sexta-feira, 17 de agosto de 2012

CULTURA A PARTIR DO HORROR


José Américo Pessanha, já falecido, filósofo, responsável pela edição da Coleção Os Pensadores, era, na época, Diretor do Centro Cultural Vergueiro, onde desenvolveu um trabalho de incentivo à cultura dos mais importantes na cidade de São Paulo.

 

Eu me sinto um pouco intimidado com o tamanho da questão proposta neste seminário. Depois que eu assumi a direção do Centro Cultural Vergueiro, tive a impressão de que, na verdade, não tinha assumido a direção de um centro cultural do ponto de vista convencional. Olhava lá de cima - minha sala ficava em um dos patamares mais elevados - e via todos os tipos de pessoas entrando, os problemas surgindo. E aquele pequeno universo está ali à minha disposição, aberto ao meu olhar. Era um universo semelhante à de uma praça. De uma praça ainda privilegiada, especial. Era uma praça coberta que tinha certas atividades a oferecer a determinado público, mas que não perdia o seu caráter informal, aberto, que fazia com que as pessoas entrassem simplesmente para estar ali, encontrar outras pessoas, conversar, fazer pequenos grupos. Enfim, para fazer coisas que numa praça dos tempos atuais é quase impossível. Alguns vão ali para sentar, ler um jornal e cochilar.
Isso, no começo, foi criando para mim uma série de problemas. Logo no início de minha gestão um usuário me disse: “veja professor, tem gente que vem aqui para ocupar o lugar e não está fazendo nada. Ele está dormindo”. Era um senhor idoso a pessoa que dormia e eu procurei comentar da seguinte maneira: seria muito bom que no nosso Centro Cultural houvesse ainda uma certa tranqüilidade, um certo caráter de segurança, uma certa paz que permitia que as pessoas que talvez não tivessem uma acomodação adequada em seu lar - talvez até morassem em cortiço - pudesse entrar ali, folhar o jornal, ler alguma coisa e, talvez, infantilizado, se sentindo um pouco constrangido, dormisse, cochilasse. Ou seja, o Centro Cultural de São Paulo tem essa função ambígua. Ele tem as suas atividades programadas, cursos seminários, oficinas, espetáculos de teatro, biblioteca de vários tipos, mas existe uma circulação que é uma circulação ao mesmo tempo sedutora e, ao mesmo tempo, problemática, porque se as pessoas vão lá para folhar um jornal e dormir, como se tivessem numa praça de outrora, ou na praça de outros países - onde ainda têm praças onde as pessoas podem ir tranqüilamente - há também nessa mesma informalidade, nesse trânsito, uma espécie de recepção dos problemas que estão lá fora. Nunca, evidentemente, num nível agudo e grave de uma praça complexa como a Praça da Sé. Mas lá, também, nós temos questões das drogas, temos a presença dos agiotas, ladrões. E uma parte do trabalho, sobretudo inicial, foi trabalhar essas questões.
Agora vocês me pedem para pensar isso num sentido mais agudo e grave como é a Praça da Sé, o coração dessa cidade, e que está sangrando em todas as questões ali herdadas.
Há um sentido quase de paroxismo, porque ali as coisas não têm medida convencional do que nós, dentro dos nossos recursos burgueses, conseguimos defender a nossa vida, conseguimos defender o nosso patrimônio. Ali, não, está tudo aberto, escancarado. Ali é uma margem que fica nos desafiando o tempo todo. Ali estão aqueles que estão sobrando, aqueles que não estão funcionando bem, aparentemente; aqueles que são uma espécie de canga que fica à margem, como se a sociedade quisesse fazer um tipo de seleção. E ela faz porque ela nega a validade de todos os valores instituídos e consegue no mal, no pecado, na marginalidade, apontar de uma maneira estranha, quase demoníaca, quase satânica, - no bom sentido - outra possibilidade de se ser, de existir.
É uma gratuidade muito solta para nós, muito presos que estamos a esquemas, normas e a cânones. Há uma espécie de anarquia, uma espécie de véspera da sociedade, uma espécie de mundo que ainda não está constituído, mas que, quem sabe, se retomássemos um pouco essa matriz mais aberta, um pouco esse caos, pudesse se pensar e ordenar a discussão em outra direção.
Diz a Sela que se nós fossemos à Praça da Sé teríamos a oportunidade de ver o seu horror - um horror que precisa ser enfrentado nos ouvidos. Esse horror, no fundo dessa escuridão, traz uma espécie de lampejo, uma espécie de luminescência que pode estar sinalizando não apenas o problema da Praça da Sé, mas o nosso problema. Ou seja, a Praça seria, com seu horror, uma denúncia não apenas do horror que está lá, mas do horror que nós produzimos e que está em nós e do qual somos cúmplices. Sem o nosso horror, aquele horror não existiria. Sem o nosso horror, o horror que não queremos ver, do qual não queremos tomar consciência e que, de certa maneira nós também trancafiamos em cercos, mocós, interiores, sem esse horror que, de certa maneira, nós construímos dentro de nós, aquele horror não existiria.
