quinta-feira, 16 de agosto de 2012

ESPAÇO URBANO E CIDADANIA: O OLHAR DE UM ARQUITETO SOBRE A PRAÇA DA SÉ





Murilo Max, arquiteto, já falecido, foi professor da Faculdade de Arquitetura da USP, autor do livro Nosso Chão Sagrado, publicado pela Editora Edusp. O autor tem uma vasta obra sobre a cidade de São Paulo.


Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite feito pelo Conselho de Cidadania da Praça da Sé, cujos primeiros passos acompanho como cidadão, desejando um futuro melhor não só para a Praça da Sé mas também para outros logradouros públicos dessa curiosa cidade e nesse país atormentado.
Sou arquiteto e apaixonado pela história desta cidade. Procurei compreender a Praça da Sé como espaço público, trazendo para esse debate algumas reflexões sobre esse espaço público com as características que ele tem hoje. Como diz o título desse seminário, a Praça da Sé é o marco zero da cidade.
Saliento que o fenômeno que ocorreu nessa cidade nos últimos cem anos é excepcional pelas proporções que assumiu. Mais do que isso: é o único no planeta. Nenhum aglomerado urbano deu um salto qualitativo - e não preciso dizer quantitativo - que São Paulo deu a partir dos anos 70. Por um lado, a Praça da Sé, apesar de seu crescimento imenso, continua se manter como referencial no tempo e no espaço mais forte não só nesse município, com toda essa aglomeração gigantesca que costuma-se chamar de Grande São Paulo.
 Isso é um fenômeno que não é único, mas é raro no concerto das grandes aglomerações urbanas de todo o mundo. Em contraposição a isso, o fato que acabamos de ouvir da Secretária de Cultura do Município, que expôs esse aspecto, que nós estamos ao longo do tempo neste lugar que se mantém com uma força de gravidade como marco zero, apesar dos pesares, aos solavancos, se mantendo com essa referência maior, central, da metrópole da Grande São Paulo. É esse fato que nos leva a essa luta de fazer desse espaço um espaço efetivo de nossos cidadãos.
Um aspecto a ser levado em consideração nesse momento é o surgimento do município de São Paulo. Ou seja, São Paulo como sede do município pioneiro desse país interiorano. Temos, portanto, a criação da Vila de São Paulo, com a Fundação do Colégio dos Jesuítas. Temos um marco simbólico no espaço da Praça que chamamos de Pátio do Colégio. O Colégio, como sabemos, desapareceu, mas a Praça está aí, assinalando o lugar de um determinado evento. Anos depois, de malas e bagagens, veio a criação do primeiro município interiorano desse país, vindo do sertão de Santo André da Borda do Campo. Até hoje não se sabe exatamente onde se localizou essa primeira sede do Município, transferida para essa vila que emergia - Piratininga.
Durante mais de um século e meio o governo dessa Vila, desse município de boca do sertão, não teve casa, sede. Dessa forma, não tivemos nenhum registro iconográfico, mas uma farta e curiosa documentação. Essa documentação escrita - refiro-me às Atas da Câmara de São Paulo - mostra que a preocupação de seus vereadores, juízes, foi sempre a construção, a melhoria de sua Igreja Matriz.
Com a união da Igreja e o Estado sob o regime monárquico, a Igreja Matriz desempenhava, como desempenhou cem anos depois, um papel que transcendia os ritos da religião oficial. Papel no que diz respeito não só aspectos assistências importantes, mas cartoriais da maior relevância. Poderíamos dizer que até a Proclamação da República a sacristia da matriz foi um verdadeiro registro civil. Toda a documentação dos indivíduos, da família e da sociedade, de uma maneira geral, era guardada nesse lugar.
Nesse mundo que perdurou durante tanto tempo no país foi na Igreja Matriz e não na Câmara ou na Cadeia da Vila de São Paulo que se centralizaram as atenções. O nosso tema não é o tempo, diante do qual está a Praça da Sé ainda hoje, mas é esse espaço fronteiriço, o ágora  da Matriz de São Paulo.
