terça-feira, 7 de agosto de 2012

DEPOIS DAS MURALHAS E GRADES



UM DEPOIMENTO NA TV UFAM  


                                                                          Benedito Carvalho Filho



É com alegria que estou aqui neste programa de televisão para comentar o meu livro chamado Depois das Muralhas e Grades (Imagens e representações dos condenados sob Liberdade Condicional e suas condições de sobrevivência), Editora ABC- Ceará, Fortaleza.


Agradeço a Universidade Federal do Amazonas, que através desse espaço tem criado as condições para que nós, professores, tenhamos oportunidade de tornar público as nossas pesquisas. Desejo que este espaço seja cada vez mais dinâmico, criando um elo mais estreito entre a Universidade e a sociedade, porque muitas vezes essa instituição é vista por quem não está dentro dela, como um lugar fechado, sem prestar conta do que faz.  .

                                      POR QUE RESOLVI ESCREVER ESSE LIVRO? 


O título do livro, chamado DEPOIS DAS MURALHAS E GRADES (Imagens e representações dos condenados sob livramento condicional e suas condições de sobrevivência social) não foi colocado por acaso, e, muitas vezes, fiquei em dúvida se esse título revelaria tudo que tentei analisar sobre os prisioneiros que se encontram sob regime de liberdade condicional.

