sábado, 13 de outubro de 2012

UM MOMENTO DELICADO NA CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA



                         

Não poderíamos deixar de publicar neste Blog do Jornal Catarse o que disse o Ministro do Supremo Ayres Brito que condena a política de coalização que existe no Brasil. Não podemos deixar de publicar, também, a reação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, Mauro Santayana e Paulo Moreira Leite, publicado na revista Época.
Neste momento delicado a conjuntura política brasileira, onde um julgamento está sendo espetacularizado por uma mídia partidária, é oportuno uma reflexão mais cautelosa do que ocorre nos bastidores, principalmente no momento de uma eleição, que, ao contrário do se esperava, a base de apoio do Governo parece sair vitoriosa.
O pronunciamento de Ayres Brito expõe claramente não só o quanto muitos juízes estão longe da democracia, como podemos observar na análise do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que, como ele dizia em um artigo anterior, não ser um especialista no Código Penal, mas é um grande estudioso da Ciência Política e sabe perfeitamente que a lógica do jogo político é muito diferente da dogmática da ciência jurídica estudada nas universidades por nossos bacharéis.
Paulo Moreira Leite, jornalista que está muito longe de ser acusado de “petista” ou “governista” nos dá pistas para compreender como, ao longo de nossa história, a tentação golpista sempre esteve presente toda as vezes que o povo vai  às urnas e vota contra os interesses da elite. O mesmo faz o jornalista Mauro Santayana no seu brilhante artigo.
Compreendo que vivemos um momento delicado no Brasil. Alguns acham que a direita articula um golpe. Outros acham que o governo de coalização é seu principal inimigo, enquanto um setor da classe média faz um discurso moralista, acreditando que o chamado “Mensalão” foi criado pelo PT .
Ao ler com atenção o que escreveu Ayres Brito, compreendo e concordo com a análise do cientista político Wanderley Guillherme dos Santos  quando constata que há uma óbvia transgressão de competências, decisões penais lunáticas estupram a lógica, abolem o universo da contingência e fabricam novelas de horror para justificar o abuso de impor formas de organização política, violando o que a Constituição assegura aos que sob ela vivem. Declaram criminosa a decisão constituinte que consagra a liberdade de estruturação partidária.
É evidente no discurso do Ministro o desejo nitidamente político de interferir num campo que não é competência do judiciário. Não é por acaso que isso ocorre depois do primeiro turno das eleições municipais, no momento em que base de apoio do governo Dilma parece sair vitoriosa.
Por que esse discurso agora? É uma fala isolada de um ministro desvairado e lunático? Não creio. O seu pronunciamento tem um significado e parece fazer parte de uma articulação maior que só o tempo nos revelará.
Quem  viveu mais de duas décadas na ditadura militar, quem investiu boa parte de sua juventude resistindo e almejando a democracia, não pode desconhecer quem são os nossos inimigos do momento e as tramóias que ardilosamente arquitetam nos bastidores da Casa Grande. É só observar o que está acontecendo na capital paulista, onde uma direita reacionária não tem o pudor de arregimentar Malafaias da vida para difundir o medo, usando a religião como arma.
Os artigos publicados nesse Blog merecem maiores reflexões. O momento, como afirmei, é delicado. (Benedito José de Carvalho Filho, Editor do Jornal Catarse)  

AYRES BRITTO: “O SENTIDO DAS ALIANÇAS É O DA SUA TRANSITORIEDADE

publicado em 11 de outubro de 2012 às 12:12
Presidente do STF condena modelo de “governo de coalizão”
Ayres Britto seguiu o relator e condenou oito réus do “mensalão” por corrupção ativa. No seu voto, condenou também o modelo de “governo de coalizão”, adotado no país desde o fim da ditadura. Para o presidente da mais alta corte brasileira, a hegemonia política de um partido não pode ser construída a partir de alianças perenes com os demais. “O sentido das alianças é o da sua transitoriedade”, filosofou. O presidente do STF subiu o tom para criticar o que chamou de “esse estilo de fazer política excomungado pela ordem jurídica brasileira”.
Brasília – O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, acompanhou a íntegra do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, e condenou oito dos réus acusados de corrupção passiva no processo do “mensalão”: os petistas José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, além do empresário Marcos Valério, seus sócios e funcionários. Mas Britto foi além: condenou também o modelo de “governo de coalizão”, adotado no país desde o final da ditadura militar.
Embora tenha iniciado seu voto explicando que o sistema de coligações não pode ser objeto de estranhamento ou de crítica, a não ser que seja formado de forma “agentária, pecuniarizada”, Britto afirmou que ele só pode vigorar nos períodos pré-eleitorais e, quando já eleito um governo, de forma episódica e pontual para a aprovação de projetos específicos.
“Basta lembrar que, mesmo nos períodos pré-eleitorais, o sentido das alianças é o da sua transitoriedade”, afirmou. 

