quarta-feira, 15 de agosto de 2012

UM OLHAR NÔMADE DA CIDADE PARA O SERTÃO




Benedito Carvalho Filho

Muitos professores universitários do Ceará, em busca de melhores condições salariais, vêm se deslocando para o interior, para ministrar cursos de licenciatura. Transformam-se em semi-nômades, professor bóia-fria, sem férias, com a tarefa hercule de transmitir conteúdos em tão pouco tempo. Uma verdadeira "operação de guerra", como dizem os planejadores responsáveis pela implantação desses cursos
É preciso documentar essa experiência. O professor nômade também é um observador e reflete sobre a sua prática. Se desloca para o fundão desse país como um cartógrafo, um etnólogo viajante que capta esse modernidade contraditória de nosso Estado e do país e vai percebendo que, no emaranhado dos planos educacionais, esconde-se uma realidade dramática que não pode ser resolvida somente pela via educacional.
 No fundão do Ceará, onde as elites que se dizem modernas vão buscar os votos para se legitimar no poder ainda perdura o latifúndio, o poder despótico das velhas e novas oligarquias. Essas mesmas oligarquias sabem bem manipular o Estado para angariar votos. Muitos projetos educacionais servem para isso.
Nestes tempos de instabilidade viver em uma cidade como Fortaleza é sempre um movimento de desterritorialização permanente. Novas subjetividades vão se configurando e reconfigurando nos espaços polifônicos. Sensação de nomadismo, fazendo nos sentir como um estrangeiro em trânsito, expostos às novas experiências e percepções. 
Em meio às viagens reflito um pouco a minha experiência como professor que se desloca da cidade para o sertão para lecionar em escolas rurais.
Este texto que apresento para compor o painel das várias imagens sobre a cidade, foi escrito em 2001, numa dessas andanças da cidade para o sertão, do litoral ( onde a vida urbana fervilha ) para o interior do Brasil. O chamado fundão do país, o sertão, anárquico, sem centro, em permanente nomadismo, sempre nos convida a pensar trajetórias diversas, compor cartografias multiformes, anotadas no percurso de viagens  (interiores e exteriores ) com seus diversas personagens e atores.
Ser professor nômade nesses tempos de dura sobrevivência é estar nas ruas e estradas, como uma espécie de andarilho, com sua mochila, com seu ser saber, também, nômade; um lumpen cultural (um pouco caixeiro viajante, que leva pacotes de conhecimentos modernos para o interior) em épocas de desmanches de papeis, profissões e paisagens.
Não pretendo fazer uma análise sociológica da condição do professor citadino, nem procurar compreender as motivações que o levam a experimentar esse nomadismo. Nesses tempos -como já dissemos - de proletarização desenfreada, já é dito e sabido que o professor, para complementar seus parcos salários, larga-se pelas brenhas do sertão a fora para sobreviver. Essa experiência subjetiva começa ao sair de casa em direção à rodoviária e prolonga-se no percurso da viagem, itinerário sempre cheio de aventuras e surpresas, como vou mostrar.
 A  sensação de que  percorremos dezenas de quilômetros sem sair do lugar, principalmente quando  o trajeto no ônibus inicia nos conduzindo ao sertão. Como um cartógrafo observador[1] fui anotando o que pude em meu diário de bordo, com uma olhar sociológico, mas atento aos detalhes que parecem desapercebidos para quem está familiarizado com a vida cotidiana da cidade.
Onde começa o modo de viver urbano e rural? Como distinguir a Gemeinschaft e a  Gesellschaft, para utilizar a expressão de Tonnies no final do século XIX ?
Neste momento de aceleração, de desmanchamento, o elo que une o campo à cidade não se baseia na velha divisão do trabalho. A mercadoria industrializada destrói velhas barreiras, penetra na Casa Grande e desmancha estruturas de mandos patriarcais.
O algodão, a frágil tessitura que costurava as relações sociais é destruída não só pela praga do bicudo, mas pelas novas ondas industrializantes, pela modernização dos transportes e a construção de estradas, que passam a levar a nova praga destruidora: a mercadoria. 
Em um segundo momento, depois de ter mergulhado no sertão, defronto-me novamente com a cidade, onde dois tempos parecem embaralharem-se.. A cidade sertaneja com seus traços de modernidade delineia-se e mobiliza meus sentidos. Metrópole-sertão? Ou sertão se metropolizando?  Tempos nômades dilatados na  intensidade da experiência e do olhar. [2] 

