sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O MAL ESTAR NA UNIVERSIDADE:UM DEBATE MAIS QUE NECESSÁRIO





No início de outubro fui procurado por uma Assistente Social, funcionária da Universidade Federal do Amazonas, para responder algumas perguntas de uma pesquisa que ela estava realizando entre os professores e professoras desta instituição de ensino.
Ela me explicou que o objetivo da pesquisa era levantar informações sobre o nível de satisfação e insatisfação dos professores e demais funcionários dentro da instituição. As duas perguntas formuladas por ela eram as seguintes: Qual era o “mal-estar” que sentíamos na Universidade? Em seguida, os aspectos que sentíamos como “bem-estar”.
Não pude deixar de associar no momento a palavra mal-estar com a obra de Freud, escrita em 1930: O Mal-estar na cultura, ou Mal-estar na civilização, conforme traduções mais antigas.
Interessante que esse termo alemão unbenhagen, significa algo como “sentir-se protegido”. Unbenhagem, remete também a uma fragilidade, uma falta de abrigo, a estar desprotegido, como observa o psicanalista Márcio Seligmann-Silva no prefácio de uma tradução da obra de Freud (Freud – O mal-estar na cultura, Editora LPM, SP, 2010).
Ainda, segundo esse psicanalista, esse termo também se aproxima de outro termo-chave para a psicanálise, a saber Unheimlich, que significa estranho, sinistro, e que deu título a um famoso e fundamental ensaio de Freud de 1919: O Estranho.
Não é preciso muito diagnóstico para evidenciar na universidade traços de um vazio existencial, um esvaziamento de sentido da vida, um tédio, que se revela como a nota cotidiana da sociabilidade atual, não só nas universidades, mas na sociedade de uma maneira em geral.
Isso é visível e tem manifestado seus efeitos não só nos numerosos casos de adoecimento físico e psíquico, como podemos observar nos dados estatísticos do setor médico da instituição, mas no próprio semblante de muitos professores e funcionários da instituição.
O que está acontecendo? Quais os espaços de discussão estão sendo criados para abordar esse assunto que tem muito a ver com a nossa vida cotidiana? Como temos nos protegido desse mal-estar? Refugiando-nos na nossa vida familiar? Fechando-nos em copas e evitando falar o infalável que essa estranheza provoca?
Neste Blog do Jornal Catarse temos alguns artigos publicados por intelectuais sobre esse assunto e que merecem ser analisados e discutidos entre nós. Eles estão voltados exatamente pela a discussão desse problema nas universidades.  



O mal-estar na Universidade

Olgária Matos, é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.

Publicado pelo Blog Carta Maior em 25.06.2009

O abandono da Universidade Cultural e sua substituição pela “Universidade da Excelência” ou do “Conhecimento” dizem respeito à dissolução do papel filosófico e existencial da cultura. Constrangido à pressa e ao atarefamento diário, o ócio necessário à reflexão e à pesquisa é proscrito como inatividade, os improdutivos comprometendo o princípio de rendimento geral.

A militarização do campus universitário da USP e a solução de conflitos através da força atestam o “esquecimento da política”, substituída pela ideologia da competência, entendida segundo o modelo da gestão empresarial, com seu culto da eficiência e otimização de resultados. Também a proposta mais recente da reforma da carreira docente e do projeto da implantação da Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), respondem, cada qual à sua maneira, à “produtividade”, os acréscimos salariais dos professores subordinando-se ao número de publicações e a seu estatuto— se livro, capítulo de livro, ensaio em revistas, se estas se ajustam ao “selo de qualidade” das agências de financiamento; número de congressos; soma de palestras; orientações de teses e dissertações e, sobretudo, se estas obedecem ao prazo preconizado, tanto mais exíguos quanto mais os estudantes chegam à Universidade desprovidos de pré-requisitos à pesquisa, como um conhecimento adequado do português para fins de leitura e escrita universitária, (guardadas as exceções de praxe), bem como acesso a línguas estrangeiras. De fato, a Universidade se adapta às circunstâncias do ensino médio, e o mestrado pretende contornar as deficiências da formação no ensino médio (e fundamental também), que incidem nos anos de graduação, convertida em extensão do segundo grau.