Nas palavras exatas do presidente da mais alta corte do país, “cada partido político é autônomo, goza de autonomia política, administrativa e financeira em boa medida. Tem a sua identidade ideológica, ou político-filosófica, mas tudo isso é suspenso, legitimamente suspenso, para a formação de coligações durante o período eleitoral. Terminado o período eleitoral, as coligações se desfazem, de direito. E são substituídas por alianças tópicas, pontuais, episódicas, para a aprovação de projetos específicos. Não faz sentido, à luz da autonomia política de cada partido e da sua identidade inconfundível, ideológica e política, uma aliança formal ad aeternum, porque isso, mais do que a perenização no tempo dessas coalizões, implica em um condicionamento material na hora das votações”.
Britto ressaltou que a hegemonia política de um partido não pode ser construída a partir de alianças perenes com os demais, principalmente se forem conquistadas à base da propina. “Um partido não tem o direito de se apropriar do outro, de açambarcar o outro partido, menos ainda à base de propina. E, estendendo sua malha hegemônica e a sua dominação, para um pool de partidos que, como mostrou o Ministério Público, aconteceu no caso concreto”, avaliou.
Para o ministro, no “mensalão”, as alianças partidárias foram “compradas” de forma profissionalizada pelas empresas de Marcos Valério, classificado por ele como protagonista-mor do núcleo operacional. “Um pool de empresas mediador se especializou na sua expertise. É por isso que atuou por vários anos. E mobilizou, em valores da época, incorporando os empréstimos do BGM, R$ 153 milhões”, acrescentou.
Voz ideológica das urnas
O presidente subiu o tom para criticar o que chamou de esse estilo de fazer política excomungado pela ordem jurídica brasileira que, como não poderia deixar de ser, adulterou, do ponto de vista ideológico, o resultado da eleição.
“Nós sabemos que a urna tem voz ideológica. A cada eleição popular, em uma determinada circunscrição geográfica, um espectro ideológico se desenha. Ressai de cada urna um perfil ideológico que, em tese, deve vigorar por quatro anos, porque o voto é a expressão da soberania popular. E o que é soberano é para ser respeitado”, justificou.
Para ele, quando se faz uma aliança firmada em bases financeiras de repasses entre os partidos, este perfil ideológico saído da urna, é arbitrariamente alterado pelos que fazem este tipo de acordo político.
“Compra-se a consciência do parlamentar propinado, subornado, corrompido. Parlamentar que, nesta medida, trai o povo inteiro, porque trai o mandado popular. O ministro Celso de Mello tem toda razão quando fala em profanação do ideal republicano”, continuou.