Lembro-me da pergunta de divã feita por uma amiga quando publiquei esse livro: “Bené, tu te sentes na liberdade condicional?” Certamente a pergunta soou nos meus ouvidos com certo estranhamento. “O que ela estaria me perguntando?”, dizia para mim mesmo. Outros perguntavam, sem personalizar tanto: “como você decidiu estudar esse tema, os presos sob regime condicional.”
A resposta foi direta: “acho que todos nós, de uma maneira ou de outra, estamos sob liberdade condicional.” A resposta foi filosófica, tocava nas questões relacionadas à liberdade, valor tão caro e cheio de ambigüidade e valiosa para quem se encontra atrás das grades, privado de coisas fundamentais da vida.
Expliquei um pouco como cheguei a essa temática na introdução deste livro, onde narro rapidamente como, no início de minha juventude, fui um presidiário, nos tempos em que se confundia uma simples rebeldia juvenil com idéias comunistas. Isso lá pelos finais dos anos 60, em plena Guerra Fria, no início da ditadura militar, na provinciana Belém do Pará.
Os tempos eram difíceis. Novos personagens da classe média politizada começavam a experimentar a tortura física e psicológica que os elementos perigosos das classes populares conheciam desde os tempos coloniais e experimentam até hoje nos porões da repressão.
 Em São Paulo, onde passei uma parte considerável de minha vida, trabalhei não só com as populações excluídas que começavam a ocupar as chamadas periferias das cidades, mas envolvi-me com os movimentos de defesa dos direitos humanos, junto aos meninos da Praça da Sé, no centro da capital paulista, ligado à Prefeitura Municipal, no governo de Luiza Erundida, juntamente com Ongs, Pastoral do Menor e outras entidades, como a OAB-SP, que lutavam contra a violência policial na época.
O que presenciei ali me influenciou muito e ainda recordo vivamente os dramáticos momentos da repressão aos meninos de rua, aos mendigos e as prostitutas que circulavam no centro da cidade em um período em que a polícia começava a matar crianças que dormiam em marquises ou nas calçadas. Logo depois, presenciei a invasão do Carandiru, onde 111 homens foram assassinados, um acontecimento trágico que marcou a história do Brasil pelas atrocidades cometidas no interior daquele estabelecimento penal.
Aliás, os motivos que nos levam a nos preocupar sobre determinadas temáticas não se dão por acaso. Fazem parte de nossa vida. E, como são partes de nós, escrever sobre eles não é só um exercício intelectual, mas uma forma de simbolizar o insimbolizável, aquilo que quer permanecer oculto, no silêncio da repressão.
Escrever, recontar e relembrar os não ditos são formas de guardar na memória o acontecido, uma maneira de descobrir novas possibilidades de resistência e liberdade, que, muitas vezes, se encontra numa situação existencial onde o homem vive no limite. Por isso, como dizia Nietzsche, “viver é uma aventura arriscada”, principalmente para quem deseja viver intensamente.  
 Assim, fui levado a estudar esse segmento grande e pouco estudado do mundo prisional que transita por essas margens.  Um contingente de indivíduos rotulados e estigmatizados pela sociedade e pelo aparelho judiciário chamados pela terminologia jurídica de presos sob liberdade condicional. Ou seja, àqueles que estão numa margem cheia de ambigüidades existenciais, tornando-se uma espécie de equilibristas na corda bamba, onde o limite entre a liberdade e o aprisionamento é tão tênue que se torna  imperceptível.
 As prisões criam suas espécies e subespécies, os seus sistemas classificatórios. Esses presos que têm a liberdade vigiada, longe de serem meros números contabilizados nas estatísticas dos presídios, possuem as suas singularidades, as suas formas próprias de resistências, enfim, um mundo subjetivo que só pode ser captado se ouvirmos e compreendermos os diversos significados de seus discursos, as suas falas, reações e seus não ditos.
Ao ler a bibliografia sobre o mundo prisional pude verificar a existência de uma grande lacuna sobre a situação desses presos. Nas estatísticas oficiais ignoram-se exatamente quantos eles são, o que estão fazendo, as suas dificuldades de reinserção na sociedade e o destino que dão às suas vidas. Sabe-se apenas que, quando saem dos muros da prisão, encontram a discriminação, expressa, por exemplo, numa pichação que vi escrito num muro da cidade de São Paulo, onde dizia: Um homem sai de uma cadeia, mas a cadeia nunca sai de dentro do homem.
 Sabe-se que a grande maioria (estimada entre 70 a 80%, aproximadamente) reincide e retorna às prisões e ao mundo do crime. Uma legião constituída de homens e mulheres que denominei invisíveis, [1] vivendo seus dramas íntimos, suas pequenas e grandes tragédias, sofrendo discriminações de todas as espécies, pois, mesmo invisíveis e fugindo das malhas da justiça, são reconhecidos pela máquina repressiva quando cometem delitos.
O que acontece e o que aconteceu com eles, quais são as representações que fazem de suas condições, o que sonham e imaginam? É o que pretendi descrever e analisar nesse livro, e, assim, contribuir para dar uma visibilidade maior a quem se encontra nessa outra margem de invisibilidade.
Os estudos sobre o mundo criminal e as prisões, em especial, têm avançado muito nas últimas décadas e encontramos uma considerável literatura sobre o assunto, mas o segmento dos presos objeto desta pesquisa é pouco estudado como pude verificar ao circular por bibliotecas de alguns Estados brasileiros. 
Aliás, a pesquisa empírica na área penal só há pouco tempo começa a ser feita. Para muitos juristas e operadores jurídicos isso é coisa de sociólogos e antropólogos fora do mundo real, como afirmaram alguns deles, pois estão suficientemente envolvidos com as lides de seu ofício.
Aí há certo campo de disputa, além de revelar, certo pragmatismo ou uma aversão pela pesquisa, prática muito pouco incentivada nos centros de estudos jurídicos do país, onde a Sociologia Jurídica, em muitos casos, não passa de um ornamento inútil nos currículos dos cursos de Direito, segundo certos olhares.
Em linhas gerais, esse foi o percurso de como cheguei a esses personagens, que, na nossa linguagem acadêmica, chamamos de objeto de pesquisa. Espero que este livro, escrito dentro de meus limites e das condições postas, venha contribuir para abrir uma senda para os que pretendem compreender esse mundo onde sobrevivem, na expressão de Michel Foucault, esses homens obscuros que busquei escutar.  


 O QUE PRENTENDI COM ESSE LIVRO?                      

