sábado, 25 de agosto de 2012

GUERRA AMAZÔNICA E O JORNALISTA LÚCIO FLÁVIO PINTO



                                             
Benedito José de Carvalho Filho
 Sociólogo, escrito em 2005
 


Em épocas (não muito remotas) o conhecimento do que denominamos realidade brasileira, com sua imensa diversidade econômica e cultural, era escrito a partir do olhar hegemônico da região sudeste, mais particularmente de São Paulo, onde a modernidade já demonstrava sinais visíveis da necessidade de conhecer esse obscuro, enigmático e polêmico país chamado Brasil.
Os intelectuais da Universidade de São Paulo, mais visivelmente, constituíam a vanguarda desse movimento, produzindo obras que até hoje são marcos importantes para quem deseja conhecer esse país.  A produção intelectual regional, exceções, naturalmente, de Gilberto Freyre, era sempre marginal e praticamente ignorada pela intelectualidade que sempre via o Brasil com as lentes do colonizador.
Hoje, viajando pelo Brasil e consultando a produção intelectual de cada região, percebemos que isso vem mudando. Não poderemos mais afirmar que a produção intelectual e o conhecimento do país concentram-se somente no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.  Atualmente é imensa quantidade de pesquisas, ensaios, literatura, jornalismo, arte, etc. produzidos em diversas regiões do país formando um imenso grande caleidoscópio que, na maioria das vezes, relativizam as grandes narrativas sobre o Brasil, não só com relação ao seu passado, mas, principalmente, a sua história contemporânea, ainda muito mal conhecida.
O historiador, sociólogo, antropólogo e outros cartógrafos, para usarmos uma linguagem de Deleuze e Guattari, que se aventurarem conhecer esse outro Brasil não podem mais desconhecer a realidade regional sob a pena de fazerem generalizações apressadas, como é freqüente no meio acadêmico brasileiro.
O livro mais recente do jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto é, hoje, leitura obrigatória para quem deseja conhecer de verdade o que acontece na polêmica região amazônica. 
O seu livro chamado Guerra Amazônica, não foi publicado dentro das cátedras universitárias, mas a partir de sua longa experiência como jornalista e sociólogo em uma região que se tornou centro de discussão nacional e internacional, não só por possuir uma das maiores florestas tropicais do planeta, mas por ser o palco de conflitos envolvendo grandes grileiros, madeireiros, posseiros, mineradoras e o próprio Estado.
Sediado em Belém do Pará, Lúcio publicou o livro em novembro de 2005, o primeiro volume, e promete a edição de um segundo, onde narra não somente os rastros da destruição (título de um de seus livros), mas os dilemas (muitas vezes trágicos) de ser jornalista numa região colonizada, onde a verdade e os fatos são normalmente ocultados pela pequena elite que dita ordens para a bugrada. Lúcio Flávio faz, como ele mesmo diz, um “jornalismo na linha de tiro (de grileiros, madeireiros, intelectuais, etc.& cia.)” e paga um preço alto por isso, pondo em risco a sua própria vida.
Hoje, aos 56 anos, várias vezes premiado, inclusive no exterior, seu instrumento de luta é o Jornal Pessoal, quinzenário de pequeno formato, com 12 páginas, dois mil exemplares, que circula em Belém, publicando matérias que jamais sairiam na chamada grande imprensa, principalmente a local, dirigida por duas família que manipulam informações toda vez que ferem os seus interesses e dos grupos dominantes.  Por sua intrepidez, Lúcio responde a 13 processos, simplesmente por revelar os bastidores da imensa máquina publicitária movida pela família Maiorana. Já foi violentado com truculência, não só simbolicamente, mas de fato, quando um dos donos do jornal O Liberal o agrediu covardemente em um restaurante em Belém do Pará, fato que teve repercussão nacional e internacional.  
Apesar dos atropelos e do preço que esse jornalista paga por exercer com dignidade e ética o seu jornalismo na região, o valor do Guerra Amazônica não se deve somente ao seu heroísmo e a demonstração evidente da ignorância e truculência das classes dominantes locais, cujos interesses se entrelaçam com grupos nacionais e internacionais. Guerra Amazônica tem o mérito de nos apresentar, sem rodeios, a versão não oficial dos fatos que compõe a história contemporânea da Amazônia.