Teoria do domínio do fato
Britto destacou que a denúncia se fundamenta na prática de núcleos imbricados: o político (intelectual), e dois operacionais a serviço do primeiro, o financeiro e o publicitário.
“Em cada núcleo, há uma hierarquia de comando, o que justifica a adoção da polêmica teoria do domínio do fato como fundamento jurídico”, justificou.
No núcleo publicitário, destacou o papel de Marcos Valério que, para ele, possuía o dom da “ubiquidade”, “estava em todo lugar”.
“Ele tinha um instinto apuradíssimo de prospecção de dinheiro. Onde houvesse a possibilidade de se reunir recursos financeiros, ali estava Marcos Valério. Por isso, que não há nenhum réu que não se relacionasse com Marcos Valério”.
E continuou: “era praticamente impossível não saber que lidar com ele, Marcos Valério, seria participar de um sofisticado esquema de corrupção e de lavagem de capitais para dizer o mínimo”.
O presidente, entretanto, ressaltou que o objetivo, primeiro, dos demais réus não era praticar o crime de corrupção.
“Claro que o objetivo não era corromper, mas acumular recursos. Me parece que os autos dão conta, que sob a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, é quadrienal. Mas um projeto de poder que vai muito mais de um quadriênio quadruplicado. Um projeto de poder que, muito mais do que continuidade administrativa, é seca e razamente continuísmo governamental. Golpe, portanto, neste conteúdo mais eminente da democracia, que é a república”, criticou.
Discurso defensivo
O presidente da corte retomou o discurso defensivo do decano Celso de Mello, ao garantir que a lisura do julgamento.
“Tudo aqui foi feito atomizadamente, individualmente, passo a passo, reconstituindo a materialidade de cada fato e fazendo a composição de um panorama, o conjunto da obra. Isso se fez com pleno respeito às garantias constitucionais desse processo. Nenhum ministro se usou do raciocínio dedutivo, mas sim do indutivo, do particular para o geral. Mas inferências lógicas são aceitas. O réu não pode ser julgado pela sua história, ele é julgado pelo que fez concretamente no processo”.


DIVULGUEM A TEORIA POLÍTICA DO SUPREMO


Wanderley Guilherme dos Santos (13 de outubro de 2012)

Diante de um Legislativo pusilânime, Odoricos Paraguassú sem voto revelam em dialeto de péssimo gosto e falsa cultura a raiva com que se vingam, intérpretes dos que pensam como eles, das sucessivas derrotas democráticas e do sucesso inaugural dos governos enraizados nas populações pobres ou solidárias destes. Usando de dogmática impune, celebram a recém descoberta da integridade de notório negocista, confesso sequestrador de recursos destinados a seu partido, avaliam as coalizões eleitorais ou parlamentares como operações de Fernandinhos Beira-mar, assemelhadas às de outros traficantes e assassinos e suas quadrilhas.

Os quase quarenta milhões de brasileiros arrancados à miséria são, segundo estes analfabetos funcionais em doutrina democrática, filhos da podridão, rebentos do submundo contaminado pelo vírus da tolerância doutrinária e pela insolência de submeter interesses partidariamente sectários ao serviço maior do bem público. Bastardos igualmente os universitários do Pró-Uni, aqueles que pela primeira vez se beneficiaram com os serviços de saúde, as mulheres ora começando a ser abrigadas por instituições de governo para proteção eficaz, os desvalidos que passaram a receber, ademais do retórico manual de pescaria, o anzol, a vara e a isca. Excomungados os que conheceram luz elétrica pela primeira vez, os empregados e empregadas que aceitaram colocações dignas no mercado formal de trabalho, com carteira assinada e previdência social assegurada. Estigmatizados aqueles que ascenderam na escala de renda, comparsas na distribuição do butim resultante de políticas negociadas por famigerados proxenetas da pobreza.

Degradados, senão drogados, os vitimados pelas doenças, dependentes das drogas medicinais gratuitas distribuídas por bordéis dissimulados em farmácias populares. Pretexto para usurpação de poder como se eleições fossem, maldigam-se as centenas de conferências locais e regionais de que participaram milhões de brasileiros e de brasileiras para discussão da agenda pública por aqueles de cujos problemas juízes anencéfalos sequer conhecem a existência.

O Legislativo está seriamente ameaçado pelo ressentimento senil da aposentadoria alheia. Em óbvia transgressão de competências, decisões penais lunáticas estupram a lógica, abolem o universo da contingência e fabricam novelas de horror para justificar o abuso de impor formas de organização política, violando o que a Constituição assegura aos que sob ela vivem. Declaram criminosa a decisão constituinte que consagra a liberdade de estruturação partidária. Vingam-se da brilhante estratégia política de José Dirceu, seus companheiros de direção partidária e do presidente Lula da Silva, que rompeu o isolamento ideológico-messiânico do Partido dos Trabalhadores e encetou com sucesso a transformação do partido de aristocracias sindicais em foco de atração de todos os segmentos desafortunados do país.