Como vocês vão perceber, analisei as representações das pessoas que vivem sob liberdade condicional, observando, principalmente o modo como interpretam e reinterpretam a sua situação depois que passaram pela experiência de prisão. Os sistemas de valores, normas, representações, símbolos, próprios de quem vive nessa situação. Ou, mais precisamente, procurei compreender as suas vivências, percepções, as dimensões subjetivas que marcam as suas vidas, suas possibilidades e impossibilidades, enfim suas ideologias, se compreendermos esse termo no sentido difundido correntemente para representar uma organização de opiniões, de atitudes e de valores, uma maneira de encarar o homem e a sociedade. [2]
Parto do pressuposto que essas representações revelam condições estruturais, sistemas de valores, normas e símbolos e têm o poder de transmitir as representações de grupos determinados em condições históricas, sócioeconômica e culturais específicas. [3]
Trabalhei com análise de discurso e considerei suas falas como práticas discursivas moldadas dentro de um determinado contexto muito específico, onde, ao mesmo tempo, se enquadram e se adaptam à regulamentação social dada e às estruturas que lhe dão significado.
O mundo dos que se encontram na situação ambígua da liberdade condicional é aqui compreendido como um espaço social onde se produz saberes diversificados e partilhados, nem sempre muito fáceis de perceber. Falas que expressam os valores sociais, comportamentos e todas as experiências elaboradas em lugares diferenciados pelas hierarquias e, portanto, cruzadas de lutas, reais e simbólicas, que constroem saberes que nunca são inocentes na cumplicidade. 
 Este universo da pesquisa é constituído de homens e mulheres, que são vistos pelo imaginário social como perigosos e sob constantes suspeitas. Por isso, esses atores, por serem ex-detentos, escondem suas identidades, pois sabem que isso pode significar, dependendo da situação, a imediata rejeição social. Tornam-se invisíveis na vida pública, vivendo na ambigüidade a sua vida privada, quando não, retornam ao crime, lugar onde são reconhecidos e saem do anonimato. 
Poderíamos dizer que essa condição de invisibilidade se em duplo sentido. São invisíveis para o Estado, que, na maioria das vezes, desconhece o destino dessas pessoas, não sabendo para onde foram, o que fazem, etc.[4] e invisíveis para a sociedade, opção também reforçada por esses personagens que preferem não ser identificados com o rótulo gerador de estigmas e discriminações, como serem reconhecidos como um ex-detentos, categoria que significa  alguém que puxou cadeia, que cometeu algum crime, logo é alguém que não se pode confiar, pois é um elemento perigoso que passou por um presídio ou uma cadeia, mesmo que tenha sido temporariamente.
Não é somente por essas marcas simbólicas que é identificado o ex-detento.  Quando sai da prisão e passa a viver na condicional, recebe uma nova identidade jurídica e consegue, com muita dificuldade, ser aceito em um emprego. Muitos direitos comuns aos cidadãos são limitados, como dirigir veículos, prática veemente proibida, sob o risco de perder liberdade condicional.  
Nos presídios e tribunais os termos são freqüentes e familiares, fazendo parte daquele universo. São os que estão fora, mas, a qualquer momento, desde que não sigam as regras estipuladas pela lei, podem ter os seus direitos suspensos, se não respeitarem o que ela prescreve.
Estar fora é uma condição provisória, mas que distingue de quem está dentro. Fora é, segundo a expressão de um entrevistado, o mundão, o mundo das relações sociais ampliadas, a sociedade com suas infinitas possibilidades. O dentro é outro mundo, circunscrito, onde há ausência de liberdade, um mundo fechado.
Essas duas categorias tão presentes na fala das pessoas às vezes se invertem. O fora, em muitas ocasiões, se transforma num terror, pois se torna o mundo da discriminação, do estigma, onde o individuo sente que está num mundo que se tornou estranho para ele, pois ali ele perdeu as suas raízes, os seus laços, enquanto no presídio ele era reconhecido pelos colegas, fazendo parte da chamada cultura prisional.
Não é por acaso que, na maioria das vezes, as pessoas que saem da prisão e que não conseguem uma ressocialização desejada, acabam procurando os ex-companheiros de presídio, voltando ao mundo da criminalidade. 
Eles assinam o ponto todos os dias, toda semana ou todos os meses no fórum, tendo que prestar conta de seus atos, pelos quais devem permanecer sempre atentos para que não fujam das regras impostas pela justiça. Ou seja, estão fora e dentro, ao mesmo tempo, pois o cidadão na condicional possui a liberdade dentro de limites muito estreitos.
É do conhecimento público que os que vivem nessa situação encontram-se vulneráveis, tanto do ponto de vida psicológico, como pela a extrema carência material, assim como o medo de cometer alguma infração e ser respeitados, fazendo com que se comportem quase como pedintes, fazendo grandes esforços para serem aceitos socialmente. Por causa dessa situação de desamparo, eles voltam a delinqüir e cometer novos delitos, engrossando a lista dos reincidentes. [5]
O grande número de indivíduos que retornam ao crime - um fenômeno atribuído às condições das penitenciárias brasileiras, como nós mostra o livro de Clarissa Nunes Mata, Flávio de Sá Neto, Marcos Costa e Marcos Luiz Bretas nos dois volumes que a Editora Rocco acaba de lançar, chamado História das prisões no Brasil - não foi ainda suficientemente estudado em profundidade pela sociologia criminal em todos os seus aspectos. Mas sabe-se que esse fenômeno tem íntima relação com as mazelas do sistema judiciário brasileiro e isso não é segredo, pois a situação das prisões brasileiras é freqüentemente mostrada na mídia, que mostra, com regularidade as inúmeras e violenta rebeliões que acontecem pelo país afora.
