terça-feira, 14 de agosto de 2012

VIVER NAS PRISÕES: UM RITO AMARGO DEMAIS


Benedito José de Carvalho Filho


As primeiras impressões e representações relembradas pelos os que se encontram sob o regime de liberdade condicional giram em torno dos rituais e das rotinas da prisão, à sujeição e o doloroso momento da entrada, seguido, depois, do momento de adaptação. O trabalho de purificação, o isolamento absoluto, o corte de cabelo, a nova vestimenta, a farda onde eram identificados por seu número aposto no uniforme, sinais materiais e simbólicos de suas novas identidades, esses momentos ficam gravados na memória dessas pessoas, muito mais que os momentos de rotina, quando estão tirando os longos ou curtos períodos de cadeia.
 Lembram-se, também, da arquitetura da penitenciária, o sistema progressivo, as relações que estabeleceram e todo esse ambiente, onde  forças condicionaram os seus corpos e mentes, moldando-os a ponto de, mesmo fora dos muros das prisões, sentirem-se, ainda, como se estivessem emparedados nesses estranhos muros que atravessam suas almas.
Todos recordam de seus primeiros dias de cadeia, entrando naqueles locais estranhos, visualizando as primeiras impressões sobre eles, pois eram os primeiros sinais para demarcarem os dois mundos: o mundo da prisão, com seu rigor disciplinar e todas as duras condicionalidades, e o mundo lá fora, o mundo que se deixaram para trás.
O escritor russo Fiódor M. Dostoievski, assim como outros escritores que relataram suas experiências nas prisões, confirmam como os primeiros meses deixam marcas profundas e inesquecíveis:
O primeiro mês, de maneira geral, os primeiros tempos de minha vida de presidiário, conservo-os muito vivos na minha imaginação, mas os anos seguintes já estão apagados na minha memória. Alguns até quase completamente e confundem-se entre si, deixando-nos apenas uma impressão total, pesada, monótona, sufocante.[1]

Uma das possíveis explicações para que essas lembranças permaneçam tão vivas em suas vidas se deve à vivência de ruptura que sofrem nessa passagem.
A maioria recorda-se, também, das rotinas e dos momentos de despedida do mundo, quando estavam indo para um outro lugar totalmente desconhecido, se preparando para chegar no inferno, segundo as imagens de Marcos .Um inferno que começava a ganhar seus contornos e deixava de ser uma mera imaginação.
Um lugar cheio de gente, presídios com superlotação, onde, ao chegarem, o mais comum é serem recepcionados com cacetadas, seguido de tratamentos agressivos do tipo os que Marcos recorda:

 Oh, aqui o tratamento é “não senhor” e “sim senhor”, ou “prezado” - porque chamavam os guardas penitenciários de “prezados” Olhei assim para eles e me perguntei: “eu vou chamar esses caras de “prezados”?
 E ai eles chegavam pra você e diziam: “e aii, ladrão, aqui é pau e biriba (biriba é um pedaço de pau, um cacetete). E outro chegava para mim e dizia:“isso aqui é o seguinte: vai foder e vai morrer”. E chegava outro e dizia: “ah, a gente vai colocar ele com fulano de tal – que era um cara que estava tirando muitos anos de cadeia e quando chegava um novato assim enrabava.  Essas coisas”.
Senti sede. Ia passando um guarda penitenciário. E eu pedi: “oh amigo você podia me arranjar um copo de água?” Ele respondeu bruscamente: “amigo! Eu sou seu amigo?” E aí eu fiquei sem resposta. “Você vai ver quem é seu amigo!”, disse ele me ameaçando.
 Qualquer palavra que você usa no presídio pode ser entendida diferente. Ia passando um cara que estava comigo também e ele falou: “galego, faz um favor para mim galego”. Pra quê. “Aqui é “não senhor”, “sim senhor”, respondeu o guarda. “Fala galego que você vai ver daqui a pouco”.  E aíi chamou outros, colega dele, e ele deu risadas. E logo no primeiro dia, na sala da administração mesmo, levou umas.
Depois falou o chefe de plantão e disse como era o regime. É um regime que ele explica lá, mas não é nada daquilo. Depois me levou no pavilhão. Botaram-me lá na cela. Roupa preta não entra, só algumas camisas...Quando eu cheguei não tinha farda, mas depois passou a ter. Daí tiraram a minha roupa e coloquei uma farda. A gente passou a ter um número. O meu era 665. (eu tenho uma certidão de conduta carcerária que tem o núumero. Eles não me chamavam pelo nome e sim pelo número).

