segunda-feira, 13 de agosto de 2012

NÃO OBEDECEU? ENTÃO MORRA, MORRA, MORRA!

Benedito Carvalho Filho
Março/2011
 
Não é preciso grande investigação sociológica para perceber como boa parte dos cidadãos amazonenses, principalmente aqueles pertencentes às camadas menos favorecida da população, reagem diante dos incontáveis (e absurdos) casos de desmandos, corrupção, corporativismo, nepotismo e tantas outras coisas que ocupam os espaços dos noticiários mediáticos dos jornais e televisões. Com indiferença, muitos parecem encarar esses acontecimentos como parte da rotina, naturalizando-os, como se isso já fizesse parte da vida, repetindo o famoso chavão que diz: a vida é assim mesmo, sempre foi assim. Outros, um pouco mais informados, são complacentes. Mas, de uma maneira geral, prevalece a indiferença e a cumplicidade, quando adotam, por exemplo, o famoso mote que circula na sociedade como se fosse uma sabedoria: manda quem pode, obedece quem tem juízo. É o perfeito exemplo daquilo que o velho Durkheim chamou de “consciência coletiva”, que, para compreender, temos que remontar à velha escravidão da era da borracha, cujo símbolo era o coronel de barranco e seus agregados, personagem internalizado e que dormita no inconsciente coletivo manauara.
É evidente, os que podem são os (poucos) que detêm o poder econômico e político, são os que possuem as terras, administram o dinheiro público, os grandes homens de negócio, proprietário de bens móveis e imóveis, ou os que exercem cargos com salários absurdamente elevados na burocracia do Estado ou em negócios privados. São os chamados pelo povo de doutores, os que conhecem bem as artimanhas do poder e sabem muito bem como usá-las em benefício pessoal. São esses os que podem, porque mandam, cabendo aos subalternos, os de baixo, como dizia o nosso saudoso sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, simplesmente obedecer, porque quem tem juízo deve obedecer e não entrar em choque com seu mandante.
Temos na frase citada, de forma transparente, a ideologia que rege as relações entre as classes num país altamente desigual como é o nosso.  Quem reconhece a sua diminuta capacidade de influir nos rumos da sociedade como cidadão e não tem juízo, pode ser considerado pouco realista, um anormal, o que arruma confusão (põe barraco, como se diz no nordeste) porque questiona e vai atrás de seus elementares direitos garantidos por lei, e, por isso pode sofrer sanções da burocracia, ser despedido do emprego, ficar marcado, estigmatizado, porque nocivo ao bem estar comum (ou, melhor, ao bem estar dos poucos que vivem das benesses do poder). 
Em um estado paupérrimo, como o Amazonas (o que possuí o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país), essa mentalidade funciona para uma minoria social, cujas raízes históricas repousam numa sociedade autoritária, marcada pelo escravismo, o patrimonialismo, o despotismo e o saque do Estado, usado, com muita freqüência em benefício privado, como fonte de enriquecimento, sem o menor pudor e constrangimento, como se isso fosse parte da normalidade consentida.
Nesta cultura, onde quem pode manda e quem tem juízo obedece, o Estado é patrimônio privado de determinados grupos e famílias. Isso faz com que as relações sociais nunca se estabeleçam a partir de princípios modernos, republicanos, princípios do liberalismo, como a noção de cidadania. É por isso que aceitamos como normal essa frase, curta, mas com forte conteúdo ideológico. Para compreendê-la  temos que estudar como se deu a constituição de nossa República, onde nós vamos perceber que sempre vamos ter repúblicas oligárquicas, e não res-pública.
 A cidadania pressupõe a existência de indivíduos iguais em seus direitos, mesmo que sejam desiguais do ponto de vista econômico. Ora, isso nunca se estabeleceu no Brasil e, muito menos aqui entre nós. No Amazonas todas as relações sociais se estabeleceram entre um inferior e um superior, entre mandantes e os com juízo, os que simplesmente obedecem às ordens, por mais absurdas que sejam. As relações são sempre de obediência, de submissão, de silêncio cúmplice porque a maioria depende do poder do coronel de plantão, presente oniscientemente na máquina do Estado, em instituições como as escolas, universidades, nas burocracias e nas relações familiares.   É esse coronel-que-dormita em nós, para usarmos a expressão de Suely Rolnick, pois para o coronel, não tem essa de cidadão anônimo: ou você é “doutor” e faz parte dos cambalachos da casa-grande, ou você é trabalhador, “elemento” da senzala a seu serviço, de corpo e alma. (Rolnick, Suely, Cartografia Sentimental – Transformações Contemporâneas do Desejo, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul & Editora Sulina, 2007, p. 155).
Outra expressão semelhante a que estamos comentando, muito comum, é a famosa frase: você sabe com quem está falando?