Quem passou pela prisão e experimentou o que é viver nela cotidianamente, mesmo que seja por poucos meses, como os personagens que entrevistei nesta pesquisa, sabe como são cruéis e desumanas as condições de cumprimento da pena no Brasil. A violência entre os presos é comum e os espancamentos por guardas, rotineiros. As assistências médicas e jurídicas são deficientes, pois o Estado não tem sido capaz nem ao mesmo de dar trabalho ao preso. Ao contrário do que se imagina, o preso busca trabalho, já que a cada três dias trabalhados por eles podem descontar um dia da pena. [6]
 Ao ler os relatórios de diversas fontes e ouvir os depoimentos de juristas ligados ao direito penal, pude perceber como funciona o sistema penitenciário brasileiro e qual é a visão desse segmento de indivíduos vivendo sob regime de liberdade condicional. A grande maioria retorna à criminalidade e isso constitui um obstáculo grave para o sistema, aumentando a população dos presídios e agravando sobremaneira os problemas ali existentes.
Durante o período que estão no regime fechado não são preparados para, quando retornarem à vida social, enfrentarem sua nova realidade. Aliás, as experiências de trabalho prisional no Brasil são, via de regra, circunscritas às funções necessárias a própria manutenção dos estabelecimentos, notadamente nas áreas de limpeza, conservação e serviços de cozinha. Fora dessas possibilidades, podem-se encontrar algumas poucas alternativas de trabalhos manuais, como costura de bolas ou confecção de algumas redes que, tanto quanto os serviços de manutenção, não permitem profissionalização dos detentos.
Assim, os egressos do sistema penitenciário, mesmo aqueles que tiveram a chance de trabalhar durante as suas sentenças, permanecem com a mesma ausência de formação profissional. Na maior parte das vezes, o tempo passado na prisão não permite sequer que deficiências básicas, como o analfabetismo, sejam superadas, o que se constitui um grande obstáculo para conseguir um emprego, principalmente em uma sociedade que exige requisitos mínimos em termos de escolaridade para a inserção no mercado de trabalho altamente competitivo.  
De acordo com informações do Ministério da Justiça, o Brasil tem, hoje (2006), aproximadamente, 222 mil presos. O Estado de São Paulo contribui com 44% desse total, junto com o Rio de Janeiro, somam 55% dos presos no país. Seguem-se Minas Gerais e Rio Grande do Sul, ficando os outros Estados brasileiros com 30% dos presos. [7]
O déficit de vagas, no período de 1995-2001 era de 63.672, ainda segundo o Ministério da Justiça. Ora, como observa uma estudiosa do sistema prisional, com os índices de encarceramento crescendo ano a ano, é evidente que a construção de vagas precisaria ocorrer num ritmo mais acelerado para fazer frente à demanda. [8]  
Os números indicam, ainda, que alguns Estados são muito mais encarceradores que outros. Entre os Estados brasileiros, São Paulo ocupa o primeiro lugar, com 276,3 presos por cem mil habitantes, seguido do Distrito Federal (269,2), Rio de Janeiro (147,2) e o Rio Grande do Sul (146,6). [9]
Do total de presos existentes no Brasil, 32% são provisórios e 68% condenados. Dos presos condenados, milhares encontram-se cumprindo penas em delegacias ou cadeias públicas, em absoluto desrespeito à legislação. Só no Estado de São Paulo, 12 mil condenados estão fora do sistema penitenciário. De maneira geral, 70% dos presos brasileiros encontram-se nos sistemas penitenciários estaduais e 30% encontram-se fora deles, sendo difícil determinar com exatidão quantos exatamente dentre eles estão condenados. [10] 
No Estado do Ceará, na época em que levantei dados junto à Coordenadoria do Sistema Penal do Estado (2002), fui informado da existência de 7.317 presos nos regimes fechados, semi-abertos e aberto. Um ano depois (dezembro de 2003) esse número aumentou para 9.246 presos, 6.698 em regime fechado e 2.548 em regime aberto. Desse total, 3.473 estavam distribuídos nas 150 cadeias do interior.
O maior presídio do Estado, o Instituto Penal Paulo Sarasate, abrigava em 2002 em torno de 1.200 detentos, mas a sua capacidade era para 900 internos, caracterizando superlotação e constituindo palco propício capaz de criar agudos conflitos, pois nessa penitenciária existe uma precária assistência jurídica, um deficiente atendimento médico e uma descaracterização do serviço social e psicológico, situação que observei quando visitei as suas instalações.
Na mesma situação, encontra-se a cadeia pública de Caucaia, que funciona como presídio. Ali encontram-se recolhidos presos para o cumprimento das condenações com lotação superior a sua capacidade.
Os dados são imprecisos. Ao pesquisar, fui informado pelo técnico que semanalmente atualiza os números referentes à entrada e saída dos presos que é impossível termos dados exatos, devido as freqüentes mudanças nos números. (depoimento de um técnico, 2003).
É muito difícil, no entanto, confiar nos dados fornecidos pelos órgãos públicos brasileiros. Na verdade, como me disse o Diretor do Conselho Penitenciário do Estado durante uma entrevista que fiz com ele no ano de 2003, o Estado não sabe onde estão os seus egressos, porque simplesmente eles somem, mudam de endereço e ninguém sabe seu paradeiro. Dão o endereço falso, porque não querem ser identificados com ex-prisioneiros
Na ocasião ele foi mais incisivo e afirmou:

Se o estado quiser saber, por exemplo, onde estão e o que fazem aqueles que foram soltos por ter cumprido as suas penas ele não conseguiria. Teríamos que ter recursos para fazer uma pesquisa pegando a ficha de cada um, procurando-os nas suas residências. Mas, mesmo assim, seria muito difícil porque eles não só mudam de endereço, como preferem não dizer que são ex-detentos. (Depoimento do Diretor do Conselho Penitenciário do Estado, 2003)

Sobre a situação dos presos sob condicional, ainda existe certo controle porque eles têm uma ligação com a justiça. Mas pouco se sabe como vivem e os problemas que enfrentam. Os serviços de apoio a esse segmento não tem condições de acompanhar o destino dessas pessoas depois que saem da prisão, os chamados egressos. Como no Estado de São Paulo, somente uma parcela pequena é cadastrada, boa parte fornece nomes fictícios, fazendo questão, também, de não revelar sua condição nem o seu paradeiro.
          Economicamente é muito elevada a manutenção de um preso nos presídios brasileiros. Segundo informação de especialistas, calcula-se que o custo médio mensal de um preso no Brasil seja hoje em torno de R$ 1.500,00. Em geral, são computadas nesses cálculos despesas de alimentação, salário de funcionários, material de limpeza e higiene, água, luz, gás, telefone, combustível, medicamentos, manutenção predial e de equipamentos, e manutenção de viaturas.
Acreditam os técnicos que os valores apresentados estão subestimados, pois não incluem outras despesas essenciais. [11]
Este breve quadro sobre o sistema prisional brasileiro que aqui apresento  nos ajuda ver de forma mais objetiva o universo por onde passou (e ainda vão passar) os personagens objeto desta pesquisa. Pelo que podemos ver, pensando na relação custo-benefício, a condição do indivíduo que se encontra nessa situação o torna uma espécie de rebotalho, quando analisado do ponto de visto estritamente financeiro. Uma espécie de estorvo que custa caro à sociedade, mas que faz parte da irracionalidade sob a qual ela se assenta. [12]