O que o Lúcio faz com maestria é trabalhar com os fatos, checando-os,  testemunho-os, fazendo uma espécie de cartografia dessa guerra, seus atores, o desenrolar dos acontecimentos, desmontando evidências e fazendo aquilo que o sociólogo francês, Pierre Bourdieu, chamava de “desconfiança epistemológica”.
No futuro, quando algum pesquisador ou estudioso da Amazônia se debruçar sobre a história dessa região, não poderá desconhecer as informações fornecidas por Lúcio Flávio nos seus 40 anos de jornalismo nessa polêmica região, tão faladas, mas incrivelmente pouco conhecida. Neste livro, assim como outros que escreveu sobre os Projetos Jari e Carajás, assim como a coleção do Jornal Pessoal, temos hoje dados suficientes para repensar a ocupação dessa região.
O sociólogo paulista José de Sousa Martins, ao prefaciar um de seus livros, publicado pela Editora Hucitec, dizia com propriedade que Lúcio Flávio fazia um jornalismo sociológico que se diferenciava do jornalismo comum da grande imprensa. Não precisamos de muito esforço para perceber a veracidade dessa constatação. Lúcio nos oferece dados aos borbotões para compreendermos a complexa trama tecida entre o Estado e os interesses privados na região; os crimes de encomenda e seus mandantes, como o excelente trabalho jornalístico sobre o assassinato do ex-deputado pelo PC do B, Paulo Fontelles, em uma rodovia nas proximidades de Belém, matéria que recebeu uma premiação nacional de jornalismo.
 O livro Guerra Amazônica faz denúncias sérias, como dos presos que eram levados para “interrogatórios” de barco, à noite, para a Ilha de Cotijuba. Em outro momento relata com detalhes o assassinato de um “colunável” local que usava sua empresa de câmbio e turismo como fachada para o seu principal negócio: a cobertura do narcotráfico internacional, onde intermediou, em 1991, a “passagem de 100 milhões de dólares em cocaína para os Estados Unidos”.
Lúcio desvenda o mundo social da classe dominante local, um mundo aparentemente limpo que ocultava (e oculta) o submundo delinqüente, com tentáculos subindo aos patamares do poder e da chamada alta sociedade. Isso foi noticiado em uma época em que pouco se falava de lavagem de dinheiro nesse rendoso e próspero comércio ilegal de cocaína, cuja rota principal, como se sabe, passa hoje pela Amazônia.
O livro, também, torna evidente, através dos dados que oferecidos, como se dá na vida real a relação entre o “Brasil legal”, que a grande imprensa, na maioria das vezes, esconde, e o “Brasil real”, esse que se constrói nos bastidores das grandes negociatas, na delinqüência, onde o público e o privado se mesclam nesse submundo que movimenta bilhões de dólares e alimenta uma parcela da elite dominante local nas suas relações simbióticas com grandes grupos nacionais e internacionais.
O sociólogo ou historiador que um dia desejar escrever sobre a história da riqueza da elite dominante local não pode desconhecer a imensa quantidade de fatos, suficientemente checados e publicados, que esse jornalista nos oferece. A delinqüência que alimenta a história dessa riqueza regional, como o próprio autor nos diz, tem muitos “tentáculos” que nunca saberíamos pela “história oficial”, como, por exemplo, o rombo equivalente a 30 milhões de dólares que um ex-presidente do Banco da Amazônia, Augusto Barreira Pereira, deu na instituição, sob a convivência e o silêncio da grande imprensa local. Nem uma só linha saiu a respeito nos três jornais diários de Belém. Barreira era procurador de “O Liberal” e tinha apoio político do ex-governador e ex-senador Jader Barbalho, dono do “Diário do Pará”, comenta o autor, mostrando de que forma é costurada a cumplicidade entre os grupos dominantes locais.
Esses “tentáculos”, essas ramificações, são apoiados em muitas outras denúncias e compõem um grande painel fartamente documentado com fatos, números e personagens. O mais curioso (e trágico) é o desconhecimento e o silêncio cúmplice de amplos setores da sociedade local, o anestesiamento da consciência política, mesmo daqueles que têm conhecimento dos fatos narrados pelo autor.
