quinta-feira, 16 de agosto de 2012

PRAÇA DA SÉ," A CIDADANIA QUE NÃO SE CONSTITUÍ "SEGUNDO O OLHAR DE MARILENA CHAUI










Marilena de Sousa Chaui, filósofa, autoras de vários livros e, na época, Secretária de Cultura de São Paulo. É professora aposentada do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

 



Pode parecer estranho em um país como o Brasil que a gente tenha que se referir a uma praça como sendo um espaço público. No entanto, nesse país e nessa cidade, o espanto não seja a necessidade de chamar uma praça de espaço público; o espanto deve ser o de ter havido na cidade a apropriação privada do espaço público. Foi exatamente isso que mais me impressionou quando entramos no governo municipal, os inúmeros casos de apropriação privada do espaço público. Apropriação dos terrenos, das praças, calçadas. Um dos casos mais folclóricos e, ao mesmo tempo, mais significativo, foi o de um restaurante localizado na Av. 9 de julho - Au Liban - de um personagem conhecido no mundo político e que tinha pura e simplesmente se apropriado do serviço público. Ele construiu uma parte do restaurante sob o passeio público. O espantoso em uma cidade como São Paulo é justamente o fato das praças não serem espaços públicos. Penso, no entanto, que se nós procurarmos entender o problema da cidadania no país talvez fique claro porque a gente tenha que lembrar que a Praça da Sé é um espaço público, um espaço da cidadania.
A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária como formação social. Não só por suas origens escravistas, pois muitos países, dentre eles os Estados Unidos, tiveram uma origem escravista e, apesar disso, existe cidadania. Na idade média européia também existiu escravismo e lá a cidadania se constituiu. O que aconteceu no Brasil é que a estrutura escravista da sociedade patriarcal passa pelo interior da vida republicana e nós vamos ter sempre repúblicas oligarquias, e não res-pública.
É um patrimônio privado de determinados grupos e determinadas famílias. Isso faz com que as relações sociais no Brasil nunca se estabeleçam a partir de princípios antigos, que não são princípios revolucionários, mas princípios puros e simples do liberalismo, dentre os quais a noção de cidadania é uma delas. A cidadania pressupõe como condição que, do ponto de vista das relações sociais e políticas, os indivíduos sejam vistos como iguais, mesmo que sejam desiguais do ponto de vista econômico. Ora, isso nunca se estabeleceu no Brasil. Aqui todas as relações sociais se estabelecem entre um inferior e um superior, entre um mandante e um mandado. As relações são sempre de obediência, de submissão. São relações que aparecem evidentes na família, na escola, no trabalho, na rua.
Uma expressão muito comum entre nós é a famosa frase: você sabe com quem está falando? Quando você faz essa pergunta ao outro está dizendo para ele que você é superior a ele. Na expressão norte-americana, correspondente a nossa, por exemplo, o interlocutor diz: quem é que você pensa que é para fazer isso comigo.
A primeira frase não estabelece relações horizontais de simetria, de reconhecimento da igualdade, dos direitos e das diferenças. É por isso que no Brasil nunca surge a figura do cidadão. Isso transparece com muita clareza, por exemplo, na nossa dificuldade de considerar que os nossos governantes - seja no poder executivo, seja no poder legislativo - são nossos representantes e que estão lá para realizar a nossa vontade e não a deles. No Brasil a relação não se dá entre o representante e o representado. Basta você eleger alguém para que ele se sinta numa posição de poder, estabelecendo relações de favor e clientela. Você passa a ser cliente, pedinte de um favor. Isso torna impossível o surgimento do espaço público, pois esses espaços são apropriados privadamente.
Vou examinar alguns problemas com relação às dificuldades de instalação da cidadania na Praça da Sé, além dessa mais ampla a que me referi. Vou fazer uma recapitulação muito rápida de algumas memórias da Praça da Sé, que estão contidas no livro da Ecléa Bosi chamado Memória dos Velhos, (Editora Edusp, 1987) algumas delas memórias de meus pais e algumas minhas.


A Praça da Sé como lugar de passagem: a cidade na palma da mão

Os velhos que falam através do livro citado de Ecléa Bosi, que tinham setenta anos de 1982, se referiam à cidade de São Paulo dizendo que ela cabia na palma da mão. É verdade, eu a conhecia na palma de minhas mão e existiam dois referenciais importantes na vida urbana paulista : a Praça da Sé e o Teatro Municipal.
A cidade se desenhava ao redor da Praça da Sé e do Teatro. A Praça da Sé era esse lugar de passagem obrigatório para o contato com toda a cidade. Na memória de meu pai a Praça da Sé é o lugar onde estava o Cine Santa Helena, o mais belo e o maior dos cinemas-teatro do início do século. Ainda na memória de meu pai, a Praça da Sé é uma praça cultural. Não era apenas uma encruzilhada de caminhos, mas o ponto de referência da vida cultural da cidade.
As narrativas feitas pelo meu pai  da inauguração do Cinema-Teatro Santa Helena é de um verdadeiro deslumbramento. A praça acontecia a partir do cinema e do teatro, dos cafés e dos restaurantes que circundavam esse cine-teatro e que conferiam à Praça um ar europeu, quase parisiense. É a Praça da Sé com a Catedral sendo construída, com seus bondes e terminais. É uma Praça que se preparava para ter a Catedral e para se tornar uma referência e não mais de uma encruzilhada, nem de cultura, mas um ponto de referência religiosa. Depois dos anos 70 ela se tornou um referencial de resistência política. É interessante, nesse aspecto, que as escadarias do Teatro Municipal e as escadarias da Praça da Sé nunca puderem ser vistas dissociadas, como se o seu referencial fosse tecido sempre historicamente.
A Praça da Sé é o espelho e a síntese do desespero nacional. É o lugar onde uma tradição dessa cidade, que vem desde o século XVII e XVIII, está lá presente. É o local do estigmatizado trabalho informal, dos trabalhadores ambulantes, acrescido dos ciganos, dos sofredores de rua, dos encortiçados, dos meninos de rua, dos trabalhadores do comércio e do setor bancário, da Caixa Econômica, onde as pessoas vão empenhar muitas vezes todos os seus bens.
Pensar, portanto, a Praça da Sé como espaço público da cidadania significa, em primeiro lugar, reconhecer que os desesperados que ali estão são cidadãos. Talvez o primeiro ponto a considerar num trabalho com esses desesperados é poder reconhecê-los como cidadãos e não como excluídos de nosso mundo. Talvez seja reconhecer a Praça não mais como espaço do medo e da violência, como é sistematicamente veiculada pelos meios de comunicação, que não reconhecem a cidadania dos que a ocupam, porque eles são os desesperados desse país. Imediatamente identificam desespero, miséria, violência e criminalidade, afirmando que os ocupantes da Praça são os germes da realização do crime e da violência para os quais só há uma resposta: o extermínio das crianças, a expulsão das prostitutas, o afastamento dos ciganos e a morte econômica dos ambulantes.
Acho que é preciso pensar a Praça da Sé com tudo o que ela foi (daí a necessidade de recuperar a sua memória), mas, também, aquilo que ela está sendo nos nossos tempos. Ela não é o espaço da marginalidade, da violência, do crime que pede extermínio e limpeza, mas um espaço da construção da cidadania. Que ela seja, efetivamente, um espaço público republicano e de cidadãos livres.


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