quinta-feira, 16 de agosto de 2012

RELATIVIZANDO E AMPLIANDO A IDÉIA DE RESISTÊNCIA NA PRAÇA DA SÉ


Maria Lúcia Montes, Filósofa, Antropóloga, professora aposentada do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da USP
                
 


Antes de qualquer coisa, gostaria de dizer no início que minha fala sobre a Praça da Sé que não sou uma testemunha ocular, como o do Fúlvio Abramo. Eu sou totalmente urbana, um bicho metropolitano. Além dos mais, trabalhei num escritório na Praça da Sé, hoje ocupado pelos padres franciscanos e dominicanos (foi o escritório de uma organização não governamental chamada RENOV, dirigida, na época, pela professora Maria Nilde Miscelani, escritório que se manteve nos mais duros anos da repressão).
Era a época que nós nos encontrávamos para organizar projetos, textos para o movimento de saúde, etc. Minha visão, portanto, era de quem estava no sexto andar de um prédio na Praça da Sé.
Quando eu fui convidada para participar desse debate hesitei, de certo modo. Fiquei um pouco dividida. Por outro lado, estava totalmente entusiasmada com a idéia de um Conselho de Cidadania da Praça da Sé, dado o meu amor e fascínio por essa Praça com a qual eu convivi durante uma parte de minha vida.
Fiquei pensando na beleza que poderia ser um seminário onde pudéssemos refletir sobre os problemas da praça. Por outro lado, alguma coisa do título dessa discussão de hoje me incomodava. Havia alguma coisa meio altissonante: “espaço de resistência”? “Que resistência”?
 É bom dizer para vocês que fui l5 anos cientista política, virei antropóloga e, ao longo dos anos, comecei a duvidar das evidências tipo “resistência”. Antes nós sabíamos o que era resistir, sabíamos quem resistia. Aí vem a velha questão perguntada pelos índios : “nós quem cara-pálida ? “
Na verdade o que nós estamos querendo dizer quando nos referimos à resistência na Praça da Sé?
A minha hesitação é porque eu sinto que existe um pressuposto por trás que não batia com a experiência heróica, mas a experiência com o cotidiano. E esse cotidiano era mais variado, mais confuso, muito mais difícil do que os marcos da chamada grande história do país que se passa, em parte, na Praça da Sé. Se eu fosse pegar o tema pela evidência mais imediata que ele suscita eu iria falar exatamente desses marcos históricos de que o Fúlvio e o Roldão falaram. Acho que temos que ver a dimensão simbólica desse espaço público que, não por acaso, é pensado como o marco zero da cidade .Espaço que é  o começo da vida da cidade e que, portanto, pode ser pensado como depositário da esperança de recomeço. Por excelência, é o espaço central da cidade.
Não é por acaso que esse espaço é ocupado cada vez que o povo, representante da “nalção” que vai lá e se vê. É essa a Praça da Sé do Movimento do Custo de Vida, como o templo do operário Santos Dias da Silva, sacrificado no tempo da ditadura. É evidente que também é o espaço das Diretas-Já, da triste derrota da emenda Dante de Oliveira e muitos outros acontecimentos. Esse é o espaço que o povo ocupa.
A Praça da Sé é também o espaço dos comícios e passeatas em épocas de disputa eleitorais. Não podemos esquecer o fato passado em que o PT e o PDS disputavam o privilégio de aparecer na Praça. Com a consciência, certamente, de quem diz que quem fala por último na Praça da Sé tem o direito de reivindicar maior legitimidade para o sonho de sua proposta política, numa espécie de comunidade de ideais que será ratificado se eu tiver a maioria dos votos populares. É uma variante desse tema sobre esse espaço público que, por excelência, está colocada a Praça da Sé.
Eu diria que uma terceira variante dessa discussão da Praça como espaço público está nas passeatas, nas manifestações, comícios, etc. que acontecem cada vez que algum setor da sociedade, alguma categoria sócio-profissional se encontra em algum tipo de disputa sócio-econômica mais ou menos corporativa, mais ou menos geral. É o momento em que a gente sente que tudo deve desaguar em atos públicos na Praça da Sé. São os estudantes protestando contra o aumento das mensalidades das escolas, até as grandes greves metalúrgicas.
Era o cenário, também, das greves dos colarinhos brancos, delegados de polícia, bancários e outros setores da sociedade. Tudo isso tem a ver com a conjuntura de maior liberalização que dilui ainda mais os limites não muito claros entre o público e o privado que separam a vida política desse país. De repente, como a praça é do povo, eu sou povo, tomo a praça inteira. Todas essas coisas são as intenções evidentes do significado propriamente político da resistência da Praça da Sé.
Quando eu comecei a virar antropóloga passei a desconfiar das versões evidentes do que era política e do que era resistência, porque eu comecei a me dar conta que existem outras dimensões da vida social, e, inclusive, do espaço urbano, que a gente tem que entender para começar a ampliar um pouquinho esse conceito de resistência, que nem sempre anda na direção de uma definição triunfalista, de política prévia, que é que comanda a memória dos grandes eventos da história nacional associados à Praça da Sé.