PRESOS SOB REGIME DE LIBERDADE CONDICIONAL, UM PROBLEMA ANTIGO

Como vocês vão perceber ao ler este livro, onde remonto a origem histórica do estatuto jurídico do regime liberdade condicional, podemos perceber que ele surgiu nas colônias inglesas, francesas e espanholas em um momento em que o número de prisioneiros aumentava consideravelmente e passou a significar um sério problema para o empreendimento colonial das metrópoles, que encarceravam não só os desviantes comuns, os homicidas, ladrões, que punham em risco a propriedade privada, mas aqueles que contestavam politicamente a monolítica ordem colonial. Por isso, as cadeias e penitenciárias viviam abarrotadas de gente.
Jogar o indivíduo na condicional fazia parte da racionalidade para manter o aparato repressivo em nível de suportabilidade, já que o ingresso na prisão era elevado.
Ao analisar dessa perspectiva, parto do pressuposto que os constrangimentos vividos por eles quando estavam na prisão pode ter agravado à sua reintegração na sociedade, na medida em que incorporaram o modo de pensar, os costumes e hábitos da cultura do mundo prisional,[13]dificultando, assim, a sua adaptação à sociedade, quando os portões da penitenciária se fecham sobre suas costas.
  
UM “CAMPO MINADO”

