terça-feira, 7 de agosto de 2012

A SOBREVIVÊNCIA DO ATRASO

                                                           Benedito Carvalho Filho

Quando o jornalista Palmério Dória publicou o seu bombástico livro “Honoráveis Bandidos: Um Retrato do Brasil”, editado pela Geração Editorial e um dos mais vendidos no país, o leitor pode perceber nas  207 páginas um retrato que os coronéis do sertão denegam quando circulam pelos salões da modernidade (ou mudernidade). O título inspirado em Marx é muito sugestivo e, para quem leu, não deixa de lembrar a obra do grande Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder”.
O retrato do nosso Dorian Gray tupiniquim  incomodou uma parcela da sociedade maranhense, que – para usar uma expressão Paulo-Freiniana no “Pedagogia do Oprimido” – introjetou a imagem do opressor e não sabe viver sem o babalorixá.
Na época, ao resenhar o livro, me perguntei: Sarney, Antônio Carlos Magalhães e tantos outros coronéis do sertão serão tipos ideais em extinção nesse confuso processo de modernização conservadora brasileira? Estaremos condenados por muitos séculos às práticas adotados por esses chefes?
O que chama a atenção nesse país é a longa sobrevivência desses chefes locais. Eles  transitaram da república de 1946 para o regime militar de 1964 e dele conseguiram sobreviver com a redemocratização de 1985, tão ou mais poderosos do que antes. Sarney chegou ao posto máximo do pais, a presidência da república. Antônio Carlos parou num ministério. ACM teve que renunciar à presidência do Senado num episódio menor das suas muitas e espantosas malvadezas, mas, novamente, teve fôlego para retornar ao posto, em cujo exercício morreu. Os maus feitos de Sarney, na mesma função, foram superiores ao do exemplar baiano e sua exposição muito mais extensa, mas ele não foi cassado e nem precisou renunciar. O drama ainda não terminou, mas Sarney parece ter escapado, salvo pela retórica de Lula e pelo soar da campainha para a próxima eleição.
Antônio Carlos, conseguindo superar a oposição interna, se tornou um rei na Bahia, mercê de sua política de mão dupla: com a parte de fora fustigava e reprimia os adversários, fazendo jus ao título de Toninho Malvadeza, incapaz de controlar a própria truculência, quando contrariado; com a parte de dentro cultivava a imagem de painho, a proteger e afagar personalidades públicas, como os artistas (velhos e novos baianos foram acusados por certa mídia de integrar a “máfia do dendê”, à sombra de ACM).
O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, editor do combativo Jornal Pessoal, ao comentar o livro de Palmério perguntava: Qual o mais importante dentre todos os coronéis da política brasileira?
Perguntaríamos: importante em que sentido? Nas suas grandes e pequenas maldades e corrupções? Na perspicácia do uso das forças tradicionais brasileiras, cujo um dos símbolos é a Casa Grande, tão bem pincelada pelo pernambucano Gilberto Freyre? Nas suas astúcias ao fazer alianças aproveitando-se de conjunturas favoráveis a eles, como as que se deram no regime militar por longos anos, cujo reflexo se faz sentir até hoje?
Se olharmos por esse ângulo todos foram (e ainda são) importantes. Mas o efeito mais nefasto do coronelismo na política brasileira pode ser medido pelo pragmatismo violento  adotado nas suas práticas políticas. Os honoráveis bandidos não poderiam existir sem a conivência e o assentimento da sociedade que lhe dá sustentação e legitimidade. Como observava Lúcio Flávio Pinto, que são autênticas satrapias porque a forma como agem, o poder de mando são os mesmos que se produzem e reproduzem no cotidiano da sociedade onde dominam.
O poder despótico, a violência e tantas outras mazelas continua vivíssimo na realidade brasileira, que se diz moderna nesta era chamada democrática, mas ainda mantém sua base de apoio neste mesmo poder de mando.
Para quem conhece o  Amazonas sabe que uma parcela grande da sociedade local idolatra  seus botos tuquxis. Eles são as expressões reais e simbólicas de um tipo de exercício de poder que só é possível existir numa sociedade autoritária e extremamente estratificada, como é a sociedade brasileira.  Mas é importante chamar a atenção que isso ocorre não somente nos fundões desse imenso país, com quer fazer crer certa parcela dos que fazem a opinião pública.  Não é preciso fazer uma leitura muito atenta do “Honoráveis Bandidos” para perceber as íntimas conexões que os coronéis arcaicos do Brasil-Profundo mantém com os autodenominados modernos da Avenida Paulista e dos Jardins e os grandes honoráveis bandidos da Zona Sul carioca, Rede Globo, empresas multinacionais, estatais, grandes latifundiários do sul e sudeste que também fazem parte dos esquemas. Eles tem muito a ver com a difusão das práticas anti-pedagógicas que passam a ser seguidas e imitadas pelos indivíduos na sociedade brasileira. É nessa aliança que o Brasil vem sendo governado ao longo de sua história.
É possível governar sem eles? Eis uma interrogação que tem nos custado muito caro, principalmente para aqueles que acreditaram (e acreditam) que para mudar é preciso que aconteça uma real ruptura política.  O Brasil só transformará quando forem embora desse mundo e transformados em cinzas nos mausoléus encomendados? Ou será que estamos condenados a viver com seus fantasmas, suas almas redivivas e encarnadas em novíssimos coronéis pret à porter?  Viveremos o eterno arcaísmo com fachada moderna de uma elite que manda e se diz moderna, mas que, na verdade, usufrui (e como!) das forças do atraso, ou o poder do atraso, como diz certo sociólogo?
A história dos países que conseguiram uma modernidade digna desse nome nos ensina uma lição histórica por demais esquecida neste nosso país: a modernidade, no seu sentido mais profundo, só conseguiu se tornar real e concreta quando as forças políticas organizadas da sociedade assumiram os seus papeis e se tornaram, de fato e de direito, sujeitos da sua própria história. Isso significa não só um desenvolvimento econômico (fábricas e hidrelétricas, cidades, pontes  e viadutos), mas a existência de cidadãos conscientes e não manietados por babalorixás e salvadores da pátria. Por isso, enquanto predominar esse gente no poder, dificilmente conseguiremos criar uma cultura política na qual os cidadãos assumam, de fato e de direito, os seus destinos.
A miséria, os bolsões de pobreza são os terrenos férteis onde vicejam os caciques e coronéis. Não é por menos que a terra de Sarney  e aqui no Pará e no Amazonas são exibidas os maiores índices de pobreza do Brasil. A modernidade sem educação, sem saúde e habitação, e condições de empregabilidade, é simples arremedo onde viceja esse tipo de prática. Eles sabem disso e, por isso, tem muito pouco interesse em que o povo tenha acesso ao saber. Enquanto não fizermos essa ruptura, assistiremos às mesmas práticas políticas que nos causam asco, mas que continuamos a alimentar.
Talvez essa simbiose entre o Brasil arcaico e a parte que se diz moderna seja funcional para a manutenção desse estado de coisa, como é possível perceber in loco quando se sai do sul-maravilha e se embrenha nos rincões chamados atrasados do país. Se mergulhássemos um pouco nos vários Maranhões desse imenso país, como o Nordeste, a Amazônia e parte invisível das grandes cidade modernas brasileiras, como no Rio e São Paulo, onde vive boa parte do povo, com suas favelas e invasões, veríamos o que torna possível a existência de tantos outros honoráveis bandidos, ícones do atraso desse país.

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