Licitamente derrotados, os conservadores e reacionários encontraram no Supremo Tribunal Federal o aval da revanche. O intérprete, contudo, como é comum em instituições transtornadas, virou o avesso do avesso, experimentou o prazer de supliciar e detonou as barreiras da conveniência. Ou o Legislativo reage ou representará o papel que sempre coube aos judiciários durante ditaduras: acoelhar-se.

Imprensa independente, analistas, professores universitários e blogueiros: comuniquem-se com seus colegas e amigos no Brasil e no exterior, traduzam se necessário e divulguem o discurso do ministro-presidente Carlos Ayres de Britto sobre a política, presidencialismo, coalizões e tudo mais que se considerou autorizado a fazer. Divulguem. Divulguem. Se possível, imprimam e distribuam democráticamente. É a fama que merece
.

O STF e os precedentes perigosos

por Mauro Santayana
Nunca tivemos, no Brasil e alhures, uma justiça perfeita. A esse respeito permanece como paradigma da dúvida do julgamento político a condenação de Sócrates. A acusação que lhe fizeram foi de impiedade, o que, no léxico de então, mais do que hoje, significava heresia diante dos deuses: Sócrates estaria pervertendo os jovens com seus ensinamentos, tidos também como antidemocráticos. As lições de Sócrates sempre foram da dúvida, da incessante busca do conhecimento, mesmo que o conhecimento fosse, em sua inteligência, inalcançável. Ele dizia saber que nada sabia.
Nesse pensamento negativo radical, recriado e elaborado por Platão, estaria, em ultima ratio – à qual não se atreveu Platão – a suprema heresia de duvidar da existência dos deuses. Os deuses eram os fiadores da democracia, e quando esse contrato com o mito, em que se fundava a sociedade, rompeu-se, ao ser sua existência posta em dúvida, Atenas perdeu o seu ponto de gravidade e entrou em irrecorrível declínio político.
Não estamos em Atenas daquele tempo emblemático, e seria, isso, sim, impiedosa heresia comparar o julgamento atual do STF ao de Sócrates. Em certo aspecto, no entanto, os dois episódios se semelham: o do espetáculo. Como tudo em Atenas, o julgamento de Sócrates foi público, com 501 juízes. Os acusadores e Sócrates, em sua apologia, foram ouvidos por uma assembléia numerosa, de acordo com os relatos, mas os que acompanham a Ação 470 vão muito além: chegam a dezenas de milhões.
A transparência é salutar, mas não seria essa exposição demorada e ampla, vista pelo outro lado da razão, contaminada pela vaidade de alguns magistrados e, dela decorrente, pela influência de jurados estranhos e ilegítimos, mediante os meios de comunicação?
Todos os condenados já se encontravam, mesmo sem que se conhecessem devidamente os fatos, julgados por apresentadores de programas de televisão e políticos, sem falar nos que se identificavam como “cientistas políticos” e “juristas”, iluminados pelos holofotes, que supriam de argumentos interessados os mediadores das emissoras. Assim se desenvolveu um julgamento paralelo, que antecipava votos e açulava os telespectadores contra os réus. Por isso mesmo, e de acordo com alguns observadores, também em outros aspectos foi um julgamento que desprezou as cautelas da lei no que se refere ao direito de defesa dos acusados.
Se isso realmente ocorreu, abriu-se precedente perigoso, que poderá servir, no futuro, contra qualquer um. Ainda que os acusados fossem realmente culpados, a violação de alguns princípios, entre eles o da robustez das provas, macula o processo e o julgamento. Como dizia Maquiavel, “quando se violam as leis por uma boa causa, autoriza-se a sua violação por uma causa qualquer”, ainda que nociva ao Estado.
O que os observadores de bom senso temem é que o inconveniente espetáculo, em que se transformou o julgamento da Ação 470, excite os golpistas de sempre. Ainda que a sugestão não passe de tolice insana, há os que pretendem aproveitar-se do julgamento para promover um processo contra o presidente Lula e seu governo.
Se isso viesse a ocorrer, os juízes do Supremo teriam que admitir novos processos contra outros chefes de Estado, pelo menos no exame dos atos de governo dos últimos vinte anos. Como diz o provérbio rural, o risco que corre o pau, corre o machado.
A história nos mostra – e 1964 é alguma coisa recente na vida nacional – que uma das primeiras vítimas institucionais dos golpes é exatamente a imprensa. O “Correio da Manhã”, que se excedeu no entusiasmo conspiratório, e publicou o célebre editorial de primeira página em favor da deposição de Jango pela força, sob o título de “Basta, e Fora!”, foi o primeiro a se arrepender – tardiamente – e o primeiro a ser sufocado pela arbitrariedade da Ditadura.
Os outros vieram depois, amordaçados pela censura, e obrigados a beber do fel que queriam que fosse servido aos competidores. Os açodados editores dos jornais e diretores dos meios eletrônicos, como são as emissoras de rádio e televisão, devem consultar seus arquivos e meditar essas lições do passado.
Com todo o respeito pelo STF e a sua autonomia republicana, não nos parece conveniente a transmissão ao vivo dos julgamentos. Os juízes devem ser protegidos pelos ritos da discrição. Seria ideal, também, para a respeitabilidade da Justiça, que os juízes só recebessem as partes e seus advogados em audiências regulares, das quais já participam oficialmente os representantes do Ministério Público.
O ato de julgar, em todas as suas fases, deve ser visto como alguma coisa sagrada. Essa era a razão dos ainda mais antigos do que os gregos, que só escolhiam os anciãos para a difícil missão de ministrar a justiça. Os julgamentos não podem transformar-se em entretenimento ou em competição oratória.