Lúcio Flávio não é o Asterix na sociedade local, como o caricaturou um jornalista paraense Palmério Dória, que reside em São Paulo. Sua perseguição é o ônus que paga por ir contra a corrente dessa cultura da delinqüência que paradoxalmente adquiriu formas mortíferas mesmo nesse período de aparente democracia em que vivemos.
A gratidão e o reconhecimento de seu trabalho não se dá nos salões por onde circulam os delinqüentes de colarinho branco, com sua jagunçada pronta para qualquer “serviço” de seus mandantes. O que o torna uma figura ímpar no jornalismo brasileiro e uma figura singular, merecedora de respeito, simbolizado nos prêmios nacionais e internacionais que tem recebido na sua trajetória como jornalista, é sua capacidade de indignação, aliada ao seu compromisso ético inquebrantável de ser jornalista e sociólogo, mesmo no meio da promiscuidade da classe dominante, o que não é uma tarefa, diga-se de passagem, para qualquer um. Escrever uma história diferente desse enredo oficial, diz ele em seu livro, que desenvolve a região subdesenvolvendo-a, não é nada fácil.
 Se a sua inspiração é o jornalismo desenvolvido pelo americano I. F. Stone, no semanário I. F. Stone’s Weekley, que publicava desde 1952, “um jornalzinho feio e pobre”, mas lido até na Casa Branca, que também escrevia uma história diferente do “enredo oficial”, tudo bem, esse é seu ideal do que seja jornalista. Mas só esse modelo de Stone não caracteriza Lúcio nessa Guerra Amazônica.
 A América do Norte é radicalmente diferente de nossa América Latina, onde jamais um presidente da república lê um jornalzinho “feio e sujo”. Os “coronéis”, os de barranco, ou os novos ricos metidos em jogadas escandalosas, roubando os cofres públicos, os caciques formadores de opinião, talvez façam o contrário da classe dominante americana: os jornalzinhos “feios sujos e malvados” têm um destino trágico: vão direito para a latrina ou vão caçar quem comete essa ousadia, como fazem os Maioranas em Belém do Pará.
 Não estão interessados no conhecimento, no debate livre, ideal que a sociedade moderna e burguesa parecia idolatrar. São iconoclastas e predadores não só na Amazônia, onde a guerra é cruel, mas em todas as regiões do Brasil, como aqui na região Nordeste, onde a classe dominante local constrói uma universidade particular, funcionando, como ironiza o economista e sociólogo Chico de Oliveira, a gás butano, e paga salários miseráveis para os educadores que vão formar seus próprios filhos. O iluminismo não chegou por essas plagas. O  tempo da onça não está longe daqui, como dizia a filósofa paulista Olgária Matos em um de seus artigos.
Quando fui aluno de graduação em Ciências Sociais, na PUC de São Paulo, lá pelos finais dos anos 70, conheci um sociólogo que anda meio sumido. Recordo-me que de vez em quando, durante as férias, se embrenhava pelos “fundões” do Brasil. Lúcio conheceu esse professor, era o Luiz Alfredo Galvão, que também ministrou cursos na Faculdade de Sociologia e Política, onde Lúcio estudou. Ele, que conhecia o marxismo e o leninismo ortodoxo, principalmente o da III Internacional, versão PCB, que chegou na terra brasiliense. Fazia uma exegese cáustica (e crítica)  (para irritação dos esquerdistas ortodoxos) de certa versão do marxismo tupiniquim tão idolatrado na época. Seus argumentos eram bem fundamentados e provocativos e gostava sempre de dizer que sociólogo e antropólogo não conhece o Brasil, nem como turista nem como estudioso de sua sociedade. Enquanto tomavam como modelo a revolução russa e os escritos de Lênin desse período, desconheciam por completo o solo onde estavam pisando.
Lúcio revela neste livro um pouco de seu desejo quando ainda estudava na Faculdade de Sociologia e Política: estudar os intelectuais de 20 e 30 chamados de direita: Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Lourival Fontes. Todos atentos a Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda (...), incluindo Gilberto Freyre, que conheciam o Brasil melhor dos que os de esquerda. Os pensadores conservadores, como Paulo Prado, conheciam o Brasil melhor que os de esquerda.