Esse ágora até o início do século XVIII foi a referência imagética e efetiva de algo que pudesse pensar como exercício da cidadania. Está claro que antes da Revolução Francesa, em pleno mundo moderno, a cidadania passa a ser entendida de forma distinta como a entendemos hoje. É esse um dos pontos que gostaria de levantar para a reflexão.
Quem eram esses homens que consideravam o largo da matriz uma força emblemática, como tinha aquela “Igreja Mãe”, “Igreja Sede” de uma determinada paróquia na boca do sertão?
Não era todo e qualquer homem que tinham conferido esse significado emblemático à Praça, mas determinados senhores que tinham acesso ao poder, às terras. Esses fidalgos podiam ascender socialmente, pois tinham o domínio das terras. Exatamente a área que hoje corresponde hoje ao finalzinho da parte de baixo da Praça da Sé, ladeada pela Caixa Econômica Federal, no alinhamento da antiga Igreja Matriz, que ficava mais ou menos sob as árvores da parte de baixo da Praça, passava esse alinhamento, na altura do busto de Manoel da Nóbrega. A ampliação da atual Praça, ou parte dela, é uma coisa desse século. Vejam que essa res-pública, como foi lembrada, era algo para poucos.
O segundo momento de expansão da Praça reforça esse elitismo, mas é preciso lembrar que se mantém o templo. É claro que reconstruído, ampliado, engrandecido, principalmente na terceira década do século XVIII, quando essa matriz se torna a sede de um novo bispado no Brasil, assumindo imensas responsabilidades, avançando até as terras conhecidas no sul do país, adentrando para o centro oeste e abarcando boa parte das chamadas minas-gerais, que cresceu e se expandiu com a corrida do ouro de uma maneira impressionante. Esse bispado de São Paulo, precedida pela elevação da Vila de São Paulo se instala num largo terreno, o pátio da Sé.
A rigor não podemos falar nesse momento de Praça da Sé. Não podemos esquecer, também, que nessa união entre Igreja e Estado ocorreram coisas curiosas que foram pouco a pouco deixadas para trás, mas que dizem respeito à questão da cidadania. É difícil resgatar nesse momento o cotidiano em que vivia a população da época, com suas reivindicações, seus anseios e pretensões. Mas não é impossível. O historiador que se debruçar sobre ele terá sempre um material truncado pela pobreza da documentação disponível.
Estou pensando na Praça da Sé não mais no período colonial. Estou pensando mesmo no século XVIII. Neste momento, quando aqui se instala o bispado, é reforçado a função do ágora. É preciso lembrar que esse ágora da Praça da Sé tem e reforça uma prerrogativa que desapareceu no mundo todo que era o direito de asilo. De um lado, o clero ligado ao governo temporal, tinha um foro privilegiado - como tem ainda os militares. As autoridades religiosas podiam dentro da igreja dar refúgio para aqueles condenados pela justiça temporal. Ou seja, o espaço funcionou como uma espécie de refúgio na malha urbana da cidade. Um foragido podia ir lá e ser acolhido. Provavelmente ele  era devolvido à justiça temporal, mas devolvido através de uma autoridade superior que gozava de foros privilegiado. Isso vai desaparecendo aos poucos ao longo dos tempos, de tal forma que não temos mais notícia de seu funcionamento na Proclamação da República. Ressalto esse aspecto para mostrar que havia nessa atitude um cunho de proteção dos cidadãos - ou determinados cidadãos.
O terceiro momento da Praça da Sé é exatamente o da proclamação da República. Com a derrubada da monarquia, e com ela o casamento da Igreja com o Estado, cai por terra esse foro privilegiado dos eclesiásticos. Esse espaço da Sé foi sendo paulatinamente abandonado pelas elites. A própria Igreja consegue do Império uma loteria que financiaria a construção da nova Catedral desta cidade em outra Praça, na direção que apontou a professora Marilena Chauí, mais além do Teatro Municipal.