O golpe imaginário de Ayres Britto
07:59, 11/10/2012
Confesso que ainda estou chocado com o voto de Ayres Britto, ao condenar oito réus do mensalão, ontem.
O ministro disse:
“[O objetivo do esquema era] um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”
Denunciar golpes de Estado em curso é um dever de quem tem compromissos com a democracia.
Denunciar golpes de Estado imaginários é um recurso frequente quando se pretende promover uma ruptura institucional.
O caso mais recente envolveu Manoel Zelaya, o presidente de Honduras. Em 2009 ele foi arrancado da cama e, ainda de pijama, conduzido de avião para um país vizinho.
Acusava-se Zelaya de querer dar um golpe para mudar a Constituição e permanecer no poder. Uma denúncia tão fajuta que – graças ao Wikileaks – ficamos sabendo que até a embaixada dos EUA definiu a queda de Zelaya como golpe. Mais tarde, ao reavaliar o que mais convinha a seus interesses de potência, a Casa Branca mudou de lado e encontrou argumentos para justificar a nova postura, fazendo a clássica conta de chegar para arrumar  fatos e os argumentos.
Em 31 de março de 64, tivemos um golpe de Estado de verdade, que jogou o país em 21 anos de ditadura.
O golpe foi preparado pela denúncia permanente de um golpe imaginário, que seria preparado por João Goulart para transformar o país numa “república sindicalista.” Basta reconstituir os passos da conspiração civil-militar para reconhecer: o toque de prontidão do golpismo consistia em denunciar  projetos anti democráticos de Jango.
Considerando antecedentes conhecidos, o voto de Ayres Britto é preocupante porque fora da realidade.
Vamos afirmar: não há e nunca houve um projeto de golpe no governo Lula. Nem de revolução. Nem de continuísmo chavista. Nem de alteração institucional que pudesse ampliar seus poderes de alguma maneira.
Lula poderia ter ido as ruas pedir o terceiro mandato. Não foi e não deixou que fossem. Voltou para São Bernardo mas, com uma história maior do que qualquer outro político brasileiro, não o deixam em paz. Essa é a verdade. Temos um ex grande demais para o papel. Isso porque o PT quer extrair dele o que puder de prestígio e popularidade. A oposição quer o contrário. Sabe que sua herança é um obstáculo imenso aos  planos de retorno ao poder.
Ouvido pelo site Consultor Jurídico, o professor Celso Bandeira de Mello, um dos principais advogados brasileiros, deu uma entrevista sobre o mensalão, ainda no começo do processo:
ConJur — Como o senhor vê o processo do mensalão?
Celso Antônio Bandeira de Mello − Para ser bem sincero, eu nem sei se o mensalão existe. Porque houve evidentemente um conluio da imprensa para tentar derrubar o presidente Lula na época. Portanto, é possível que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.
Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa, de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”
Os partidos políticos podem ter, legitimamente, projetos duradouros de poder. É inevitável, porque poucas ideias boas podem ser feitas em quatro anos.
Os tucanos de Sérgio Motta queriam ficar 25 anos. Ficaram oito. Lula e Dilma, somados, já garantiram uma permanência de 12.
Tanto num caso, como em outro, tivemos eleições livres, sob o mais amplo regime de liberdades de nossa história.
Para quem gosta de exemplos de fora, convém lembrar que até há pouco o padrão, na França, eram governos de 14 anos – em dois mandatos de sete. Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito para quatro mandatos consecutivos, iniciando um período em que os democratas passaram 20 anos seguidos na Casa Branca. Os democratas de Bill Clinton poderiam ter ficado 12 anos. Mas a Suprema Corte, com maioria republicana, aproveitou uma denúncia de fraude na Flórida para dar posse a  George W. Bush,  decisão ruinosa que daria origem a uma tragédia de impacto internacional, como todos sabemos.