Para quem pensa o espaço urbano do modo como um antropólogo pensa é um pouquinho mais complicado falar do que seja resistência que se encontra na Praça da Sé. No fundo, é claro, existe uma dimensão política, essa dimensão social da crise, a dimensão urbanística de degradação do espaço público. Mas as coisas começam a se complicar quando a gente vai percebendo as dimensões que estão se sobrepondo, mais do que a gente cortar em fatias, bonitinhas, e imaginar que é possível recompor a totalidade do significado da Praça. Porque, na verdade, o antropólogo se propõe perceber como essas dimensões se integram de uma maneira singular de tal maneira que dá unidade a um conjunto de manifestações, de práticas, de símbolos, valores, etc. de um jeito específico, embora muito comum nas grandes metrópoles. Tenta perceber como é que essas coisas se conjugam para criar uma praça que é o marco zero da cidade de São Paulo. Não é juntando a dimensão social, a dimensão econômica e política que vamos ter o retrato da Praça. Ela é tudo isso e muito mais. É uma síntese dessas coisas todas, enquanto um sistema cultural; uma pluralidade de sistemas e culturas se vocês entenderam por cultura um mapa, um esquema de leitura sobre o modo de interpretar a existência, a experiência humana na vida das pessoas que vivem dentro de determinadas práticas sociais.
A antropologia, na verdade, ensina que o espaço, assim como o tempo, são, rigorosamente, condições de experiência de vida dos seres humanos. Quer dizer, não há nada que aconteça na vida dos homens que não seja enquadrado dentro do espaço e do tempo. Porém, o espaço e o tempo são categorias construídas. Espaço urbano, portanto, é uma categoria específica, um modo específico de experienciar e vivenciar o mundo, que é diferente, por exemplo, da experiência que o sujeito tem quando mora na roça, no campo. O espaço para ele tem outro sentido, muito diferente para quem vive no espaço urbano de uma metrópole.
 Na verdade, a maneira mesmo em que é delimitado o traçado das ruas, o fato da cidade se elevar verticalmente e se expandir em direção à periferia, o modo como são rasgados o espaços vazios chamados de praças, avenidas, ruas, a distribuição dos equipamentos, etc. mostra que não existe um espaço dado pela natureza. Foi o homem que traçou as ruas, que abriu a praça; foi uma decisão política que permitiu a construção dos gabaritos das construções; foi a briga com um determinado espaço que permitiu que ele fosse apropriado como espaço de lazer.
O espaço, nesse sentido, é uma construção da cultura através da experiência do homem. É por isso mesmo que, na própria configuração do espaço, é possível ler a dimensão simbólica que o habita. Essa dimensão, na verdade, traz a marca do poder, a marca dos conflitos que se travam pela definição num plano simbólico tanto do uso como do significado de uma determinada porção do espaço urbano que a gente chama de rua, praça largo, jardim, etc.
O Roldão dizia a pouco que sempre havia uma briga para saber quem comanda a Praça. Na verdade, sempre houve briga. E não preciso ser briga entre o povo e a polícia. Na Praça da Sé todo o dia existe um camelozinho tentando se instalar e que, também, está brigando pelo espaço ligado ao poder. O poder pode legitimar ou não. A Regional da Sé tem que dar conta de que esse carinha que se instalou lá também está disputando um espaço.
Estou tentando trazer a dimensão política não como uma coisa que se encontra fora da grande vida social, mas como um elemento constitutivo da organização desse mesmo espaço da cidade que é a Praça.
Na verdade, essas categorias se definem como contraponto. Por um lado nós temos a definição dos limites entre o público e o privado - a casa e a rua, o subúrbio e o centro, as periferias e os bairros nobres. O pedaço a alguém. É uma dinâmica mais ampla: o dentro e o fora, o nós e o deles.  
O que eu estou querendo dizer é que o espaço não é apenas limites espaciais, mas são fronteiras de práticas sociais. São, na verdade, trajetos de relações sociais; traçados de relações sociais; trajeto da vida das pessoas. Eu passo na Praça da Sé porque eu tenho que ir de um lugar para o outro. Troco de metrô, eventualmente vou à farmácia comprar um remédio homeopático que está na frente do metrô... Quer dizer, os trajetos são fronteiras que as pessoas, em função de interesses diversos, em função de valores e situações determinadas acabam por configurar redes de sociabilidades. Redes que se cruzam no espaço público e que tem muito a ver com sentimentos, com valores, interesses, carências, projetos que definem a experiência de vida de uma multidão de gente.
No fundo isso constrói a urdidura e a trama de um arsenal de práticas de referências simbólicas que são vividas em comum e que caracterizam diferentes formas de pertencimentos ao espaço da cidade. É por isso que nessa lógica das categorias se constroem os espaços públicos.