  
RUMO À ESTRADA: A POLIFONIA URBANA NO TRAJETO DO NÔMADE


 Nem bem amanhece e a cidade já se movimenta frenética. O trânsito de carros e pessoas mistura-se, embaralham-se. Os inúmeros semáforos anunciam movimentos de partidas, luzes vermelhas e verdes, esse ícones que nos torna decifradores de significados, levados pelo automatismo dos gestos naturalizados na rotina cotidiana, como observava Simmel.
As motos costuram os carros, inventam e reinventam caminhos na manhã de segunda feira. Os bicicletistas equilibram-se nas suas frágeis máquinas, arriscam-se em plena avenida. Um descuido, um toque e a vida estão por um fio. Mas a vida pede velocidade que pode lhe custar a própria vida.
          Olhar a cidade neste momento é sentir a vertigem do começo de uma aventura; a vida e a ameaça permanente da morte, a luta incansável pela sobrevivência e o desejo – sempre recomeçado – de chegar a algum lugar.
Desejos díspares, multiformes, gestos, pequenos detalhes quase invisíveis. O senhor aleijado sentado em uma cadeira de roda em pleno semáforo da Av. Pontes Vieira, na esquina de uma transversal onde se encontra a Igreja de Fátima, esse local de romarias que se agita com suas novenas, terços e devotos.
Uma esmolinha, pelo amor de Deus! – suplica a pedinte. O olhar distante da jovem senhora, trancada no seu carro com ar condicionado, essa parede que o separa do mundo dos aleijados, dos meninos que disputam fregueses com seus rodos empapados de água; as moças com seus papéis de propaganda anunciando novas ofertas, novos empreendimentos imobiliários, um novo restaurante, um negócio qualquer.
O fechamento do sinal é, para muitos, um momento de quase meditação, onde cada um parece habitar um mundo diferente. Os olhares se cruzam numa sedução preguiçosa, matinal. Mas, visto de outro ângulo, é também um momento de mobilização de corpos e outros tipos de olhares, de máquinas, de outros objetos que dançam diante de nós, compondo uma coreografia polifônica. Homens-máquinas, homens-rodos, homens-mulheres-papéis-propaganda, homens-pedintes, esmoleres, são esses personagens que deslizam no asfalto, uma espécie de desfile mambembe naquela manhã de segunda feira. O instante condensa-se nesses intensos agenciamentos multiformes e efêmeros.
 Quando me aproximo da rodoviária da cidade, vislumbro sua arquitetura fria de cimento, com suas abóbadas altas e dentro dela um frêmito de corpos se movimentam pelas plataformas e guichês envidraçados. Aqui começam e recomeçam os rituais de chegadas e partidas. É daqui que vejo a cidade nesse dia de nomadismo. Ela tem ares de metrópole e sertão, com suas rezas, com seus cavalos cruzando as ruas, seus pedintes.
De repente, minha visão se desloca para as redondezas dos galpões da rodoviária e vejo meninos e meninas que não se sabe de onde saíram envolvidos numa caça permanente em busca de um trocado, mapeando os aglomerados de transeuntes, os territórios que conhecem na palma da mão, pois eles convivem freqüentemente ali.
O que seria a cidade de Fortaleza vista à partir de seus olhares ? Um espaço de sobrevivência? Um espaço de liberdade? Meus pensamentos se deslocam para os meninos de rua da cidade de São Paulo, mais exatamente na Praça de Sé, onde tentei conhecer sua cartografia. Descobri que, no nomadismo do cartógrafo, viaja-se também pela memória de outros tempos, outros registros que retornam à consciência. [3]

A VIAGEM

Eis diante de mim o enorme ônibus amarelo, com seus vidros escuros, as janelas fechadas, as poltronas confortáveis, seus roncos pneumáticos, como se tivesse convidando-me para uma viagem no tempo.
Os passageiros saem da cidade sem perceber. Os 400 quilômetros de viagem parecem não ser mais obstáculo para quem pretende penetrar no sertão cearense. E – o que me parece incrível – viajar para o sertão sem ver a paisagem do semi-árido porque o ônibus que nos conduz, “classe executiva”, nos leva ao nosso destino acomodados em confortáveis cadeiras reclinadas, aconchegantes, olhando para a tela de televisões estrategicamente colocadas em várias partes do ônibus, aclimatado, evidentemente, por possante ar condicionado ligado em baixa temperatura, criando uma sensação de que estamos numa serra, ou numa região fria.
Saio da cidade, portanto, sem deixar o conforto que a modernidade oferece, sem ver as ruas e seus personagens mudos que deixamos na frenética Av. Pontes Vieira, mas encapsulados dentro de uma máquina, como se estivéssemos dentro de um avião.
Não sintia aquela velha sensação de quando viajava em ônibus mais simples, que trafegava vagarosamente pela cidade e, pouco à pouco, ia ganhando a estrada, o que me permitia ir, gradualmente,  percebendo a mudança da paisagem. Não via a estrada, os personagens na rua, os cenários. Estaria, realmente, saindo da cidade?
No ônibus as janelas estão hermeticamente fechadas. Os vidros fumês e a cortina parecem nos proteger e sufocar ao mesmo tempo. Uma sensação de que estamos numa espécie de nave, e “la nave vá”, felinianamente, deslizando pela estrada que não vemos, encantados, certamente, pela beleza juvenil da simpática rodomoça que poucos minutos depois está nos convidando para ver uma fita de vídeo. Como nas aeronaves, parecemos ganhar altura, sem a compressão do vôo.
 “Aqui vos fala a comissária Eliane. O comandante que dirige esse ônibus chama-se Eliezer. Nosso tempo de viagem está estimado em 4 horas. Faremos duas paradas. Esperamos que nossa viagem seja tranqüila. Boa viagem para todos.”

