terça-feira, 14 de agosto de 2012

VIVEMOS NUMA DEMOCRACIA? QUE DEMOCRACIA É ESSA?


Benedito Carvalho Filho
Quando o Jornal Pessoal 518, da primeira quinzena de agosto, chegou (atrasado) em minhas mãos, estava lendo o livro recém publicado em São Paulo, do filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de Filosofia da USP e colunista do jornal Folha de São Paulo e da revista Carta Capital. O livro se chama A esquerda que não tem medo de dizer o seu nome (Editora Três Estrelas) e me fez refletir sobre os artigos do Jornal Pessoal, especialmente sobre a descrição que Lúcio Flávio Pinto faz sobre o seu envolvimento com a justiça paraense (Quando a justiça reprime a verdade), que, para mim, representa um verdadeiro libelo de quem sofre na pele, desde muitos anos, as atrocidades não exatamente da Justiça (com “J” maiúsculo), mas como ela é exercida pelos os chamados “operadores do Direito” “numa região, mais mal servida pela Justiça brasileira” (a Amazônia). Será só na Amazônia?
Aliás, esse número do Jornal Pessoal, se observarmos com mais atenção, expõe e articula o mesmo tema com muitas variações, como é possível perceber no longo artigo sobre o assassinato mal esclarecido da irmã Dorothy Stang em 2005, onde um delegado da Polícia Federal faz revelações bombásticas sobre o acontecimento. Quem mandou assassinar a irmã? Um mistério a ser revelado.
Quase no final do jornal, na página 9, temos o excelente comentário sobre o livro do jornalista paulista Bernardo Kucinski que conheci em São Paulo na época da ditadura quando freqüentava a redação do jornal alternativo Em Tempo. O livro narra, como diz Lúcio, a “via crucis” quando Bernardo vai atrás dos acontecimentos dramáticos que ceifaram a vida de sua irmã, torturada pela ditadura e desaparecida não se sabe como e onde. “A sua impotência diante da barbárie”, como diz Lúcio Flávio, “é a mesma do personagem de Franz Kafka naquela Tchecoslováquia tão distante.”
Isso me fez pensar: que relação é possível estabelecer entre a barbárie que se vive na Amazônia (“o trabalho escravo, a destruição massiva e maciça da natureza, o choque entre brancos e índios, a apropriação ilícita de enormes extensões de terra, os crimes de pistolagem”, que ceifaram a vida de tantas pessoas, como do ex-deputado Paulo Fonteles, assassinado friamente e objeto de artigos recentes no Jornal Pessoal, e tantos outros crimes, muitos deles impunes até hoje) com a barbárie da época da ditadura e seus torturados, anistiados e soltos sem que tenham sido reveladas as suas atrocidades, como podemos perceber ao ler o livro da irmã do jornalista citado acima?
Mesmo depois da Constituinte de 1988, será que vivemos numa democracia?
Lendo o artigo Duciomar, o dilúvio (página 4) percebe-se que nos tempos difíceis em que vivemos como é frágil isso que chamamos de democracia e o quanto estamos longe, como observa Lúcio Flávio, dos ideais da Revolução Francesa. Quando uma pessoa pública nega a lei, a regra escrita e aparece como um demagogo que vende a ilusão de obras duvidosas usando dinheiro público, diante de um povo sem soberania e discernimento capaz de compreender o seu papel no jogo político, o que poderemos esperar, senão da manipulação, a criação de miragens calibradas pela demagogia da propaganda duvidosa, mas capaz de enganar os incautos? É essa a democracia que queremos?
Neste momento são valiosas as lúcidas e oportunas as observações de Safatle no livro que citei no início de meu comentário.
“Conhecemos situações nas quais a Justiça se dissocia do Direito. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra o governo ilegal é uma ação legal.”
Mais adiante afirma:
“Vale a pena insistir nessa questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores que constitui a tradição de modernidade política da qual fazemos parte afirma o direito fundamental de todo cidadão à rebelião e à resistência.”
Safatle, ao estabelecer a relação entre o Estado de Direito e a democracia, pergunta:
“Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de Direito é inaceitável. Mas e se, longe de ser um aparato monolítico, o Direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de vários matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro? A Constituição de 1988, por exemplo, não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de Direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir?”  
Mais adiante uma observação que pode ser muito útil para compreender os processos que Lúcio Flávio está envolvido, simplesmente por exercer o seu direito de livre expressão.
“Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o Direito objeto possível de uma desconstrução que visa expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das formas dominantes da sociedade” (o grifo é meu) Quem pode dizer em sã consciência que o embate social das forças na determinação do Direito termina necessariamente de maneira mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo. Ao contrário, o ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece sua própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena da soberania popular”. 
Quando vemos a forma como Lúcio Flávio vem sendo julgado, e ele deixa claro quando reconhece:
“Nenhuma das pessoas que me processaram exerceu o direito de defesa. Nenhuma delas contestou de público o que publiquei. Todos os 12 autores de ação estavam ligados a grupos de comunicação, grileiros de terras, extratores de madeira e magistrados a eles relacionados. O elo entre esses personagens dá aos seus propósitos a característica de uma conspiração. Conspiração contra a verdade e pela imposição do silêncio que interessa a uma parte apenas do enredo: os poderosos.”
Essa constatação do jornalista só confirma a afirmação do Derrida. A “verdade” produzida não é a “Verdade” com “V” maiúsculo (se é que existe isso), mas a “verdade” “que interessa a uma parte apenas do enredo”, o enredo construído por quem tem o poder econômico, que sabe que “o Direito não é uma construção monolítica, mas “uma construção heteróclita, em que várias leis de várias matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro”. Acreditar que os executores do Direito estão busca de uma verdade transcendente é ingenuidade, principalmente na sociedade que nunca experimentou a sua Revolução Francesa, que ainda vive uma pseudo democracia onde “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. E ter “juízo” é aceitar caninamente o que manda o dono da baiúca.
Tem muitos outros aspectos abordados pelo filósofo uspiano. Mas o espaço é reduzido. Que tal abrir a polêmica? À serviço de quem está a chamada “verdade jurídica”?


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