Os rituais se assemelham e são relembrados sempre com uma maior ou menor variação. [2]
Agora vocês me pertencem – diz o Diretor da Prisão, do filme, mostrando que o sistema disciplinar de uma prisão não deseja somente o controle dos corpos, mas transformá-los em indivíduos dóceis, e isso eles têm que compreender desde os primeiros dias em que entram no estabelecimento penal, pois, ao adentrarem na prisão, devem se despertencerem e despojarem-se de suas velhas identidades  adquirindo à de um condenado, segundo as palavras do diretor. Um condenado pertence, segundo o imaginário da instituição, ao sistema penal, ao Estado. 
Esse momento de noviciado é vivido como uma experiência muito forte na vida do prisioneiro e fica gravado para sempre na sua memória, como é possível perceber nas entrevistas. Por isso, eles narram os detalhes, o período em que ocorreram as suas prisões, a chegada na penitenciária, os primeiros contatos com seus guardiões e colegas de prisão.
Há todo um ritual, se compreender esse termo como um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica, caracterizado por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de linguagens e comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo.[3]
O ritual, como categoria importante para compreender tanto as sociedades sem escrita, como as sociedades modernas, tem sido objeto de estudo de vários antropólogos e sociólogos, [4] mas aqui me detenho, particularmente, nas observações de Victor Turner, [5] que, ao analisar algumas etnias africanas e certos grupos da sociedade contemporânea, retornou à teoria dos ritos, aquele que diz respeito ao momento da margem nos quais se instaura uma antiestrutura que transforma a hierarquia.
Considero as instâncias jurídicas do sistema penal, por onde os indivíduos percorrem, como portadores de seus ritos específicos, ditados por todo um conjunto de procedimentos processualísticos, culminando, muitas vezes, na prisão, que, também, tem seus rituais singulares. 
A prisão, com seus rituais parece ser o lugar onde o preso sente um grande impacto na sua vida. É quando tem início a ruptura com o mundo externo e o indivíduo passa a ser submetido às regras e leis que regulam seu comportamento. É o  momento, como visto, onde eles passam a pertencer ao Estado.
Nos seus discursos aparecem três linhas bem demarcadas: o momento de suas vidas antes, durante e depois da prisão.
O antes (do crime), é descrito como o tempo da liberdade, geralmente recordada como um tempo meio idílico, mesmo quando reconhecem os sofrimentos e as pequenas tragédias em suas vidas; o tempo durante a prisão, o tempo de cativeiro, em que puxaram cadeia, visto como um tempo morto em suas vidas, a vivência no mundo escuro. Depois da prisão, o tempo da liberdade, mesmo quando ela é limitada, como das pessoas objeto dessa pesquisa.
Vou me deter, à luz das observações de Turner e outros autores, no rito de passagem que ocorre nesses primeiros meses de prisão, tão bem enfocado, tanto pelos personagens do filme Sonhos de Liberdade como no depoimento de meus entrevistados.
A entrada na penitenciária me leva a estabelecer uma relação com alguns conceitos do autor aqui citado, que identificou esse processo como um processo de redução, em que o indivíduo perde a sua consciência de compartimentalização, autonomia e interioridade, para se transformar em matéria prima a ser moldada de acordo com os valores sociais. Este estado pré-social propicia novos aprendizados que procedem à mudança de status.
Na liminaridade (de limen, limiar), que se refere à margem, a transição entre separação e regregação, o de liminaridade (ou limbo, no sentido de ausência de estatuto, o indivíduo apresenta traços específicos: está morto no mundo dos vivos e numerosos rituais assimilam esses noviços aos espíritos ou aos fantasmas (como no título do livro de Dostoiévski chamado significativamente de Recordações da Casa dos Mortos); a sua invisibilidade social pode ser marcada pela perda do nome, pela retirada das vestimentas, insígnias e outros sinais de seu primeiro estatuto; e., por vezes, são tratados como embriões no útero, como recém-nascidos, crianças de peito. Daí expressões como peixes frescos, boi, primário, novato. Ou a associações com fezes: bando de merda,como um prisioneiro do filme denomina os que estão chegando. Também, pela associação com seres bi ou transexuais, como os andróginos ou com animais na interseção de duas classes. Assim, imagens como a de boi argolado, cordeiros, peixes frescos e outras denominações freqüentes.
Como observa Segalen, [6]