Estamos indo para uma pequena cidade situada quase na beira do rio Jaguaribe, “o maior rio seco do mundo”, como diz com certo ufanismo um morador do lugar. Mas, o que é incrível: em todo o percurso quase não vemos uma paisagem do sertão. Quando a rodomoça coloca a primeira fita de vídeo deparamo-nos com as paisagens urbanas da Quinta Avenida novaiorquina, os carros em chamas reluzem na tela do vídeo. Ignoramos, literalmente, o que se passa lá fora, como se estivéssemos flutuando no ar, mesmo trafegando colados no asfalto. Esquecemos que estamos saindo da cidade e transportamo-nos para os cenários de cidades de primeiro mundo, misturando-nos nas engraçadas trapalhadas de Mister Been.
As imagens consumidas pareciam, aos olhos dos viajantes, menos virtuais que as imagens do sertão, onde já estávamos, mas não víamos, nem sentíamos. O sertão com suas caatingas e seus personagens não aparecia diante de nossos olhos. O frio, naquele pequeno mundo aconchegante, embaralhava-se com as cenas luxuosas dos filmes americanos e nos fazia esquecer o pesadelo do sertão, a intrepidez do calor queimando a pele, o nomadismo tormentoso do sertanejo buscando o nada – como nos romances de Graciliano Ramos. A estrada só podia ser vista e apreciada com os filtros aplacadores dos vidros, como se não fizéssemos mais parte da paisagem.  
A cidade tinha ficado para trás. Mas ela teimava em continuar na memória de cada um de nós. Quando o ônibus penetrou no pobre município de Jucás, localizado no sul do Estado, com seus terrenos pedregosos, suas ondulações suaves das pequenas serras, estava na hora de parar e enfrentar a verdadeira paisagem híbrida do sertão. O rio Jaguaribe não era virtual, como as imagens coloridas das cidades americanas; o mundo do american way of life estava muito distante da paisagem que se descortinava diante de cada um de nós.
O mato seco esturricado, amarelado, é o combustível fácil e um perigo sempre constante. Basta apenas uma pequena ponta de cigarro para que, em questão de segundos, o fogo se espalhe pela área. Quando os viajantes saem da capsula de ar condicionado e abrem a porta do ônibus têm o impacto violento. A realidade em que estávamos imersos, sim, é que era virtual. O sertão parecia a dura realidade negada.
Chegamos sem ter percebido que estávamos diante das cabeceiras do maior rio seco do mundo. Para mim a sensação era de que ainda estava na Av. Pontes Vieira, esquina com uma rua da Igreja de Fátima, no meio daquela feira onde se vendem terços, imagens de Nossa Senhora.
A viagem não terá sido um delírio? Ou o delírio eram os fragmentos de lembranças que tínhamos deixado para trás? Aqueles homens e mulheres pedintes teriam realmente existido? Parece até que ao chegar na rodoviária, fomos lançados numa espécie de túnel. Ônibus-túneis, imagens-túneis, nave hermeticamente fechada e.... de repente, não mais que de repente, como diria o poeta, o sertão. Lembrei-me imediatamente dos filmes de Glauber Rocha e senti a terra em transe, o ônibus-dragão consumindo asfalto e nos jogando, congelados, no tórrido sertão, com seus santos guerreiros sertanejos. 
Charles Bronson ainda estava fresco na memória, com suas bravatas e destruição. Carros em chamas, bandidos chamuscados de bala, destruídos nas avenidas novaiorquinas, e, de repente, o sertão.
Imagens simultâneas embaralham-se, misturam realidade com o mundo virtual. O sertão, no entanto, estava ali diante de nós. Onde começa o chamado mundo rural e termina isso que sociologicamente chamamos de vida urbana?
O olhar de um cartógrafo ecologista não deixaria de estabelecer uma sinistra simetria entre os desastres ecológicos desse pobre município e a destruição das dunas, dos parques e os edifícios gigantescos construídos recentemente e que tiram progressivamente a ventilação de uma cidade cada vez mais impermeabilizada e sufocada.
Percorremos 400 quilômetros, congelados, olhando fixo para as imagens de vídeos americanos. O “rural” não parecia ter começado. O que se denomina campo parecia um pavio de pólvora, um fogo incandescente, pois o “homem  que fuma Malboro” joga suas pontas de cigarros dos ônibus e automóveis e provoca os seus pequenos infernos (como Charles Bronson) no meio dos latifúndios improdutivos cercados de arame farpado.
Estamos no ônibus acondicionado, como circulamos nos apartamentos e escritórios e carros em Fortaleza. O olhar do cartógrafo-ecologista é sensível para captar e sentir que Jucás e Fortaleza vivem o mesmo tempo, mesmo com todas as dissimetrias. Tempo da depredação e da destruição não tão criadora como se imagina. O mesmo invólucro metálico que nos protege da violência e do calor nos distancia da vida, seja quando estamos fechados em nossos carros na  Av. Pontes Vieira, seja quando estamos mergulhados nas poltronas de ônibus classe A que nos levam ao sertão.
A mesma lógica que preside a ação dos homens e que desencadeia ações como a destruição do Parque do Cocó, no coração da área metropolitana de Fortaleza, está presente na ação de grandes fazendeiros e roceiros de Jucás. São eles que botam fogo no mato e queimam o que ainda resta de floresta e de fauna.
A ecologia, nesses dois ecúmenos aparentemente tão distantes e desiguais, parece ser uma palavra desconhecida. Tanto na cidade que deixamos para trás, como no território rural, a natureza e o homem convivem em conflito. O progresso chega misturado com a pobreza, a degradação progressiva do meio ambiente.
Uma esmolinha pelo amor de Deus! O apelo suplicante do senhor na cadeira de roda, lá no ponto de partida, ainda ressoa em meus ouvidos. Esse mendigo-nômade-rural-urbano estará querendo nos dizer alguma coisa ? Em Jucás e outras cidades nordestinas talvez se encontre a resposta.
Nos depoimentos dos próprios personagens da cidade isso é visível. Um engenheiro agrônomo, parente do dono do principal hotel da cidade, não deixa de observar com certa nostalgia a sociedade local. Nas suas viagens no tempo busca o Eldorado Perdido. Um  Eldorado imaginário, onde o  algodão predominava como base de sustentação da economia local. Nostalgia dos tempos dos velhos coronéis, sonho interrompido, segundo ele, por um inseto miúdo e devastador: o bicudo.
O que fez com que a praga do bicudo se disseminasse não foi esse bicho, mas a matança indiscriminada dos predadores – faz o seu sintético diagnóstico. E continua : O homem da região vem matando todos os animais, indiscriminadamente e o equilíbrio do ecosistema se vinga porque a natureza não tem como se sustentar. (por um momento recordo-me do ar condicionado e de seus efeitos: o nosso bicudo moderno[4] ).
A viagem prossegue, só que não mais dentro do ônibus. As tripulias do Mister Been ficaram para trás nessa viagem. As ruas de Nova Yorque são as nossas miragens de modernidade mal experimentadas, uma espécie de tênue laço que nos unia a um imaginário desenvolvimentista que se desmantelou – pelo menos na sua concepção original – num mundo globalizado. Mas não desmanchou as ilusões de um paraíso sempre procurado, a eterna promessa do país do futuro (o do sonho de visitante alemão que morou por essas plagas).
Jucás e seus moradores vivem ainda esse imaginário, esse sonho de progresso sempre retardado. O ouro branco, como dizem seus moradores, marcou o circulo de prosperidade do município.  
Aqui circulava dinheiro, o comércio vendia. O fim da cultura do algodão foi a nossa ruína – diz um morador olhando para a antena parabólica.
O cartógrafo sociólogo percebe logo à primeira vista as marcas do apogeu imaginário e da ruína. Ao observar a arquitetura dos prédios, como onde funciona a Prefeitura, logo percebe que ele foi feito para depositar o ouro branco, mandado depois para os Estados Unidos e para a Inglaterra. Algo era tecido na costura sutil que unia Jucás aos grandes centros da modernidade mundial. Essa costura começava no plantio, nas formas como se estabeleciam as relações sociais, nos serviços e nos prédios.
Na verdade Jucás já era globalizada através do ouro branco e não sabia. Sobraram os prédios, como o da Prefeitura, onde em uma de suas dependências funciona a primeira faculdade do local, um pequeno campus avançado da Universidade Estadual do Ceará, com seus cursos chamados eufemisticamente de Licenciatura Breve.
Sim, porque em Jucás – como em Fortaleza – tudo parece breve. O ciclo do algodão foi breve, a queimada de suas matas, as cheias do rio Jaguaribe, também, são brevíssimas, assim como a circulação do dinheiro no comércio. A nossa presença, também, é breve, efêmera, como a própria vida em Jucás.
Não estamos fazendo nesse diário de campo, uma história econômica de Jucás. Não partilhamos com as explicações que tentam associar a decadência de Jucás ao malfadado bicudo. As mazelas têm muito mais a ver com as novas prioridades econômicas que o Estado estabeleceu para a região.
Na verdade, não só para Jucás, mas  o conjunto dos municípios cearenses. Não é de estranhar que a modernização das estradas, a entrada, portanto, de novas mercadorias, caminha pari passo com a modernização das estradas, a entrada de mercadorias industrializadas produzidas nas zonas industrializadas. Foi isso que esmagou a economia local, que provou o nomadismo forçado daqueles homens e mulheres que encontramos nos semáforos da av. Pontes Vieira, vendendo bugingangas na imponente rodoviária, seja a dos ricos ou a dos pobres, como costumam batizar seus próprios moradores a estação rodoviária da cidade.