Ele já compreendia o valor da polêmica como oxigenador da democracia. Influenciado por seus mestres menos ortodoxos, sabia que o sociólogo, sem o contato com mundo social onde está inserido, torna-se um acadêmico burocrático, estéril, para não dizer inútil. Creio que essa insatisfação com a sociologia de gabinete, copiada, muitas vezes, de modelos teóricos de outros continentes, não daria conta de explicar a realidade do país e da região onde estava inserido, por mais sofisticada que essas teorias se apresentassem. Como dizia o Luis Alfredo Galvão na época: não se faz sociologia sem dados empíricos, sem um conhecimento do Brasil. Temos que tirar a bunda das cadeiras e conhecer esse país, dizia ele nos fazendo dar boas gargalhadas.  
Suponho, portanto, que esse período em São Paulo, em que Lúcio transitou com desenvoltura entre a sociologia e o jornalismo e, posteriormente, o contato com o trabalho de Stone, foram elementos fundamentais para que decidisse mergulhar na realidade amazônica, tarefa que desenvolve com grande inteligência e desenvoltura excepcional. Sua ousadia, ou para alguns, a sua loucura, tem método, como dizia o poeta inglês.
Ele revela isso claramente na página 26 de seu livro, quando de forma cáustica nos diz:
O brasileiro continua a viver como caranguejo, arranhando o litoral, para usar a imagem quinhentista. É sempre o pensamento do litoral voltado para fora do Brasil. O Brasil não conhece o Brasil. A penetração para o Oeste, mais destrói do que conscientiza. A descoberta do Brasil não passa de movimentos espasmódicos e cheio de exotismo. É o fundador, o descobridor querendo que a passagem original se transforme de acordo com sua visão de colonizador. Isso me levou a desistir da grande imprensa, que, segundo ele, é muito pior do que na época do regime militar.     

Lúcio Flavio é um obstinado e tem plena consciência do trabalho que faz e da contribuição que presta ao Brasil e à Amazônia, particularmente. Atualmente duela com a máquina judiciária em Belém do Pará, envolvendo-se no emaranhado desse “poder terrível”, onde, mesmo sendo réu e respondendo a dezenas de processo, consegue ter a lucidez de por em prática sua capacidade analítica, conforme podemos verificar ao ler seu livro. Acaba fazendo, na prática, uma espécie de “genealogia do poder judiciário”, para usarmos uma expressão foucaultiana, nos mostrando como funciona essa terrível máquina de triturar chamada Justiça, com suas engrenagens, suas armadilhas e sutilezas muito mais terríveis do que aquela vivida pelo personagem de Franz Kafka em O Processo.
É admirável e polêmico o livro de Lúcio Flávio Pinto. Conheço poucas regiões onde existam jornalistas dessa extirpe e com tamanha ousadia e inteligência. Se em cada lugar do país existisse jornalista como ele, teríamos parte importante da história não oficial do Brasil contada e perceberíamos com mais clareza como é tecida a dominação de classe, sem generalizações apressadas e teorias fora do lugar.
Vivo atualmente no Ceará, apesar de ser paraense. Em Fortaleza, dois grandes jornais controlam as informações no Estado. Imagino a falta que faz um jornalista com o perfil desse sociólogo-jornalista. A história dessas duas regiões ainda está para ser contada. O paraense tem sorte, pois tem uma quantidade de dados em suas mãos e trata de escrevê-la, pois assunto não falta. Um outsider na imprensa cearense faz muita falta e, por isso, dormitamos no silêncio cúmplice de governos que se dizem democráticos no meio de uma imensa miséria rural e urbana.
O Nordeste e Norte são irmãos, pois possuem histórias em comum. Somos caboclos descendentes de índios; somos, como Lúcio, filhos de migrantes fugidos da seca em busca de Eldorado que começou a ser devastado e que já vem experimentando, também, a seca.
A Guerra Amazônica é a guerra de todos nós, a luta de classe demonstrada sem rodeios e escancarada para os cidadãos que vivem nessa frágil democracia, sem sociedade civil consciente e organizada. O tempo dirá que destino teremos: o eterno subdesenvolvimento? 
Guerra Amazônica nos traz muito material para discussão e pesquisa. É um livro imprescindível para qualquer pessoa que crê na possibilidade de mudar esse país.
   

PINTO, Lúcio Flávio. Guerra Amazônica, Edição Jornal Pessoal, Primeiro Volume, Novembro de 2005, 300 páginas.

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