O mais característico de sua posição é que eles são ao mesmo tempo um e outro, mortos e vivos, criaturas humanas e animais etc. Eles sofrem provações físicas que podem assumir a forma de mutilações, mas também de fases de aprendizagem.

Na situação de liminaridade, os indivíduos perdem a  consciência de compartimentalização, autonomia e interioridade, para se transformarem em matérias-primas a serem moldadas de acordo com certos valores sociais.
Como afirma Turner, algumas formas de liminaridade levam a uma antiestrutura social que ele denomina de communitas, na qual os laços pode ser criados fora das hierarquias e das relações sociais que ocorrem normalmente no grupo. Ou seja, há uma coletivizaçao forçada marcada por o que ele chamou de nós essencial; um estado destituído de individualidade e compartimentalização, onde os indivíduos despojam-se de todas as suas marcas, de suas individualidades e são isolados de suas antigas relações, tornando-os pré-dispostos a serem moldados antes de seu renascimento social, pois o que era estruturado passa a ser subvertido pela viagem ritual na crise de isolamento e sofrimento que a prisão propiciou. [7]
Vejamos, por exemplo, a representação de um preso que aparece no filme sobre um personagem que está muito próximo dele e conhece a cultura prisional pela sua vivência cotidiana na penitenciária.
Ao se referir aos novatos que chegam na prisão, Red diz:

No início, os presos chegam lá muito assustados. Geralmente são garotos de 18 a 19 anos e não ficam separados, vão se misturar com os antigos. E em grande número de casos esses mais novos vão servir de mulher, de mulherzinha, ou ser domésticos, empregados deles (dos mais antigos), vão lavar a roupa do chefe. Então, a adaptação é mundo difícil. Porque, se antes um rapaz desse era o terror no bairro, lá dentro do presídio ele é um cordeirinho. Depois dessa fase de adaptação, que é muito dura para eles, pois se se rebelarem vão apanhar – vão servir de mulher – aí vem a  fase da adaptação, da desvalorização, raspam a cabeça e perdem o amor próprio. E aí começa a fase da maldade. Talvez pela revolta do que aconteceu dentro da própria cadeia pelo que fizeram os companheiros dele. Esses mesmos que sofreram com isso vão fazer isso com os outros novatos que chegaram e aí vão ser mais cruéis, ainda. São pessoas jovens, que cometeram crimes e acham que não vai acontecer nada.

Em seguida, o Agente Carcerário, vai falar de uma terceira fase:
Depois tem uma fase que eles se convertem. Existem grupos de religiosos, principalmente na área dos evangélicos – porque eles ficam em celas separadas (só ficam os “irmãos”, como eles são chamados. Ficam com a Bíblia debaixo do braço e após a janta eles fazem o culto). Existem também pessoas da comunidade que vão levar a palavra de Deus para eles. É um trabalho muito importante para eles, porque cria nas pessoas uma esperança. (Tiburcio, Agente Carcerário, Setembro de 2004).

