessoais, então, a contribuição das Ciências Humanas é indispensável e inestimável para reverter tal quadro. O entendimento, com clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a reprodução da pobreza, da violência, da ineficiência institucional, os conflitos entre grupos, a exploração e injustiça econômica, os dramas interpessoais, a desigualdade e marginalização social, a privação de direitos em razão de estigmas e preconceitos, entre tantos outros, somente é possível mediante um consistente conhecimento e pesquisas pertencentes ao campo das Ciências Humanas. Esses conhecimentos podem ser convertidos em políticas públicas e reformas políticas. No entanto, a contribuição das Ciências Humanas não se esgota em oferecer informações úteis que servirão de matéria para políticas sociais.
As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável de desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de vistas morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a noção de desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades subjetivas e causais do comportamento e pensamento humanos, situando-os histórica e socioculturalmente, é o seu principal mérito. O esclarecimento que as Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento não tanto da ordem da previsão e do controle dos fenômenos mas da reflexividade dos sujeitos sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações – o que pode servir tanto numa escala individual quanto, também, numa escala coletiva para governos comprometidos com reformas e movimentos sociais engajados na luta por transformações sociais.
Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas do CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível acerca do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em particular para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas sociais responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior emancipação, liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar os pressupostos tácitos que governam as tentativas políticas de superação e solução desses mesmos mecanismos e estruturas.
De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas contribuem com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas podem fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo sobre os fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e, também, acerca das implicações dos valores, compreensões e aspirações em nome dos quais esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O investimento em conhecimentos orientados para a explicação dos fatos humanos e para o esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos assumem e praticam em suas percepções e aspirações é um fator indispensável para qualquer sociedade que se pretenda desenvolvida num sentido mais pleno da palavra. Engenharias e tecnologias ajudam a construir e fazer crescer um país, mas não produzem por si mesmas compreensões capazes de impulsionar um processo de autoentendimento sobre o país, seus dilemas e ambições.
A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa Ciências sem Fronteiras abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos rumos que o Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão de “pensar e entender o Brasil” para além das categorias econômicas mais redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco ultrapassado, é antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e ameaçador.

sábado, 19 de janeiro de 2013

O QUE FAZ A ADMINISTRAÇÃO DE UM PREFEITO SER RUIM?

Benedito Carvalho Filho

O último número do Jornal Pessoal, o nº 528, traz como matéria de capa o prefeito sorridente e cheio de ânimo penetrando no seu gabinete. Ao lado da sua mesa uma bomba relógio armada e o tic-tac do relógio.
O simbolismo, segundo a minha interpretação, é que o novo alcaide corre contra o tempo e terá como desafio administrar uma cidade arrasada, como a maioria das cidades brasileiras durante várias décadas.
A carta aberta do jornalista Lúcio Flávio Pinto afirma, entre outras coisas que a vitória de Zenaldo Coutinho terá que ser legitimada por mudanças imediatas, pois Belém não suporta mais a degradação da vida pública que, segundo o jornalista, está indo para o bebeléu.
Ao ler cuidadosamente a Carta Aberta por Belém, assim com a lista de propostas feita pelo jornalista, não pude deixar de me perguntar: o que faz a administração de um prefeito, ou mesmo do governador, ser ruim? Será que é somente a falta de compromisso com a população? Ou porque pensa somente nos seus interesses particulares, aliando-se com grupos econômicos que só querem, como na lei de Gerson, levar vantagens em tudo?
Um prefeito quando ganha uma eleição é membro de um partido. Para ganhar uma eleição, como fez Zenaldo Coutinho, assumiu compromissos, fez alianças, foi fortemente apoiado pelo governo estadual, que financiou a sua campanha. Ele não age movido somente por seu voluntarismo e, dependendo, do perfil do partido que faz parte, terá uma margem de manobra para governar, porque, afinal de contas, ele não é somente um administrador, mas sobretudo um político, como seus projetos, suas ambições, como bem nos ensinou Maquiavel.
Acho as propostas do jornalista exposto da sua Carta Aberta excelente, mas falta um ingrediente de fundamental importância: o povo, a organização popular. A Carta redigida por um cidadão como o Lúcio Flávio é louvável – e quantas ele já fez nas administrações anteriores e restou só o silêncio, como ele mesmo reconhece.
Não acredito em um prefeito, seja lá de que partido for, se não for capaz de abrir o diálogo e a interlocução  com os governados, com a sociedade, o que não significa ser populista ou demagogo. Um prefeito se torna ruim não só quando não tem ética, mas quando se encontra diante de uma sociedade civil débil, desorganizada, amorfa, acéfala, que facilmente é seduzida por propostas que nada têm a ver com seus reais interesses.  
Gostaria imensamente – será um sonho utópico? – que as propostas do jornalista fossem apresentadas pelas representações populares da cidade de Belém e não somente por uma figura pública como o Lúcio Flávio. O governo que se diz democrático sem participação popular acaba no exemplo que o mesmo JP descreveu na matéria da página 3 (Procuradores do Estado são advogados do povo?),onde o que se viu uma festa dos notáveis, pessoas bonitas, bem vestidas e perfumadas, a massa cheirosa, como dizia uma jornalista de um jornal paulista.
Também pensei: será que as propostas apresentadas na Carta Aberta correspondem às principais reivindicações da grande maioria da população belenense? Por exemplo: por que um Museu do Cirio? Assim poderiam ser questionadas varias outras propostas.
O meu receio não é o possível silêncio do alcaide, mas o silêncio do povo de uma cidade que se vê diante de problemas graves e se sente impotente para agir diante da corrupção que cresce e aparece a partir das oportunidades proporcionada pela falha em administrar em escala e a complexidade com sucesso.
O povo brasileiro, e o paraense, em particular, é um povo trabalhador, ao qual infelizmente ainda faltam habilidades necessárias para administrar os sistemas complexos criados espontaneamente por uma população que se multiplicou por dez ao longo do último século. Belém é uma das 13 cidades brasileiras com mais de 1 milhão de habitantes, onde existem ineficiências e injustiças.Uma das prioridades de um alcaide, deveria ser a educação, a criação de uma melhor infraestrutura nos bairros, que proporcionasse um melhor atendimentos de saúde e outros aspectos, cujas deficiências o povo que reside nas chamadas Baixadas conhece muito bem, e, por isso, merece ser ouvido.
 Um prefeito que não foca sua administração na educação é um prefeito ruim, que governa para a massa cheirosa. A educação não apenas para reduzir as desigualdades, mas para dotar a população de senso crítico, pois sem saber ler e escrever ela não terá acesso às informações e não poderá participar da vida pública, e muito menos ler o Jornal Pessoal, como afirmei no meu último comentário.
Espero que esse pequeno espaço incentive um maior debate na cidade. Tenho a esperança que a Carta Aberta do JP seja aberta e destinada não só ao prefeito da cidade, mas lida, discutida e ampliada pelas reivindicações do povo desta cidade onde nasci e cresci.