A Praça da Sé é uma espécie de farol que não está apontando para coisas belas, de forma nenhuma. Nada está apontando que ali está a terra prometida, que deveria ser construída por nós juntamente com eles (os meninos, os desempregados, as prostitutas, etc.). E nesse processo de realizar uma sociedade nova não somos nós que necessariamente que temos que dizer para eles todas as lições. Ao contrário, nós é que temos de ouvir deles uma grande lição que a Stela exprimiu na noção de ludicidade. Certa gratuidade que ali se manifesta sob a forma de malandragem, de esperteza, de mutreta, de disfarce para escapar das armadilhas todas, das nossas leis, de encontrar formas de sobrevivência, apesar de nós, da nossa forma repressiva que os condenou a esse tipo de malabarismo.
Mas existe ali malabarismo o tempo todo. Aprendem isso na infância e fazem do malabarismo uma espécie de corda bamba fragilíssima, da qual muitos caem definitivamente. É um exercício de viver. Viver não é essa coisa que nós burguesamente temos. Uma existência com casa, registro, CIC, CPF, emprego, DA-9, DA-15, estabilidade, isonomia. Viver não é isso. Viver é uma coisa que se improvisa. Viver a cada dia pode ser, inclusive, morrer.
 É um viver tão no limite, tão preso apenas por um fio, e um fio tão frágil, que viver nesse sentido, é, realmente, uma aventura sem nenhuma garantia, sem nenhuma previsibilidade, sem nada que dê uma certa afirmação de futuro, uma certa esperança de prosseguimento. Viver se reduz a sobreviver no instante que se sobrevive. E, pelo menos, cada um ali ainda está vivo; pelo menos cada um ali conseguiu driblar de tal maneira todos aqueles obstáculos que aponta para a morte. Conseguiu acordar no outro dia e dizer: “aí está a Catedral, eu ainda estou vivo!” Isso é uma grande conquista. A vida é conquistada a cada instante; a vida é arrancada a cada instante das impossibilidades que são postas para viver.
Se a Stela é fiel no seu relato sobre o que está acontecendo na Praça da Sé, evidentemente é muito difícil para nós encontrarmos soluções para os problemas, porque, na verdade, um dos sérios problemas da Praça da Sé somos nós. Quer dizer, nós somos suspeitos porque nós somos cúmplices da situação que lá existe. É porque ela está lá que nós estamos aqui. Se ela não estivesse lá nós não estaríamos aqui da maneira como estamos.
 Mudar aquele universo é mudar toda  essa sociedade. A Praça da Sé para ser um espaço do povo supõe que muitos problemas sejam resolvidos, não lá, mas na sociedade como um todo. Se nós estivermos dispostos a entrar em um processo de discussão para mudar aquela realidade, temos que começar a repensar os nossos próprios parâmetros. Para que serve uma cidade? Para que existe uma cidade e dentro dela uma praça? É a partir daí que nós temos que começar a conversar. Temos que reinaugurar todas as nossas conversas. De nada adianta chegar e dizer: “coitado daqueles meninos, estão cheirando cola, estão com medo de morrer, o traficante disse que se eles abrirem a boca não passam de hoje.”Vamos fazer o seguinte : vamos fazer um teatrinho fantoche ? Vamos cantar. Tudo que a gente lembraria num rol de atividades de ações para as crianças, para adolescentes, para adultos e idosos na Praça da Sé soa como alguma coisa quase tirânica, cruel.
Tem que ser alguma coisa que a gente descubra dentro de um repensamento do que é cultura a partir do horror, o que é cultura a partir da condenação à morte.  O que é que você diz para quem está condenado à morte? Vamos imaginar o seguinte: vamos levar cultura para a penitenciária. Vamos colocar a hipótese que existe a pena de morte. Daí vocês dizem: “a pessoa tem direito à cultura, a educação, a arte”, etc. “Qual o seu último desejo, que sinfonia você quer escutar, meu filho ?” “Que livro você quer ler ?” Eu não sei. Eu não saberia propor um programa cultural para terminais. Terminais decretados não por um processo de tratamento de vida, mas por um processo de mutilação e interrupção da vida. Eu não saberia. E ali, na Praça da Sé, paira uma condenação permanente. Claro que ninguém sabe quem é condenado de dia, de manhã ou a noite. Claro que não houve nenhum julgamento que pudesse preparar pelo menos um pouco do espírito daqueles que vão morrer. Não, ali é o lugar de execução permanente, o lugar onde, paradoxalmente, nós deveríamos pensar como fazer o lazer e a cultura.
Eu fico embaralhado nesse momento. É como se estivessem pedindo para eu sugerir um programa de lazer e de cultura para as pessoas condenadas à morte, ao sofrimento, à instabilidade, insegurança e terror.