O rito e o estado de liminaridade torna-se bem evidente nesse depoimento do Agente Carcerário.
Em primeiro lugar, os cordeirinhos - animais que simbolizam na Bíblia e em outros textos sagrados o ritual de sacrifício religioso – são os filhotes ainda novos; as pessoas mansas, inocentes, que chegam assustadas, vivendo o momento da ambivalência, da incerteza, próprio de quem está vivendo um momento de “desestruturação” na situação liminar. Daí serem denominados, também, em outras situações de porquinhos, próprios para o abate, para o sacrifício. Os porquinhos seriam os inocentes do mundo da massa, os que não pertencem, ainda, à massa carcerária, que são os entendidos do mundo do crime que não conhecem a malandragem desse meio. [8]
Mas o cenário não é tão nítido assim. Também, entre os novatos têm aqueles que já são pertencentes ao mundo do crime, que podem ser os reincidentes que estão voltando; também os que estão entrando agora na prisão, classificados pela idade (jovens, de meia idade ou velhos), pela classe social a que pertencem, pelo tipo de crime que cometeram, os artigos da lei em que estão enquadrados, os perigosos e não perigosos; os que têm preferência sexual por homens e mulheres, os boys e os travestis. Assim, uma série de classificações é adotada pelos antigos ao recepcionarem quem está chegando.
E fazem-se apostas sobre quem vai e quem não vai suportar os primeiros dias e meses na prisão, como vimos no filme; escolhe-se, também, pelas preferências sexuais. Há uma série de regras, cumplicidades, códigos, símbolos e outras formas de expressões que fazem parte das formas de convivência dos presos na prisão. 
Os períodos iniciais são quando os cordeirinhos, ou porquinhos,  vão ser domados, amansados – a fase da “adaptação”, como ele diz, quando eles se desvalorizam, raspam a cabeça e perdem o amor próprio. Começa a “fase da maldade.
O terceiro momento é o da conversão, quando eles tornam-se crentes - diz Tiburcio, o Agente Carcerário. O que não ocorre necessariamente com todos, como mostrarei mais adiante.
Van Gennep, no seu livro Rites de Passage [9] torna mais claro esse processo observado no depoimento acima. Analisa os ritos como relacionados à mudança de lugares, estados, posições e de grupos etários, e diferencia aqui três fases: a fase da separação, do limiar e da ligação.
 Na primeira fase, ocorre a dissolução de um indivíduo ou de um grupo de um antigo ponto da estrutura social ou de uma série de condições culturais. Na segunda fase, na fase da transição, do limiar e da passagem, o sujeito cai numa situação ambivalente, na qual não são dados nem os sinais do passado nem aqueles esperados na situação futura. Na terceira fase, são realizadas a transição e a ligação à nova situação.
A fase liminar, a liminaridade, é muito importante para o entendimento dos rituais de transição. É característico do caráter intermediário desta fase transitória um comportamento que revela ora uma baixa para uma elevada incerteza e a ambivalência, quando se acentuam alguns traços: a humilhação, que ocorre das mais diferentes formas, que vão desde a forma como são tratados, às sevícias sexuais adotadas pelos próprios presos. É o momento em que se pode observar que o preso fala pouco, fica silencioso, calado, triste e entra num estado de solidão profundo, principalmente quando é colocado na solitária, cuja função é exatamente essa: fazer com que o preso viva profundamente sua tristeza, tornando-se, na maioria das vezes, misantropo, introspectivo, afastado dos outros, “esquisito”.
A humilhação pode ser bem observada em algumas cenas do filme, através das narrativas de Red:

A primeira noite é a pior. Não há dúvida. Eles fazem você entrar marchando nu com a pele queimando e meio cego eles te metem na cela. E quando eles te metem na cela e você escuta a porta fechando é que descobre que é pra valer. Toda uma vida jogada fora num piscar de olhos, só lhe restando todo o tempo do mundo pra pensar. Todo “peixe-fresco” chega perto da loucura na primeira noite. Alguém começa sempre a chorar. Sempre acontece. A única pergunta é... Quem será?.  (Red)