Refiro-me aqui a praça que passou a se chamar Praça da República. E isso não foi de graça que ocorreu. Esse largo antigo dos curros, das corridas de touros, tinha desde há muito tempo o nome de 7 de abril, quando o Brasil despediu o seu primeiro chefe de Estado. Esse largo, ao se tornar Praça da República, por intenção do Governo Republicano e do governo do novo Estado de São Paulo, pode deixar aquele projeto se transferir para o outro lado do Anhanbagau, a Sé. Ela ficaria onde lá está até então.
Na Praça da República construiria o Estado que já se urbanizava e crescia de maneira impressionante em termos de população e em termos de riqueza. Lá, também, o Estado construiria o maior edifício da cidade (exceção feita ao Museu do Ipiranga, construído nos arrabaldes da cidade - atual bairro do Ipiranga). Eu me refiro à Escola Normal do Estado, atual prédio da Escola Caetano de Campos.
A República tem a pretensão de educar o povo brasileiro - ideal colocado no mundo inteiro depois da revolução liberal. A Escola Caetano de Campos tem essa relação espacial importante em termos emblemáticos com a cidade e com o Estado. Ao colocar a escola padrão diante de um grande logradouro, que se chama - não de graça - Praça da República, o que acontece com a Catedral ?
A Igreja recua. Propõe por cima dos planos republicanos de início do século, uma reorientação das formas de ocupação do distrito da Sé. Pretendia um novo logradouro no antigo ágora da Sé, um logradouro com características monumentais, modernas linhas do ecletismo da melhor arquitetura que se fazia por todo o mundo, abrigando o Paço Municipal de São Paulo e outras instituições de São Paulo. (uma das únicas que sobraram foi a sede do Poder Judiciário ).
Eu perguntaria para os senhores : Onde se encontram os dois outros poderes (o executivo e legislativo) ? Estão junto ao Parque do Ipirapuera ( me refiro à Assembléia Legislativa ). A sede do Governo do Estado não é preciso procurar. Não foi de graça que ela se localizou junto às elites, quase nos arrabaldes de nível alto da capital, no bairro do Morumbi. Situação curiosa, mas não muito dignificadora como símbolo do exercício da cidadania. No coração da cidade os cidadãos encontram apenas os juízes e desembargadores. A outra parte do poder, para ter contato, os cidadãos, para ter acesso, terá que marchar em direção ao bairro do Morumbi.
Na República, portanto, a idéia de instalar o Governo Municipal nesse espaço da cidade foi frustrada. O quarto e último momento já são as décadas de São Paulo da metropolização. E aqui eu faço uma meã culpa. Acompanhei e participei da última reforma espacial sofrida pela Praça da Sé. Essa reforma não se deu de graça, mas por outros motivos. Isso deveria ter sido discutido, mas devido ao momento político institucional vivido pelo país foi impossível. Não foi de graça, também, que esse local passou a ser o maior cruzamento urbano do serviço metropolitano, o centro gravitacional da cidade de São Paulo.Com a construção da Estação do Metrô - surgida posteriormente - a idéia era de que era necessário fazer alguma coisa em cima em termos paisagístico.
Há 15 anos, portanto, se colocava a questão da necessidade de criar ou desenvolver um plano de ocupação e reformulação em certos espaços públicos da cidade, que crescia vertiginosamente e já era o maior pólo urbano desse país. A necessidade de resgatar o chão dos cidadãos era colocada como uma necessidade urgente.
Participei de uma comissão (daí a minha mea culpa) que tem a ver com a discussão sobre  a colocação de esculturas, justificada como necessidade da Praça ter obra de arte. Fui voto vencido. Por isso, graças a Deus, tenho a coragem de contar esse fato. Tratava-se de cuidar plástica e paisagisticamente desse espaço. O resultado lá está. O resultado, não tenho dúvidas, nos agride, principalmente aqueles que fazem triste e dolorosamente hoje o melhor  retrato da Praça da Sé. Retrato da tristeza e da pobreza nacional. Pobreza não só econômica e financeira, não só dos desajustes sociais que estão aí diante de nós, mas pobreza de ausência de debates e de projetos que possam melhorar a simbólica Praça da Sé.



