 Quando você faz essa pergunta para o outro está mandando uma mensagem implícita que você é superior a ele. Na expressão norte-americana, a diferença é gritante: o interlocutor não faz essa pergunta quando é pego usando a sua autoridade como meio de poder. Imediatamente o cidadão comum pergunta: quem é que você pensa que é? Seu nome, sua função, sua origem de classe ou outros elementos simbólicos de pertença não servem para justificar as suas possíveis contravenções. No caso quem tem juízo respeita a lei que deve ser igual para todos, sem discriminação.   
A primeira frase não estabelece relações horizontais de simetria, de reconhecimento da igualdade, dos direitos e das diferenças. É por isso que, aqui, nunca surge a figura do cidadão, algo extremamente abstrato e incompreensível para uma boa parcela dos indivíduos. Isso transparece com muita clareza, por exemplo, na nossa dificuldade em compreender que os nossos governantes - seja no executivo, legislativo ou judiciário - são nossos representantes e que estão lá para realizar a nossa vontade e não a deles. Fica mais cristalino nas relações sociais cotidianas, onde é possível perceber nas atitudes mais banais como trafegar em um ônibus e perceber que ninguém reage às truculências de certos motorista que dão freadas bruscas, o cidadão se arrebenta nos ferros e uma boa parte dos passageiros riem como se aquilo fosse natural. É evidente, também, nas filas dos bancos quando os sujeitos, sem o menor pudor, passam na frente de todos porque é amigo do caixa etecetera e tal.
O sociólogo paulista, José de Sousa Martins, ao prefaciar o livro de Carlos Corrêa Teixeira – Servidão Humana na Selva (O aviamento e o Barracão nos Seringais da Amazônia), Editora Valer, dizia:
O Ceará e o Amazonas se orgulham de terem libertado seus escravos antes da Lei Áurea de 1888. O que raramente se diz é que, justamente, o Ceará tornou-se, então, o principal exportador de mão-de-obra, a vítima de suas secas, para os seringais da Amazônia e que o Amazonas se torna a terra salgada da nova escravidão imposta pelo barracão, a casa-grande dos seringais, através do regime do aviamento. Com a diferença de que esses novos servos da gleba, sendo brasileiros, não eram protegidos de governos estrangeiros nem tinham quem falasse em seu nome, numa época em que não tinham ainda uma legislação trabalhista. O trabalhador ficava a mercê do poder pessoal de seu patrão, que ditava e executava a lei, e governava por meio de jagunços e pistoleiros. (p.10).
Mudou alguma coisa nessa zona franqueada? É só ler diariamente os jornais para perceber como a cultura do barracão está presente nessa terra que aspira a modernidade sem cidadania. A nova escravidão está diante de nossos olhos para quem consegue ver: homens e mulheres trabalhando em fábricas no Distrito Industrial e recebendo salários irrisórios; jornadas de trabalho extenuantes, avançando muitas vezes pelo domingo, adoecimento no local de trabalho. O que dizer das moças que trabalham como garçonetes em bares e restaurantes, a maioria delas sem direitos trabalhistas, recebendo somente as comissões pelas vendas?
A modernidade não é só crescimento econômico, mas um avanço da consciência cidadã, que se dá quando os trabalhadores lutam pelos seus direitos. Como estão representados? Onde estão os sindicatos que os representam? Na Manaus moderna isso é um detalhe sem importância. Os novos escravos parecem encantados com essa economia predatória e de enclave e têm orgulho de serem amazonenses.
Mas isso não acontece somente no Amazonas. No Brasil a relação não se dá entre o representante e o representado. Basta você eleger alguém para que ele se sinta numa posição de poder, estabelecendo relações de favor e clientela, se achando no direito de fazer o que bem entender em benefício de seus interesses privados e não no interesse público, como deveria ser.  O indivíduo passa a ser cliente, pedinte de um favor. Isso torna impossível o surgimento de uma esfera pública, pois esses espaços são apropriados privadamente.
 Numa região como a Amazônica, cuja condição colonial é resultante de sua impossibilidade (ou incapacidade) de tomar as rédeas da sua história, as suas elites agem como nos tempos da Colônia. Enquanto os cidadãos dessa região não se tornarem atores ativos e construírem espaços públicos que possibilitem o surgimento de organizações populares, como movimento de bairros, sindicatos, etc. o que teremos é uma sociedade autoritária, assimétrica, onde a elite dominante por muito tempo exercerá seu poder despótico. Isso porque elas têm mais condições materiais, percepção e antecipação dos fatos, são mais informadas e instruídas e não têm pudor em se envolver na política e se apropriarem da máquina do Estado. 
O velho Marx nos lembrava que a história é escrita pelos vencedores, e, portanto, a história dominante é a história da classe dominante. Somente a organização dos que estão à margem da sociedade será capaz de construir uma história diferente. Mas a impressão que dá ao observar o que se passa no Amazonas é que, infelizmente, a velha frase sussurrada nas esquinas e repartições perdurará por muito tempo se os cidadãos amazonenses não assumirem o único caminho capaz de alterar essa condição: a sua organização, a cidadania. É utopia esse desejo?

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