Professores e estudantes cedem precocemente a publicações, sem que haja nelas nada de relevante, e, ao mesmo tempo, devem freqüentar cursos ou prepará-los, realizar trabalhos correspondentes, desenvolver suas teses - uma vez que a quantidade consagra pontuações para futuras bolsas de iniciação científica ou aprovação de auxílios acadêmicos. Quanto aos docentes, estes se ocupam cada vez mais com tarefas de secretaria, como preenchimento de planilhas, elaboração de relatórios, propostas de inovação em cursos não obstante ainda em vias de implantação, acompanhamento de iniciação científica, organização desses congressos, participação em atividades de iniciativa discente, preenchimento de pareceres on line de um número crescente de bolsistas, e por aí vai. No que diz respeito ao ensino à distância, ele não responde à democratização da Universidade mas a sua massificação.
O abandono da Universidade Cultural e sua substituição pela “Universidade da Excelência” ou do “Conhecimento” dizem respeito à dissolução do papel filosófico e existencial da cultura. Constrangido à pressa e ao atarefamento diário, o ócio necessário à reflexão e à pesquisa é proscrito como inatividade, os improdutivos comprometendo o princípio de rendimento geral. Este encontra-se na base da transformação do intelectual em especialista e da docência como vocação em docência como profissão. O saber técnico é o do expert que transmite conhecimentos sem experiência, cujo sentido intelectual e histórico lhe escapa. Assim como no processo produtivo a proletarização é perda dos objetos produzidos pelos produtores e perda do sentido da produção, a especialização pelo know how é proletarização do saber. Por isso o especialista moderno se comunica por fórmulas, gráficos, estatísticas e modelos matemáticos. Foucault reconhece seu primeiro representante em Oppenheimer que enunciou o projeto Mannhathan - que levou à bomba-atômica - em termos simpaticamente técnicos.

A “Universidade do Conhecimento” perverte pesquisa em produção. Quanto à educação à distância, ela não significa um apoio ao conhecimento e seu acesso a regiões distantes, mas sim o fim de toda uma civilização baseada nos valores da convivência, da sociabilidade e da felicidade do conhecimento.

Olgária Mattos

Vladimir Safatle: O mal estar-estar nas ciências humanas

 

O mal estar-estar nas ciências humanas

Discussões sobre o futuro da universidade exigem reflexão sobre o que esperamos das ciências humanas
 Na revista Cult, Por Vladimir Pinheiro Safatle*
Nas  discussões  a  respeito do futuro da universidade,  seja no Brasil seja  em países europeus que passam atualmente por grave crise financeira, é comum identificarmos um estranho mal-estar em relação às ciências humanas. Tudo se passa como se a área de ciências humanas fosse a mais problemática por vir dela questionamentos reiterados a respeito de processos de financiamento, avaliação e pesquisa. É comum vermos um certo anti-intelectualismo arraigado que acusa as humanidades de serem irrelevantes, fazerem pesquisas atrasadas ou ideologicamente comprometidas e não “dialogar” com a sociedade. No caso brasileiro, haveria uma longa história a contar referente à gênese desse anti-intelectualismo e seus vínculos orgânicos com momentos sombrios de nossa história.
 No entanto, esse mal-estar não vem apenas de atores externos à universidade. Seria fácil se assim fosse. Por um lado, é comum instâncias internas à própria universidade mostrarem desconhecimento profundo a respeito do tipo de pesquisa desenvolvido na área de ciências humanas e sua multiplicidade natural. Nos momentos em que tais desconhecimentos afloram, somos normalmente brindados com discussões bizantinas a respeito da inutilidade das ciências humanas, a não ser como curso de extensão. Nessas horas, o melhor a fazer é perguntar ao interlocutor o que pesquisadores brasileiros realmente relevantes nas ciências exatas, como os físicos Mario Schömberg e César Lattes, teriam a dizer sobre o assunto. 
“Ideologia científica”
Mais sintomático do que isso, no entanto, é encontrar determinadas áreas, como a psicologia e a economia, lutando desesperadamente para não serem mais vistas como pertencentes ao quadro das humanidades. A psicologia seria, nessa nova configuração do campo científico que parece querer se impor, um setor das ciências biológicas que estudaria a mente e comportamento humano. Afirmação que só teria algum sentido à condição de passarmos completamente ao largo de discussões sobre o estatuto do conceito de “comportamento”, isso sem falar em outros conceitos fundamentais da psicologia como “aprendizado”, “percepção”, “memória”, “desenvolvimento”, só para ficar com aqueles termos mais dependentes de discussões que nos remetem à história da filosofia. Já a economia seria (e isto não é uma piada feita para divertir financista em estado de choque depois da quebra do Lehman Brothers, da concordata da GM e da estatização branca do Citibank) uma ciência matemática.
O que há por trás desse quadro? Certamente termos aqui uma convergência de fatores, sendo que um deles é, sem dúvida, a incapacidade de pesquisadores da área de ciências humanas saírem de uma posição, digamos, defensiva. Temos dificuldade em impor nossos sistemas de avaliação, em divulgar nossas pesquisas, em analisar a natureza daquilo cujo sintoma é o mal-estar em relação às ciências humanas. 
Haveria também fatores claramente econômicos (que nunca podem ser desprezados), Georges Canguilhem, historiador fundamental das ciências, cunhou, décadas atrás, o termo “ideologia científica” para descrever este processo em que uma área do saber, em constituição, se apóia em áreas mais reconhecidas e tradicionais, mimetizando seu vocabulário e seus métodos na esperança de, com isso, ganhar legitimidade social. O advento das ciências humanas foi claramente marcado por tal processo. Lembremos, por exemplo, de como o estudo dos comportamentos sociais foi, durante bom tempo, descrito como “física social”, isso antes de ser visto enfim como “sociologia”. Para estruturas institucionais que, para ter suas pesquisas financiadas, entraram em dependência profunda em relação a instituições do sistema financeiro (como caso de vários departamentos de economia no mundo) ou a grandes indústrias farmacêuticas (como caso do departamento de psicologia), passar a impressão de que elas podem assegurar a previsibilidade, a quantificação e a mensuração de áreas como a matemática e a biologia virou uma questão não negligenciável.