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O cartógrafo sociólogo percebe logo à primeira vista as marcas do apogeu imaginário e da ruína. Ao observar a arquitetura dos prédios, como onde funciona a Prefeitura, logo percebe que ele foi feito para depositar o ouro branco, mandado depois para os Estados Unidos e para a Inglaterra. Algo era tecido na costura sutil que unia Jucás aos grandes centros da modernidade mundial."

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As mazelas têm a ver, também, com as formas de condução do poder, sempre atrelado ao poder central. A economia e a política se entrelaçam nos seus lances trágicos e cômicos, com as famílias dos notáveis se revezando no poder, fazendo e desfazendo os mandos, morrendo e renascendo das velhas ( e novas ) oligarquias.
Com o olhar de um cartógrafo em trânsito, tento ver sob outro ângulo esse povoado pequeno nas margens do rio Jaguaribe.
Esse é o tão falado rio Jaguaribe? – me pergunto, perplexo ao passar por uma ponte de concreto. Vejo poças de água, mulheres lavando roupas no meio daquela precariedade hídrica, quase na lama. Custo a acreditar que em certos períodos (raros) de cheia aquele rio invade a cidade, derruba as casas, causa pânico aos moradores. Um rio da morte e da vida.
Pergunto-me, também, como é que esses moradores foram construir suas casas exatamente naquele local.
Mergulho um pouco na história daquele município. A memória de seus habitantes se encontra, em parte, no que está documentado oficialmente – ou não. Mas as versões são cheias de contradições, hiatos, lacunas, negações e exclusões, versões da classe que detém secularmente o poder econômico, político e cultural.
                