Nesse momento, apagam-se as luzes do presídio, mas o monólogo interior de Red prossegue na sua recapitulação de suas vivências passadas, pois, como afirmei anteriormente, o preso tem uma memória bem clara de seus primeiros momentos vividos no cárcere:

- Eu lembro de minha primeira noite. Faz tempo.
Ouvem-se vozes.
- Peixes, peixes! Estão com medo do escuro? Prefeririam que seu pai não tivesse comido a sua mãe? Porquinho, porco, quero comer uma costela - diz um presidiário que, juntamente como um outro chamado de irmã,  formam o par que abusam sexualmente dos noviços, os peixes frescos.
- Os rapazes sempre vão pescar os novatos. E só param quando fisgam alguém.  

A loucura “tomou conta de um novato” que nessa noite de terror chorava desesperado pedindo pela sua mãe. Os guardas tiram-lhe da cela, mas ele continua gritando em estado de loucura e é violentamente espancado e morre na enfermaria.
Red continua seu monólogo:

- A vida na prisão consiste em rotina e mais rotina. Freqüentemente Andy aparecia com mais machucados. As “irmãs” continuavam em cima dele. Às vezes aparecia com mais machucados. As “irmãs” continuavam em cima dele. Às vezes conseguia se livrar. Às vezes, não. Era assim para Andy. Aquela era a rotina. Os dois primeiros meses foram piores para eles. Se as coisas continuassem assim este lugar acabaria com ele.

Esse momento é um dos mais duros, e Solange o descreveu como uma sensação de que um trator estava passando por mim, o que pode significar, realmente, uma sensação de esmagamento ou uma morte que pode levar ao desaparecimento de qualquer esperança ou sonhos de liberdade, só restando-lhes viver como zumbis, mergulhar na morte e pensar em suicídio, como relembra Marcos.

Naquele momento eu pensei em pular do prédio. A Secretaria de Segurança era no sexto andar. E eu olhava e via as pessoas lá embaixo. Olhava e via aquele movimento numa academia que ficava em frente. As pessoas malhando, dançando... Para mim aquele mundo tinha apagado. E eu pensei em pular. E depois eu pensava: “não, eu quero ver até que ponto eu posso resistir”. Mas é muito amargo, viu! Um sabor amargo demais.


Tiburcio, o Agente Carcerário, afirmou que na penitenciária onde trabalha em Fortaleza, o enlouquecimento ocorre com freqüência. 


Existe, principalmente na faixa etária dos presos jovens. Em depoimentos de seus familiares, eles relatam que o membro familiar que esté preso tinha uma vida normal. Era um sujeito danado, mas normal. Aí ele entrou para o ambiente prisional e lá não agüentou. A falta da liberdade, não agüentou a humilhação diante dos outros presos. Muitas vezes são forçados ao ato sexual e, com tudo isso, ficam loucos. A agressão sexual faz com que fiquem loucos. Ficam loucos, entram em crise e são transferidos da comarca do interior para o manicômio judiciário. Aí quando eles melhoram vão relatar para os psicólogos todos os problemas que aconteceram, a violência física, a violência sexual. O camarada entra com 18, 19 anos, os valores pouco amadurecidos...

(Uma média de quantos enlouquecem?) Uns 15% dos presos nessa faixa de idade enlouquecem após entrar no sistema. Agora, outros, já têm história de problemas mentais, estão curados e aí tem uma crise, matam ou agridem a mãe ou a avó e vão ser presos. Às vezes eles fazem uso de drogas, de álcool e, com isso entram, num estado de loucura, que se manifesta nas agressões. Quando não estão fazendo o uso da medicação são agressivos. Tomam psicotrópicos, na base de Diazepan, o Diepax, Gardenal e outros. Todos esses remédios que retiram eles da crise.