Só que ali também há os processos de resistência. Nos subterrâneos há um processo de resistência, no qual nós não sabemos lidar porque não precisamos dele, ainda. Alguns que permaneceram em prisões durante algum tempo perceberam que essa resistência cresce imediatamente. Todos os que passaram um dia, um mês, três anos em algum tipo de prisão sabe que imediatamente começa a surgir gestos, certos sinais, certas convenções, surge uma linguagem e as pessoas começam a sobreviver, inclusive espiritualmente, porque elas criam um mecanismo de comunicação, onde a esperança de escapar dali, a esperança de uma notícia boa é sempre a meta dessa linguagem. As pessoas tentam sobreviver à opressão, ao castigo, à vigilância, fazendo sinais e gestos que os guardas não percebem e se começa a criar ali uma cultura da prisão.
 A Stela diz que é isso que está acontecendo na Praça da Sé. Diz que o processo que está se desenvolvendo lá é um jogo de vida e morte a todo o momento, e, por isso mesmo, a exacerbação do lúdico porque, na verdade, é através do lúdico que esse malabarismo e essa esperança de sobrevivência se faz.
Diante dessas informações fico ainda mais preocupado com o que dizer. O que fazer? Mudar isso? Limpar a Praça da Sé? Tirar esse jogo de lá? Deslegitimá-lo? Ou tentar ver se, a partir da ludicidade defensiva, heróica, poderá se fazer alguma coisa? 
Se isso for possível, e se nós, com muita delicadeza, sem querer passar para eles o que deveria ser uma cultura, mas, ao contrário, com eles buscar encontrar a expressão dessa ludicidade marginalizada, talvez a gente pudesse encontrar algum caminho. Não se pode esperar, no entanto, que um técnico de qualquer Secretaria, de outro estrato social, que não tenha passado por uma experiência de horror, onde, como disse, fazer cultura é inventar um malabarismo da sobrevivência, faça esse trabalho.
Se a gente não for lá verificar com eles o que é isso nós vamos autoritariamente, embora muito bem intencionados, matá-los em tudo, não só no corpo, mas naquilo que eles próprios já criaram para a sua própria forma de sobrevivência. Então, nesse momento, a entrada dos organismos de cultura é uma coisa que me deixa muito preocupado. Os meus referenciais construídos com a vida de privilegiado me deixa qualificado sob certos aspectos, mas me deixa profundamente desqualificado naquilo que é fundamental. Qualquer sugestão que saísse do gabinete, por mais inteligente que fosse, mas que não procurasse conviver com essa realidade na sua face nua, me parece inócua, quando não perniciosa.
O medo que eu tenho é que essa chaminha de ludicidade, de criatividade, de identidade, de afirmação, essa tramazinha tão sutil e tão frágil fosse simplesmente dilacerada porque nós diríamos a eles a nossa cultura, sem que eles pudessem sequer construir com suas próprias mãos, com suas próprias inteligências, sensibilidades, outro tipo de bem que nós nunca soubemos o que é.
Nesse momento o institucional fica questionado. A competência fica altamente suspeita. O técnico, o planejamento de lazer na rua pode ser útil, mas cuidado com ele. Segura ele porque ele vem falando de outro mundo, imbuído de outros valores e ele não sabe, de fato, o que é aquilo ali. Para ele é uma praça, um espaço com tipos curiosos, exóticos. Para ele, antropologicamente, é um espaço extraordinário para uma pesquisa, uma tese, um objeto adorável para uma análise acadêmica. Mas para quem está lá aquilo é o mundo vivido no seu avesso; vivido nas suas trevas, no seu horror.
Aquilo não é um objeto de investigação, mas um drama humano, uma aventura humana terrível tentando driblar a morte a cada instante. Então, é preciso que a gente invente uma nova pedagogia, uma nova ação cultural, do mesmo modo como se nós fossemos cuidar de outras culturas. Nós não podemos chegar e simplesmente dizer: vamos botar aqui um palco nessa oca, vamos iluminar com grandes holofotes, fazer figurinos melhorzinhos, um som melhor. Se fizermos isso estaremos destruindo tudo e não levando cultura. Esse processo nós já estamos cansados de ver acontecer na nossa cultura. Não podemos fazer na Praça da Sé um processo de colonização. Isso acaba sendo genocídio, morticínio.
Eu não tenho nenhuma sugestão concreta. Fico perplexo diante desse desafio e acho que a gente tem muito que pensar e discutir, de aprender e observar, com muita modéstia intelectual para fazer propostas concretas.
Há ali um laboratório de humanidade. Se ele não é do nosso gosto nem a nossa imagem, talvez em grande parte o problema seja nosso. Tenhamos, pelo menos em relação a essa questão, um prudente respeito. Isso é fundamental que a gente tenha para propor qualquer coisa mais objetiva sobre como trabalhar na Praça da Sé para que ela se transforme naquilo que ela deveria ser, sem perder aquilo que ela já conquistou, apesar de nós e contra nós. 

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