            O RIO JAGUARIBE E A COLONIZAÇÃO  DE JUCÁS


.Jucás tem uma história muito semelhante a de muitos municípios do Ceará e do Nordeste brasileiro. Sua fundação, ocorrida em 1822, através de uma Resolução Imperial, é marcada, desde o início, por três elementos fundamentais, que, até hoje, imprimem características sócio-culturais singulares à história do Município: o rio Jaguaribe, com suas três léguas de comprimento, nascendo a partir dos Bastiões ( Barra) para cima, em direção a Saboeiro. Esse rio foi responsável pela colonização da região, trazendo grandes contingentes de baianos, pernambucanos e paraibanos, que se embrenhavam com seus currais de gado mata à dentro, fundando os pequenos burgos que futuramente vão se transformar na cidade de Jucás.
O rio Jaguaribe marcou (a ainda marca) a vida dos moradores da região, mesmo com todas as pequenas catástrofes, quando transborda, matando o gado e destruindo plantações. Quando seca, como agora, torna a vida das pessoas um verdadeiro martírio. Cheia e seca, tempos de mata verde e água abundante, combina-se com os ciclos de morte e carência, devastando vida e natureza.
Essa característica geoeconômica ganha maior nitidez nas manifestações culturais, nas lendas contadas desde muitos anos pelos moradores da região. A mais difundida é sobre o rio Jaguaribe. Segundo eles, neste rio existe um bicho que mata as pessoas. Esse bicho se metamorfoseia freqüentemente e ganha forma de cobra, cabeça de cachorro, polvo, sereia e as pessoas são atacadas e mortas por eles, normalmente em tempo de estiagem. Portanto, um rio bom e mal, que dá e retira a vida. Não estará expresso nesse mito a própria realidade local?
Observe-se que é no tempo da estiagem que esses seres matam seus moradores. Matam de fome, de sede, como ocorre, de fato, na realidade.
A água é vital para a vida dos moradores. É por isso que ela é homenageada com uma festa, uma espécie de celebração. Rio-água-chuva, bondade e maldade, o que tira e dá a vida.
Um poeta popular que mora na cidade, chamada Ermano Cavalcanti, sem nenhuma instrução, verseja sobre a importância da água e expressa um sentimento coletivo no seu poema Formação da Chuva. Diz ele:

A chuva é muito importante

Para todos os seres viventes
Germina toda semente
Deixa a terra fecundante
É alegria do sertão
Quando a chuva cai no chão
Molhando serras baixios
A gente vê as belezas
Riachos de correnteza
Deságua dentro dos rios

Quando a chuva cai na terra
Se planta feijão
Arroz, fava, algodão
Planta-se no baixo e na serra

Agricultores nas rocas

Trabalhando nas mãos grossas
Enfrentando a agricultura
Dando viva ao Pai Eterno
Um ano bom de inverno
É excelente de fartura

A chuva para o fazendeiro
Faz pasto para a criação
Faz festa de apartação
Convida logo vaqueiros
E usufruindo a festa
Quebrando chapéu na testa
Veste perneira e gibão
E grita pra sertanejo:
“tem leite coalhado e queijo
É a fartura do sertão”

A chuva só traz fartura
Bonito voador da mata
Desce água na cascata
E aligumada segura
Em junho tem fogueira
E sertaneja faceira
fazendo adivinhação
Num forró de latada
Dando viva São João.


AS MARCAS DO GADO



Outro elemento importante na formação histórica e cultural de Jucás é a cultura do gado. Sua história, por exemplo, confunde-se com a história de uma grande fazenda de gado chamada São Mateus, como atesta o trabalho do Monsenhor Couto, que pesquisou os livros de batizados e casamentos da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo.
Essa fazenda é um desmembramento da fazenda de um latifundiário chamado Cosme Ferreira da Silva, que possuía uma fazenda lá pelos idos de 1708, próximo a um olho d água. Cosme Ferreira tem uma história semelhante a esses descendentes de portugueses que se embrenharam na mata em busca de riqueza, em uma época de povoamento escasso. Aos 18 anos, como nos conta o Monsenhor Couto, migrou para a região, constituiu família na primeira década de 1700 e faleceu com cerca de 80 anos de idade.