Existem também muitos suicídios. Eu presenciei no final do ano passada uma autoridade, um Promotor de Justiça, que se suicidou no Manicômio. Tinha sido condenado por tentativa de homicídio à esposa, matou a sogra. Botou a cadeira, chutou a cadeira e depois se enforcou com o lençol. Tinha 48 anos. Era um cara inteligente, estudioso. Mas as pessoas mais pobres também se suicidam, principalmente os que estão em tratamento. Os maníacos, por exemplo, têm tendências suicidas.

Todo esse processo de quem viveu na liminaridade na prisão tem um só objetivo: o desfiguramento da estrutura da identidade dos presos e o delineamento de uma nova identidade desejada pela “instituição total”, nesse caso, o presídio. O recém chegado perde com ele não só os elementos de expressão, mas também componentes estruturais de sua personalidade.
Isso foi observado por Bettelheim nos seus testemunhos sobre as suas vivências nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Para ele, os métodos para destruir qualquer autonomia pessoal eram:

...primeiro obrigar os prisioneiros a adotar um comportamento infantil. O segundo era o de abdicar da individualidade e transformá-la numa massa anônima. O terceiro consistia em destruir qualquer capacidade de autodeterminação, de previsão e, conseqüentemente, de preparação para o futuro.[10] 

Ao obrigarem os presos a adotarem um comportamentos infantis,

...os prisioneiros eram maltratados com modos que um pai cruel e prepotente teria usado contra filhos indefesos (...) mas o importante eram  as ameaças  de ter de aceitar  acostumar-se ao fato de estar constantemente sob ameaça de um castigo tão infantil tornava muito mais difícil conservar a auto-imagem adulta do que qualquer surra real.

Isso aparece no filme muito claramente não só nas ameaças que os peixes-frescos receberam na primeira noite na prisão, que acabou provocando o pânico e a morte de um dele (o gordo), mas com um de meus entrevistados nos seus primeiros dias de encarceramento.

É a polícia chegar e dizer: “olha você vai morrer.” Duas horas da manhã te tiram da cela. E te levam pra tortura e você pensa: “é agora, vão me matar”.Quando você se prepara para isso você não sente mais medo da morte. Uma vez, por exemplo, me tiraram de madrugada e me levaram para outra delegacia. No caminho, quando chegou no meio da ponte, eles pararam. E eu pensei: “a minha morte vai ser aqui”. Eu estava com medo, eu estava preparado para receber um tiro... E fiquei indo de delegacia para delegacia. 


Solange conclui:


A vida na prisão é muito violenta, muito dura. O perigo não vem só dos guardas, dos agentes. A gente fica sempre com medo, sobressaltada, porque não sabe o jeito certo de se comportar e agir. Das outras presas pode vir a violência e as ameaças. Dos guardas, as ameaças, do mesmo jeito. Um gesto, uma palavra, o mínimo que seja é o que basta para vir porrada ou a ameaça de porrada. Então a gente fica sempre naquele suspense. Sabe que pode vir alguma coisa má, mas não sabe de onde. Isso vai amolecendo a gente. Vamos ficando fracas e com medo.

Na penitenciária, chegar na condição de interno é nascer para um mundo novo, um universo de conflitos, codificações inicialmente desconhecidas e frente às quais alguns preferem resistir inicialmente, seja porque não entendem bem esse novo universo, preferindo não pisar em falso para não serem tidos com vacilantes, seja como uma negativa de interação, fruto das representações pouco positivas que comumente se produzem sobre as prisões.
As posições assumidas variam de acordo com um conjunto de experiências anteriores e com possíveis relações que mantêm com pessoas dentro da penitenciária.
A penitenciária não é só um lugar físico, geográfico, mas sobretudo relacional. Um lugar é... uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade, como diz Certeau.[11] E os lugares estáveis são ordenações provisórias, conjunto de combinações de elementos que se cruzam e se agregam por determinados períodos de tempo. Ordenações que implicam no estabelecimento de relações entre indivíduos e grupos, cada um procurando, a seu modo e em consonância com os elementos sociais disponíveis, construir suas trajetórias. (Retirado do livro Depois das Muralhas e das Grades, Benedito José de Carvalho Filho, Editora ABC, Fortaleza – Encontra-se na livraria Saraiva de Manaus)