Na primeira parte do livro aponto as principais dificuldades para entrar nesse mundo cheio de armadilhas. Um campo minado, onde questões não só de ordem epistemológicas aparecem a todo instante, mas também as dificuldades de encontrar interlocutores dispostos a falar sobre esse mundo, um mundo do silêncio.
Descrevo, também, as surpresas que encontrei ao procurar levantar o material dessa pesquisa, que, em alguns momentos, passaram a se constituir uma espécie de aventura, onde os riscos eram permanentes. Passei conhecer melhor as dificuldades, assim como aprendi muito como sociólogo.
Utilizei, também, um filme muito conhecido, focando a minha atenção em aspectos que dizem respeito à condição de quem se encontra em liberdade condicional. Esse recurso me possibilitou perceber outras dimensões dos fenômenos observados, tornando-se um recurso muito valioso para o estudo de determinados fenômenos sociais.
Procurei, mesmo com as fontes escassas, fazer uma análise bem sintética sobre a liberdade condicional tal como ela aparece no discurso jurídico, abordando um pouco da história desse instituto e percebendo sob que condições jurídicas objetivamente se encontram aqueles que estão em liberdade condicional. 
Em seguida, escutei os meus interlocutores e os criados pela cinematografia, trabalhando as suas representações sobre o mundo onde estão inseridos. Os rituais que são obrigados a suportar, seus sofrimentos e suas transformações, assim como o significado e o papel da religiosidade em todo esse processo.
Em outro momento, trabalho suas representações sobre o estar dentro e o estar fora da prisão, onde focalizo a situação das pessoas que vivem nessa condição, que considero um dos momentos importante do livro.
A prisão, a de dentro e de fora é, como dizia Michel Foucault, uma máquina de transformar as pessoas e, por isso, ela é reveladora do que ocorre na sociedade como um todo. Se formos olhar mais de perto, ela se constitui numa espécie de metáfora dessa mesma sociedade. Aqui fora, onde imaginariamente pensamos que vivemos no reino da liberdade, mas se olharmos direito, também vivemos cotidianamente uma liberdade condicionada. Condicionada pelas desigualdades sociais, condicionada pela burocracia e pelo trabalho degradante nas fábricas e nos escritórios, pela vida familiar, muitas vezes, opressora. Por isso, como dizia o filósofo Jean Paul Sartre, todos nós estamos condenados a ser livre, a lutar e descobrir, dentro desses limites, os caminhos da liberdade e a luta pela não servidão voluntária.
Que este livro incentive outras pesquisas sobre a situação carcerária no Estado do Amazonas, onde, certamente, muitas das descrições aqui feitas se assemelham ao que ocorre nas suas prisões. Esse é um campo de pesquisa importante não só para quem trabalha no campo jurídico, mas para todos os que desejam compreender um mundo que está tão perto de nós e que, muitas vezes, tememos encarar, porque a prisão nos assusta e seus inquilinos despertam primitivos medos.
Ao escrever esse livro tive, muitas vezes, a impressão que sempre havia algo mais a dizer sobre as pessoas que vivem no regime de liberdade condicional.
  Envolvi-me profundamente nesta pesquisa à proporção que avançava, quando surgiam novas e intrigantes interrogações, aumentando assim os desafios. Escrever sobre prisões é um conto infindável, como nos mostrou o nosso Graciliano Ramos nos tempos em que viveu nela, em pleno Estado Novo de triste memória.
Não há uma experiência mais reveladora do que compreender a condição daquelas pessoas que experimentam a ambivalência de sua liberdade; os que se encontram à margem, num estado permanente de liminaridade, vivendo na impossibilidade e tendo que reinventar cotidianamente as suas vidas.
Percebi que a sociedade, assim como desvia os olhos dos desempregados, dos velhos, dos incapazes e das crianças, também desvia o olhar das prisões e ignora o que se esconde atrás de seus muros e quem passou por ela. Tem razão uma estudiosa do sistema penitenciário brasileiro, quando afirmou que há um muro que nos separa desse mundo. Talvez seja por isso que ele seja tão alto e enigmático: para que a sociedade não saiba o que se passa dentro dele.
Que instituição é essa que, além de confinar os indivíduos, modifica as suas identidades, a ponto de, ao serem soltos e retornarem à sociedade mais ampla, não conseguirem uma adaptação satisfatória?
O que os estranhos muros de uma penitenciária faz com os prisioneiros que lá passam uma boa parte de suas conturbadas vidas e, ao mesmo tempo, a se acostumarem com ela, segundo a expressão de Red, personagem central do filme Sonhos de Liberdade ?
A prisão é um dos exemplos típicos daquilo que Goffman [14] denominou de instituições totais, mas seu horror vai muito além das descrições que esse autor faz do Hospital Santa Elizabeth, onde realizou seu trabalho etnográfico.
Para entender o sentido da metamorfose expressada por Red foi necessário compreender um pouco a singularidade dessa instituição para que ela nos permitisse visualizar o que ela faz com os homens e mulheres que passam por ela. Repetindo a expressão foucaultianiana: foi preciso conhecer como essa máquina de transformar os indivíduos opera por dentro, para podermos ter uma idéia do produto que ela cria.
O que é a penitenciária, que, na representação de meus entrevistados, sempre aparece como um lugar sombrio e estranho? Como o seu sistema disciplinar opera sob o sujeito, a tal ponto de marcar-lhe para o resto de sua existência?
Trata-se de um livro sobre o estigma, sobre um processo violento e desumano de exclusão social tão presente na sociedade brasileira da atualidade. O que narro nesse livro é um pequeno exemplo do que acontece cotidianamente, onde indivíduos sem nome e sem paradeiro se esbarram conosco nas esquinas das ruas das cidades brasileiras. São os chamados homens invisíveis, aqueles que queremos que se mantenham na invisibilidade, mas que, de vez em quando, irrompem e ganham visibilidade, normalmente nas páginas policiais dos jornais e na grande mídia.
 Longe de minha intenção de dar conta de todos os problemas vividos por essas pessoas. Procurei interpretar dimensões nem sempre visíveis para os que têm pouco contato com a realidade desses homens e mulheres invisíveis, que sofrem violentos estigmas e discriminações.