O ministro me desculpe mas eu acho que, para  falar do mensalão como parte de  projeto de “continuísmo seco, raso,” é preciso considerar o Brasil  uma grande aldeia de Gabriel Garcia Márquez. Em vez da quinta ou sexta economia do mundo,  jornais, emissoras de TV, bancos poderosos, um empresariado dinâmico, trabalhadores organizados e  100 milhões de eleitores, teríamos de coronéis bigodudos com panças imensas, latifúndios a perder de vista, cidadãos dependentes, morenas lindas e apaixonadas,  capangas de cartucheira.
No mundo de Garcia Marquez, não há democracia, nem conflito de ideias.  Não há desenvolvimento, apenas estagnação, tédio e miséria. Naquelas aldeias do interior remoto da Colômbia,  homens e mulheres famintos vivem às voltas de um poder único e autoritário. Esmolam favores, promoções, presentes, pois ninguém tem força, autonomia e muito menos coragem para resolver a própria vida.  Desde a infância, todos os cidadãos são ensinados a cortejar o poder, bajular. É seu modo de vida. Como recompensa, recebem esmolas.
No mensalão de Macondo, seria assim.
Será esta uma visão adequada do Brasil?
Em 1954, no processo que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, também se falou em golpe.
Com apoio de uma imprensa radicalizada, em campanhas moralistas e denuncias – muitas vezes sem prova – contra o governo, dizia-se que Vargas pretendia permanecer no posto, num golpe continuísta, com apoio do ”movimento de massas.”
Era por isso, dizia-se, que queria aumentar o salario mínimo em 100%. Embora o mínimo tivesse sido congelado desde 1946, por pressão conservadora sobre o governo Eurico Dutra, a proposta de reajuste era exibida como parte de um plano continuísta para agradar aos pobres – numa versão que parece ter lançado os fundamentos para as campanhas sistemáticas contra o Bolsa-Família, 50 anos depois.
Embora falasse em mercado interno, desenvolvimento industrial e até tivesse criado a Petrobrás, é claro que Vargas queria apenas, em  aliança com o argentino Juan Domingo Perón (o Hugo Chávez da época?), estabelecer uma comunhão sindicalista na América do Sul e transformar todo mundo em escravo do peleguismo, não é assim? E agora você, leitor, vai ficar surpreso. Um dos grandes conspiradores contra Getúlio Vargas, especialista em denunciar golpes imaginários, foi parar no Supremo. Chegou a presidente, teve direito a um livro luxuoso com uma antologia de suas sentenças.
Estou falando de Aliomar Baleeiro, jurista que entrou no tribunal em 1965, indicado por Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo militar, e aposentou-se em 1975, o ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob tortura pelo porão da ditadura.
Baleeiro deixou bons momentos em sua passagem pelo Supremo. Defendeu várias vezes o retorno ao Estado de Direito.
Chegou a dar um voto a favor de frades dominicanos que faziam parte do círculo de Carlos Marighella, principal líder da luta armada no Brasil.
A ditadura queria condenar os frades. Baleeiro votou a favor deles.
Tudo isso é muito digno mas não vamos perder o fio da história que nos ajuda a ter noção das coisas e aprender com elas.
Em várias oportunidades, o ministro que faria a defesa do Estado de Direito contribuiu para derrotá-lo.
O ministro chegou ao STF com uma longa folha de serviços anti democráticos.
Em 1954, ele era deputado da UDN, aquele partido que reunia a fina flor de um  conservadorismo bom de patrimônio e ruim de votos.