INDIOS, FAZENDEIROS E MISSIONÁRIOS

Juntamente com a fazenda, a luta pela conquista de corações e mentes foi feita pelo trabalho de evangelização da Igreja Católica, construindo templos e catequizando os silvícolas das tribos Tapuia, Criús e Quexelôs, que habitavam as margens do rio Jaguaribe e suas lagoas (Telha) e aqueles rios nos ribeiros dos rios dos Bastiões e Cariús.
Missionários e aventureiros, baianos, paraibanos e pernambucanos praticamente dizimaram a cultura indígena, deixando somente a marca hereditária nos corpos de seus descendentes.
Jucá possuía uma população com características antropomórficas tipicamente indígena, mesclada com portugueses, algumas vezes holandesas e africanas, pois não podemos esquecer que a escravidão teve um papel importante em uma região não muito distante do principal centro monocultor da época – Pernambuco.
As informações são escassas, mas sabe-se que, quando a escravidão teve fim no município de Jucás, em 27 de dezembro de 1833, uma série de acontecimentos marcou a vida cultural da região. Quando os sinos da Matriz de Nossa Senhora do Carmo, da antiga Vila de São Mateus repicaram, convidando os moradores à celebrar o fim da longa opressão escrava, o negro já deixava marcas indeléveis na formação cultural local. A liberdade foi somente um ato formal, pois muitos desses negros, apesar de formalmente livres, continuavam a depender dos fazendeiros e poucos foram os que se aventuraram e tiveram condições de fazer o seu roçado, em uma região marcada pelo latifúndio como essa. A liberdade formal do escravo em Jucás não modificou em quase nada a estrutura econômica da região, pois eles eram livres numa ordem puramente escravocrata, como em inúmeras cidades brasileiras.
O que sobrou da cultura escrava e indígena tão presente nos traços físicos dos moradores?
A memória desse passado em Jucás, assim como em outros municípios, é simplesmente negada, pois não aparece nos registros oficiais. Os trabalhos publicados referem-se a histórias de padres, políticos e fazendeiros, a classe dominante da região. São extremamente escassos os registros históricos sobre a cultura negra e indígena.
A Universidade tem aí uma tarefa importante: resgatar a história desses povos, incluí-los nos currículos dos cursos, desvendar a história dos oprimidos. Pesquisa e divulgação, eis uma das tarefas da Universidade, juntamente com toda a rede de ensino da região.

LATIFÚNDIO E MISÉRIA

Finalmente, a marca cultural forte na história de Jucás é o latifúndio. Desde seu povoamento e fundação, em 1823, o município é marcado pela existência de grandes propriedades de terra. Isso desde os tempos da Colônia, como se sabe.
Em 1682, o Governador Geral do Brasil, Campos de Roque da Costa Barreto já concedia 105 léguas de terra de cumprimento por ½ de cada lado do rio Jaguaribe a 41 sesmeiros para a expansão dos chamados Currais de Gado. Eram enormes extensões de terra a perder de vista, tanto que muitos deles nem chegavam a ocupá-las, fazendo com que as terras caíssem em comisso, isto é, não povoavam e eram passadas para outros.
É o latifundiário Cosme Ferreira da Silva, sesmeiro de um lote no rio Jaguaribe, que vai marcar a fundação do município, pois recebeu uma vasta extensão de terra a partir da foz do rio Bastiões (Barra) para cima, em direção a Saboeiro, onde o seu irmão, Tenente Simão Ferreira da Silva recebeu, também, em 1707 uma extensa sesmaria do Capitão-mor Gabriel da Silva Lago.
Eis aí a história do latifúndio, inalterado em sua substância até nesse final de século, mesmo com a modernidade das estradas, com seus ônibus com ar condicionado e televisores, que hoje fazem parte do cotidiano dos moradores de Jucás.
 O sertão não virou mar, mas misturou-se violentamente com os elementos chamados modernos.
Chama a atenção em Jucás, por exemplo, as enormes fazendas cercadas, muitas delas totalmente improdutivas, convivendo a pouco  metros depois com uma pequena casa de antena parabólica, onde não se assiste nem mesmo aos programas transmitidos pelas redes transmissoras do Estado.
Os moradores de Jucás, na verdade, têm contato direto com as imagens e informações vindas de São Paulo e outros Estados da região sudeste.
 A avenida Paulista, Atlântica, Copacabana, mesmo a cidade de Nova York, não é mais um mundo distante na cultura local. “O Brasil Profundo do Guimarães Rosa, com seus jagunços e leis, pré escritas com seu apreço pelos bovinos, encontra-se consanguineamente tensionado com a modernidade de Brasília. O tempo da onça não está tão longe assim – como dizia Olgária Matos em um artigo em um jornal paulista.