               





[1] DOSTÓIEVSKI, M. Fiódor. Memória da Casa dos Mortos. Editora Nova Aguillar, S/A Rio de Janeiro, 2004, p. 324. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.
[2] Tzvetan Todorov, no seu livro Em Face do Extremo, chama atenção para a prática em vigor nos campos de concentração do desnudamento das vítimas antes das sessões de espancamento ou nas câmaras de gás dizendo: A transformação das pessoas em não pessoas, em seres animados, mas não humanos, nem sempre é fácil. Apesar dos princípios ideológicos, diante de um indivíduo concreto pode-se ter dificuldades em superar uma resistência interior.Uma série de técnicas de despersonalização entra em ação, cuja finalidade é auxiliar o guarda a esquece a humanidade do outro (...). Os seres humanos não ficam nus em grupo, não se deslocam nus; privá-los de suas vestes é aproximá-los dos animais. E os guardas comprovam que toda a identificação com as vitimas se torna impossível logo que não vêem mais do que corpos nus; as vestes são uma marca da humanidade. (TODOROV. Tzvetan. Em Face do Extremo. Campinas, São Paulo, Editora Papirus, 1995, página 199.
[3] SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos. FGV Editora, 2002, Rio de Janeiro, Tradução de Maria de Lourdes Menezes, p. 17.
[4] Aqui me refiro, particularmente, aos trabalhos de Arnold Van Gennep, Les Rites de Passage. Paris, Émile Nourry, 1909; Émile Durkheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2000, tradução de Paulo Pontes; Marcel Mauss, Ouvres, Paris, Minuit, 1968;  Mary Douglas. De la soullure. Essis sur le nocion de pollution et de tabou. Paris: Maspero, 1971.
[5] TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis, Editora Vozes, Coleção Antropológica, n. 7, 1978.
[6] Segalen, M. Ritos e Rituais ContemporTaneos, op. cit. p. 49.
[7] Devo essa reflexões à DAMATTA, Roberto.In: Individualidade e Liminaridade: Considerações sobre os Ritos de Passagem a a Modernidade. Mana, Estudos da Antropologia Social, abril de 2000, Ed. Contracapa, Rio de Janeiro, p. 15.
[8] Para compreender esse “código” é muito oportunas as observações etnográficas que Ramalho fez. Pode-se pensar que a massa era o conjunto dos presos e dos criminosos. Ele nos mostra representações muito mais complexas,. “Massa é o crime, é o pessoal do crime. É uma entidade deles. Entidade do delinqüente... A massa é um trato entre nós mesmos, quer dizer, a massa refere-se ao crime, a massa refere o crime. Há, portanto,  um grupo de pessoas que não pertencem à massa, assim como existem as leis da massa. Nem todo. “Apesar de todos os presos serem infratores ou suspeitos de infração do ponto de vista da lei penal, do ponto de vista dos presos nem todos eram criminosos, nem todos pertenciam à massa.  (Ver: RAMALHO, José Ricardo. O Mundo do Crime, A ordem pelo Avesso. Ed. IBCRIM, São Paulo, 2002, p.53).
[9] GENNEP, Van.Rites de Passage. In. Mimese Na Cultura, Agir Social, Ritual e Jogos, Produções Estéticas. Editora Annablume, São Paulo, GEBAUER,  Gunter e WULF, Cristoph WULT. Tradução: Eduardo Trindopolis. P. 150, 1999.
[10] Ver BETTELHEIM, Bruno. O coração Informado. Editora Paz e Terra, 1985, Rio de Janeiro, p. 107.
[11] CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano, Editora Vozes, 9 Edição, tradução de Ephraim Ferreira Alves, 1999, p.45

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