ALGUMAS IMAGENS DO PASSADO SOBRE A PRAÇA DA SÉ (Textos extraídos do livro de Ecléa Bosi “Lembrança dos Velhos”, editora Edusp-SP, citado no seminário por Marilena Chauí.

“Quando eu tinha dez anos, papai me levou no centro da cidade. Naquela época estavam fazendo a Catedral de praça da Sé: vi quatro operários carregando  um bloco de pedra para a igreja. A Praça da Sé tinha alguns: só em 1915 é que começou a construção de edifícios em São Paulo. Nas ruas do centro as pessoas se cumprimentavam. Faz vinte anos que são Paulo ficou desse jeito.”(Sr. Ariosto, p.106)
          
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“O centro da cidade de São Paulo só tinha dois viadutos, ambos de ferro, o Viaduto do Chá e Santa Efigênia. Depois da feitura do prédio Martinelli é que São Paulo começou a ter áreas de cidade importante, em 1927, 1928. Abriram a Avenida São João, a Rua Libero Badaró, o centro foi se alargando. Conheci São Paulo como uma cidade provinciana.”( Sr. Antônio, p.173)

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“Um grande acontecimento que eu não esqueço foi o da noite na Praça da Sé. Era uma grande parada integralista. Viemos de madrugada no automóvel de Antônio Salem, aluno da Faculdade de Direito, e com Almeida Salles, grande orador. O automóvel era um Buik grande. O Pannunzio, ao chegar à Consolação, matou um burro. Então fomos à Praça da Sé e houve um desfile desde a Brigadeiro até a Paulista ; o Plínio ia passar em revista as  legiões. A Dr. Stela era  o chefe de São Paulo. Eu formava na segunda legião. Tudo era legião. O pessoal estava esperando na Praça da Sé. O  itinerário deveria ser : Brigadeiro, Largo do São Francisco, Rua de São Bento, Praça Antônio Prado, 15 de Novembro e Sé. Mas o Ribeiro, que comandava a segunda legião, percebendo o horário atrasado, cortou caminho e do Largo de São Francisco passou à Benjamim Constant até a Praça da Sé. No triângulo, os comunistas já estavam escondidos com as metralhadoras e teriam matado de quinhentas a mil pessoas. Os comunistas e a Guarda Civil estavam mancomunados na Praça da Sé : atiraram e mataram quatro integralistas. Eu me arrastei com a barriga no chão.”(Sr. Antônio, p.189)
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“De vez em quando os integralistas  resolviam desfilar e havia entreveros. Um foi no Largo da Sé: os integralistas resolveram se reunir lá. O Palacete Santa Helena ainda estava em construção. Comunistas, socialistas e anarquistas todos se juntaram e se esconderam na própria catedral que ainda estava com andaimes, e desses andaimes mandaram pedra lá de cima. Saiu uma corrida tremenda. Os comunistas ocuparam o Palacete Santa Helena; naturalmente com a conivência dos operários, entraram pelos andaimes e, quando os integralistas se reuniram embaixo, despejaram pedras. Foi correria, pancadaria, a polícia foi atrás deles no Santa Helena, nos prédios, ali por perto onde eles tinham se escondido e nessa ocasião Mário Pedrosa levou um tiro, ele estava metido no barulho. Nunca houve concentração integralista que não saísse barulho.”( Dr. Brites, p. 267).

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