Um dos oradores mais empenhados no combate a  Getúlio Vargas, Baleeiro foi a tribuna da Câmara para pedir um “golpe preventivo”. ( Pode-se  conferir em “Era Vargas — Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade,” página 411, UNESP editora.)
Os adversários de Vargas tentaram a via legal, o impeachment. Tiveram uma derrota clamorosa, como diziam os locutores esportivos de vinte anos atrás:  136 a 35.
Armou-se, então, uma conspiração militar. Alimentada pelo atentado contra Carlos Lacerda, que envolvia pessoas do círculo de Vargas, abriu-se uma pressão que acabaria emparedando o presidente, levado ao suicídio.
Baleeiro permaneceu na UDN e conspirou contra a campanha de JK, contra a posse de JK e  contra o governo JK.  Sempre com apoio nos jornais, foi um campeão de denúncias. Era aquilo que, mais uma vez com ajuda da mídia, muitos brasileiros pensavam que era o Demóstenes Torres – antes que a verdade do amigo Cachoeira viesse a tona.
Baleeiro estava lá, firme, no golpe que derrubou Jango para combater a subversão e a … corrupção.
Foi logo aproveitado pelo amigo Castelo Branco para integrar o STF. Já havia denuncia de tortura e de assassinatos naqueles anos. Mortos que não foram registrados, feridos que ficaram sem nome. Não foram apurados, apesar do caráter supremo das togas negras.
Entre 1971 e 1973, Baleeiro ocupava a presidência do STF. Nestes dois anos, o porão do regime militar matou 70 pessoas.
Nenhum caso foi investigado nem punido, como se sabe. Nem na época, quando as circunstâncias eram mais difíceis. Nem quarenta anos depois, quando pareciam mais fáceis.
Em 1973, José Dirceu, que pertenceu a mesma organização que Marighella, vivia clandestinamente no Brasil. Morou em Cuba mas retornou para seguir na luta contra o regime militar. Infiltrado no grupo, o inimigo atirou primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.
Não se apontou, como no mensalão, para quem tinha o domínio do fato para a tortura, as execuções.
Um dos principais líderes do Congresso da UNE, entidade que o regime considerava ilegal, Dirceu foi preso em 1968 e saiu da prisão no ano seguinte. Não foi obra da Justiça, infelizmente, embora estivesse detido pela tentativa de reorganizar uma entidade que desde os anos 30  era reconhecida pelos universitários como sua voz política.
(Figurões da ditadura, como o pernambucano Marco Maciel, que depois seria vice presidente de FHC, Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo no tempo de Geisel, tinham sido dirigentes da UNE, antes de Dirceu).
A Justiça era tão fraca , naquele período, que Dirceu só foi solto  como resultado do sequestro do embaixador Charles Elbrick, trocado por um grupo de presos políticos. Mas imagine.
Foi preciso que um bando de militantes armados, em sua maioria garotos enlouquecidos com Che Guevara, cometesse uma ação desse tipo para que  pessoas presas arbitrariamente, sem julgamento, pudessem recuperar a liberdade. Que país era aquele, não? Que Justiça, hein?
Preso no Congresso da UNE, também, Genoíno foi solto e ingressou na guerrilha do Araguaia.
Apanhado e torturado em 1972, Genoíno conseguiu esconder a verdadeira identidade durante dois meses. Estava em Brasília quando a polícia descobriu quem ele era. Foi levado de volta a região da guerrilha e torturado em praça pública, como exemplo.
Ontem a noite, José Dirceu e José Genoíno foram condenados por 8 votos a 2 e 9 votos a 1.
Foi no final da sessão que Ayres Britto falou em “projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”.



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