[1] O uso dessa denominação encontrei mais tarde nas análises que Soares faz no livro Cabeça de Porco, editado com MV Bill e Celso Athayde. (Ver SOARES, Luiz Eduardo, BILL, MV, Athayde, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2005.
[2] Ver ADORNO, T.; FRENKEL-BRUSWINK, E. LEVINSON, D.J. ; SANFORD, R.N., The Authoristain Personality. Nova Iorque, Harper and Borthers, 1950, p. 2.
[3] DURKHEIM, Emille. As Regras do Método Sociológico. Coleção Pensadores, Editora Abril, 1978, p. 71-156.
[4] Somente para termos uma idéia dessa invisibilidade, o maior estado do país, em termos populacionais, sabe-se da existência de 20 mil presos em condicional na capital. Somente 6,4 % são cadastrados. 73% forneceram aos órgãos da justiça e às autoridades nomes fictícios, fazendo questão de não revelar sua condição nem seu paradeiro. (Fonte: jornal Diário de São Paulo, Presos em Liberdade Condicional não são controlados pelo estado.  São Paulo, 3 de março de 2005).
[5] Documento entregue às principais autoridades da República, em janeiro de 2003, informa que 70% dos 295 mil presos brasileiros são reincidentes, segundo o Tribunal de Contas da União. Foram analisados dados relativos à fase de 2000 a 2002. (Ver jornal Folha de São Paulo. Saiba Por que a cadeia é uma usina de crimes, assinada pelo jornalista Josias de Souza, 16 de outubro de 2003).
[6] Uma minuciosa denúncia da condição dos presos nas penitenciárias brasileira pode ser encontrado na Amnesty Internacional (1990, 1993, 1999 and 2002), Human Rigths Watch (1998) and United Nation.
[7] Os dados mais atualizados, do mesmo Ministério da Justiça, em dezembro de 2004 – números não consolidados – havia no país 350 mil presos. Em junho do mesmo ano eram 331.457 detentos, sendo a população prisional que se encontram nas cadeias 79.652. 4% desta população é constituída de mulheres. (Fonte: Ministério da Justiça, 2004).
[8] LEMGRUBER, Julita. Controle da Criminalidade: Mitos e Fatos, in. Insegurança Pública – reflexões sobre a Criminalidade e Violência Urbana, Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2002,  p.178.  
[9] LEMGRUBER op. cit. p. 176
[10] LEMGRUBER, op. cit p. 117.
[11] LEMGRUBER, Julita. Controle da Criminalidade mitos e fatos. In. Insegurança Pública – reflexões sobre a criminalidade e a violência urbana. OLIVEIRA, Nilson Vieira. Editora Nova Alexandria, São Paulo, 2002, p. 179.  

[12] Essa irracionalidade é analisada por Wacquant, quando nos mostra como na penalidade neoliberal o paradoxo de remediar com “mais estado policial e penitenciário, e menos estado econômico que é a causa da escalada  generalizada de insegurança objetiva e subjetiva, tanto nos países do Primeiro como do Segundo mundo. P. 11 ( Ver WACQUANT,  Loic. As prisões da Miséria, Rio de Janeiro, 1999,  p. 11).
[13] Emprego o termo cultura prisional, para me referir aquela criada e recriada na prisão, que se expressa através de valores, padrões, linguagens, hábitos e outras formas de comportamento.
[14] GOFFMAN, Erving. Op. cit. p. 16

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