O RETORNO PARA O PONTO DE PARTIDA

Quando entro novamente no mesmo ônibus que nos trouxe de volta procuro sentir as ressonâncias de uma experiência como essa. Uma sensação de ter mergulhado nesse fundão do Brasil. Concordo com a conclusão de Olgária,  apoiada em Guimarães Rosa quando diz que “o tempo da onça não está tão longe assim”. Talvez, lá no fundo, estejamos divididos entre nossas primitivas onças e nossos bicudos modernos iconoclastas.
Um devir antropólogo, um devir etnólogo, um devir sociólogo, um devir poeta – como aquele senhor que compôs o poema sobre o rio Jaguaribe – são necessários para percebermos essas infinitas cidades invisíveis que dormitam em cada um de nós, trazendo à tona as dimensões arcaicas, esse jeito de conhecer com o corpo, as sensações, aliadas à razão não positivista.
Penso, em particular, no ponto em que parti e revejo as imagens dos personagens com que cruzei na rodoviária, aquelas crianças, homens e mulheres maltrapilhos e maltratados pedindo esmolas, as vendas de santos na Av. Pontes Vieira.
À proporção que o ônibus retorna, sinto que as imagens dos vídeos americanos me parecem velhas, chatas, repetitivas, como as guloseimas do Mac Donald. A densidade humana do vivido não parece estar na película fina de um cassete comercial, nem no sorriso programado da rodomoça.
O calor do sertão me estonteou, mas também me lançou em outro mundo, glauberiano. Reviso, assim, as minhas onças, ponho em dúvida essa modernidade congelada que nos oferecem, sem, no entanto, nostalgia de um passado idílico imaginário, que, na verdade, nunca existiu. A vida rural é entediante, como a sucessão de velhos oligarcas que ressurgiram como fantasmas em minha frente durante a semana.
O ônibus perfumado é novamente servido pela cortês rodomoça que logo fecha as janelas. Não vemos mais o pau-de-arara que trafega ao lado, a mata esturricada de fogo, a miséria na beira da estrada. A moça que viaja ao meu lado carrega uma pasta. Em cima de seu colo um jornal de Fortaleza noticiando o brutal assassinato de um índio na rodoviária de Brasília por um bando de filhos de papai ricos. Espanto-me com a notícia e recordo-me novamente da frase de Olgária no artigo aqui citado : o tempo da onça não está tão longe de Brasília - no centro do poder.
Depois de uma rápida conversa, sou informado que a moça ao meu lado está vindo de Iguatu, onde foi ministrar um curso sobre Qualidade Total, na área de administração de empresas.
O índio morto em plena rodoviária em Brasília, a capital do país, me levou a recordar o trágico destino dos Tapuias, Criús e Quexelôs que habitavam às margens do rio Jaguaribe. A ruína do algodão, o gado, as maldades do rio, o bicho que mata as pessoas se metamorfoseando em forma de cachorro, polvo, sereia e atacando homens e mulheres. Vida e morte.
Assim, Jucás ia ficando para trás nos meus pensamentos. Vislumbrava na memória a cidadezinha de 21.104 habitantes, com seus rios secos e suas chamas.
Nem percebi que estávamos a 246,96 metros acima do nível do mar. Descíamos para o mar, para a costa, onde tudo começou, para a desgraça dos índios. Quatro horas depois, novamente, estávamos em companhia de Charles Bronson e Mister Been, na mesma Av. Pontes Vieira, observando os mesmos personagens deixados no inicio da viagem.

DOIS TEMPOS E AS REFLEXÕES DO NÔMADE
SOLITÁRIO


Voltar do sertão e perambular pelas ruas de Fortaleza é uma experiência inenarrável. O contato com as professoras, o desabamento do prédio onde funcionava uma das salas de aula da nova faculdade,[5] as lendas, o fogo na mata, a seca, as imagens estavam ainda muito presentes. A minha sensação de desterritorializado mobilizou emoções e uma nítida percepção de que não conhecemos o nosso país.
Ando pela cidade ainda com essas imagens, vagueando pela beira-mar, uma onça distante no passado. Velhos e imponentes edifícios, os empreendimentos imobiliários, residências antigas se desmanchando.
 Sinto que há um sertão nostálgico dentro de cada habitante da cidade. Uma voz onipresente parecia dizer : Esqueça Jucás, esqueça o sertão ! Mas o sertão ainda está ali presente, convivendo com os signos modernos.
 Aliás, como nos mostra Martins “a modernidade enquanto moda é também a permanência do transitório e da incerteza, a angústia cotidiana da incerteza face a um progresso linear e supostamente infinito (...) A modernidade não está apenas nem principalmente na coleção de signos do moderno que atravessam de diferentes modos a vida de todos nós. Modernidade é a realidade social e cultural produzida pela consciência da transitoriedade do novo e do atual”.
Eis ai um mote ! Nossa modernidade é feita somente de signos. Sinto isso ao entrar no Shopping Center Iguatemi, esse templo de consumo cearense da modernidade, onde o sertanejo vai estontear-se com a sedução das mercadorias.
Sento em espaço amplo onde se servem pizzas e outras refeições. Acompanho a conversa de uma família simples, que  parecia estar temporariamente em Fortaleza e residia no interior.
Um senhor grisalho, maltratado pelo tempo, enchia seu prato, onde mal cabiam os pedaços de frango, carne, arroz, macarrão e tudo mais. Naquele ambiente acondicionado, o senhor e a família extasiavam-se com a diversidade de pessoas, estonteavam-se com as luzes, as seduções daquele ambiente fantástico que a modernidade oferecia. Mas percebi no seu olhar certa melancolia, a mesma melancolia das pessoas idosas que vi no sertão. Seria um pequeno comerciante ? Um aposentado ? Um agricultor com pequenas posses? Não poderia saber. O mundo da cidade é o mundo do anonimato. Se eu estivesse na sua pequena cidade certamente saberia sua origem social, sua profissão, seu nome, sua família. Naquele shopping isso era impossível. A Gemeinschaft , com seus valores comunitários, ainda estava entranhada em seu ser. Os signos que ele via diante de seus olhos enquanto deglutia seu farto almoço eram uma espécie de mundo distante daquele velho sertão deixado para trás, mas que ainda dormita em seu ser.
O tempo da onça não estava tão longe daqui. Não estava nos quatrocentos quilômetros distante do litoral, mas no coração e nas mentes dos cearenses sertanejos ainda nostálgicos do velho sertão. Os desmanchamentos desterritorizantes ainda não foram realizando, mesmo quando perambulam no meio de signos modernos.