A capacidade produtiva das humanidades
No entanto, para além desses dois fatores, vale a pena insistir em um terceiro, talvez de fato o mais importante. A constituição das ciências humanas enquanto conjunto de campos institucionalizados de pesquisa foi em larga medida impulsionada por preocupações estatais de controle social de populações a partir do século 19. Por exemplo, não compreenderemos o advento da psicologia como ciência se negligenciarmos a importância de questões que eram dirigidas aos psicólogos sobre a extensão da imputabilidade jurídica, a natureza do comportamento criminoso, a falta de disposição para o trabalho, a fraqueza moral. No entanto, também não compreenderemos seu desenvolvimento posterior se restringirmos suas questões apenas a esse escopo de preocupações. Pois o campo das ciências humanas foi sempre indissociável da reflexão sobre a maneira como elas constituem, e não apenas descrevem, o “homem” como seu objeto de análise. Esse é um ponto importante: a capacidade descritiva das ciências humanas é também capacidade produtiva. Sua descrição modifica o comportamento dos seus objetos, já que seis conceitos têm forte capacidade normativa. Por exemplo, descrever processos sociais a partir de sistemas individuais de escolhas possíveis ou a partir de estruturas transindividuais não apenas influenciará radicalmente a visão do pesquisador a respeito dos fenômenos que ele tem diante de si. Isso influenciará também a maneira com que as intervenções nos processos sociais se darão, assim como a configuração das crenças sociais sobre o que nós realmente somos. 
Essa “reviravolta autocrítica” é elemento fundamental na história das ciências humanas. E, através dessa capacidade de reviravolta, as ciências humanas, em seus melhores momentos, forneceram quadros de reflexão sobre nossos valores sociais e sobre a maneira como nosso discurso é capaz de, em larga medida, constituir objetos. Não apenas um discurso sobre o “homem” (com toda a carga valorativa que esse termo tem) como objeto.
Mas isso nos coloca uma questão maior: e se não quiséssemos mais criticar nossos processos, valores e nossa visão dos sujeitos? Desejo de preservação que não viria do fato de termos alcançado um consenso profundo a respeito de nossos ideais sociais, mas do fato de termos medo do futuro, de termos perdido a força de criar novos processos e valores. Numa situação como essa, de fato, as ciências humanas perdem toda a sua relevância.

Quando questionamos a relevância das ciências humanas, questionamos, no fundo, a importância de compreender o que está por trás de fenômenos como: a modificação na estrutura da autoridade paterna no interior das famílias (psicologia), a participação de grandes grupos econômicos na gestão da ditadura militar (história), as consequências das modificações na estrutura da sociedade do trabalho (sociologia), os impasses de nossas democracias contemporâneas na sua procura de dar realidade institucional a exigências sociais de reconhecimento (ciências políticas), o impacto dos desenhos animados na construção da criança como categoria da sociedade de consumo (estudos de mídia), o que está por trás da nossa “construção” do Oriente etc. Mas talvez a questão seja: sobre esses fatos, há algo que não queremos saber, há algo que preferimos não saber. Só assim poderemos perpetuar nossas formas de vida, mesmo que elas estejam profundamente desgastadas.
* Vladimir Pinheiro Safatle é professor de Filosofia n

Nenhum comentário:

Postar um comentário