[1] “Para os cartógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático – é um desenho que se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem (...) Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesses tempos que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundo que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos. Sendo a tarefa do cartógrafo dar línguas para os afetos que pedem passagem, dele se espera que esteja megulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessários.” É mais ou menos com esse espírito que voltei o meu olhar e a minha sensibilidade nesse trânsito desestabilizador da cidade para o sertão.Como um nômade, um estrangeiro. ( Ver ROLNICK, Suely. Cartografia Sentimental – Transformações Contemporâneas do Desejo.  Editora Estação do Livro, 1989, São Paulo-SP )
[2] Aqui começa a surgir um problema. Nós sociólogos na América Latina somos influenciados por um visão dualista, onde sempre aparece o tradicional em oposição ao moderno. Como lembra Martins, “essa interpretação de fundo positivista reinstala o escalonamento do processo histórico, relegando ao passado e ao residual aquilo que supostamente não faria parte do tempo da modernidade, como o tradicionalismo do pobres migrados do campo para a cidade, a cultura popular e a própria pobreza. Seriam manifestações anômalas e vencidas de uma sociabilidade extinta pela crescente e inevitável difusão da modernidade que decorreria do desenvolvimento econômico e da globalização”. Essa visão, ainda segundo Martins, “passa pelo reconhecimento de uma anomalia e inconclusividade, embora se tenha tornado entre nós quase um cacoete de pais subdesenvolvido na era da globalização: mais se fala de modernidade do que ela efetivamente é” Não vou, neste espaço aprofundar a discussão, mas é necessário aprofundar as questões lançadas por Martins. A América em nós,  para usar a expressão de Rolnick na obra citada anteriormente torna as nossas lentas opacas, pois somos filhos desse dualismo na maneira de olhar os mapas que vemos diante de nós. ( Ver MARTINS, José de Souza.  A sociabilidade do Homem Simples. Editora Hucitec, São Paulo, 2000, páginas 17 e 18. )
[3] Publiquei, em 1994 um pequeno ensaio denominado A Rua, os Meninos e a Cidadania Ultrajada, onde analiso o significado da rua para esses meninos e meninas. Dizia na época : “Tenho me interrogado sobre o significado da rua para esses meninos e menina e vejo que a geografia da cidade ( ou bairro ) não tem o mesmo significado para essas crianças. A cartografia por onde se movimentam  são diferentes das nossas. São “territórios” móveis de construção de subjetividade . A praça, a rua, a rodoviária, etc. são espaços de conquista diária. Espaços muitas vezes de disputa das turmas que lavam carros, ou cuidam dos carros do senhor ou da senhora que entram nas lojas, restaurantes e bancos. É o espaço da caça do troco, onde, quotidianamente, é tecida uma teia de relações sociais que vão da delinqüência ao chamado Pai de Rua. Mas a rua também é o espaço do perigo, onde o mais ousado, o mais esperto vence. Mas, paradoxalmente, a rua pode ser o espaço da liberdade para aqueles que vivem levando porrada dos pais, do padrasto ( e sabemos pelos números que a violência doméstica é assustadora nesse país. Liberdade para cicular e tomar banho no chafariz. Aqui predominam territórios variados.” ( Este artigo foi publicado numa produção independente, chamada A Sociologia na Corda Bamba,  CARVALHO, Benedito José, 1996, Fortaleza, Ceará ).  
[4] Na paisagem de Fortaleza a praga do bicudo tem outro nome. O cartógrafo ecologista, ao percorrer a cidade, ouve ambientalistas e descobre, por exemplo, que cerca de 30 lagoas foram aterradas, deixando a cidade sem drenagem; descobre também que a multiplicação desses mesmos veículos modernos que nos levaram à Jucás sem que sentíssemos, acabou transformando a vida urbana em um verdadeiro inferno, multiplicando-se os viadutos, pontes, o asfaltamento indiscriminado. A cidade pensada em função de uma minoria, como no campo, pensada em cima da concentração da terra, do latifúndio, entrecortada por rodovias faraônicas que nos fazem sentir no primeiro mundo. O “bicudo urbano” destrói não somente o alvo algodão, mas também as alvas e belas dunas, o que resta de matas e parques. A praga aqui se chama a motorização, que beneficia uma pequena camada social. Vide a construção da av. São Sebastião, que aterrou o Cocó e o asfaltamento da via à margem do rio Cocó, que dá acesso a Washington Soares e ao Iguatemi, para beneficiar o carro e privilegiar o comércio, optou-se pelo asfalto quando a pedra tosca teria uma relação de composição com o Parque e funcionaria como redutor da velocidade.
[5] No mesmo prédio onde funciona a Prefeitura, antigo depósito de algodão nos tempos de grande produtividade, foi reservada uma parte para o funcionamento de algumas salas de aula. Essa parte do prédio foi reformado. Na véspera, quase todo o teto desabou, colocando em risco a vida dos alunos e do professor. A tesoura, que sustentava o peso não foi devidamente reformada e não suportou as vigas pesadas.

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