Existe também uma categoria específica que os antropólogos usam que é a categoria do corte. Isto é, aquela zona de ninguém, onde ninguém se diz proprietário no sentido de dizer que é lá o lugar onde eu fico. Lá, na verdade, é um lugar de passagem e esses lugares são pensados em todos os espaços urbanos. Lugar de trânsito, de passagem, de perigo, da sujeira, lugar da impureza ... Vocês sabem por que eu estou dizendo isso. Porque das imagens da Praça da Sé, entra uma leitura que revela um corte: a zona, o abandono geral dessa  terra de ninguém, invadida pelos  bandidos,  pela  escória, pelo lixo, pelo resto da sociedade  que nós, cidadãos decentes devemos recuperar.
Diria que isso é uma categoria classificatória da experiência do espaço público. Se for assim para aqueles que transitam pela Praça, não é assim para aqueles que se definem e se vêem como pertencentes ao pedaço. A Praça da Sé, ao modo deles, é uma zona absolutamente rica de experiências e possibilidades de vida que eles têm que conviver no seu cotidiano. Sem falar das experiências dos meninos, que eu acho uma coisa maravilhosa...
Quer dizer, o mito que se cria em torno da Praça da Sé leva a imaginar que esses meninos e meninas são uma tragédia social. E, no entanto, vamos ver como esses meninos, dentro da carência absoluta, são capazes de reinventar um significado para o modo como eles vivem na Praça, criando estratégias de sobrevivência em conseqüência das condições absolutamente marginal a que eles estão relegados dentro da vida social.
Para quem vive no pedaço, para quem circula na Praça, para quem faz parte da lógica cotidiana, ela, na verdade, significa uma série de coisas. É aí que é possível pensar as categorias classificatórias pelas quais se articulam as interpretações do espaço urbano de um lado e, por outro, compreender como é que se constroem as significações. Esse é um dado essencial para a gente repensar a questão da resistência que foi colocada como tema desse seminário.
Para além dessa visão da Praça da Sé, que implicitamente vi na formulação do tema, para os que vivem na Praça isso acaba sendo outra coisa. Se eu pensar que o centro não se define sem uma periferia, a Praça poderia ter outro sentido de resistência para aqueles moradores pobres da zona leste, da zona sul, etc. que aos domingos, às 18 horas, vão assistir a missa celebrada pelo Cardeal-Arcebispo que a celebra em pessoa com toda a pompa que cabe nessas circunstâncias. Eles vão para lá ouvir o pastor dizer às suas ovelhas: “vocês são pobres, humildes, mas vocês têm direitos.” É fundamental que, do lugar central da Praça, o povo ouça isso para que comece a acreditar que ele realmente tem direitos.
O fato é que há muito sentido de resistência nesse sujeito que atravessa a imensidão da cidade para chegar a uma missa às seis horas da tarde. Ele está aprendendo que pode ser dono da cidade, pode ser cidadão pertencente a essa cidade. Alguém que, na cidade, não é escória, mas alguém que tem direitos. Para isso eu tenho que pensar não com essa coisa que é o marco de extensão da vida política brasileira, mas pensar numa categoria que lhe faz o contraponto.
A Praça da Sé é muito mais do que isso. Considerando-a como cruzamento de trajetos que se ligam, é também uma enorme rede de sociabilidades que se emaranha no tecido do espaço social. Ela é certamente seu pórtico para o usuário apressado do metrô, para aquele sujeito que passa, atravessa correndo; para a madame que saiu de sua casa para resolver ou comprar alguma coisa no centro da cidade.
No imaginário dessa gente um menino é um trombadinha em potencial. Pode ser que elas tenham toureado muito e essa lógica da aventura tenha se tornado muito ativa. Mas, como eu disse, vivi sete anos freqüentando a Praça da Sé e convivi com os moleques, tranqüilamente comendo seus sanduíches comigo. Quer dizer, nem todos são perigosos, trombadinhas, como certa visão tenta rotular e homogeneizar. Pode ser que sejam para os usuários que passam na Praça. Para o sujeito que está lá há uma regra de convivência. Não são escórias, o lixo, como o acusam.
Esse é o lugar, portanto,onde se traçam estratégias de sobrevivências, de vida. É um espaço terrível, onde a rua é a única coisa que eles conhecem. É o lugar onde as únicas redes de sociabilidade e de solidariedade que eles podem contar são tecidas quotidianamente. Dessas redes fazem parte, em primeiro lugar, seus pais, mas fazem parte também muitos outros agentes governamentais ou de igrejas que tenham sensibilidade para falar com esses meninos, não como resto, mas como alguém que, nas condições terríveis de miséria e marginalidade, está bravamente tentando reconstruir um sentido para a existência. É por isso que nós, do pedaço, pudemos ser assimilados por esses meninos como parte de sua paisagem.
Para concluir, eu diria mais: a Praça da Sé é um espaço público que devido ao modo como a sociedade brasileira se organiza, dado a violência que a caracteriza, se transforma em espaço de sobrevivência privada das pessoas. Quer dizer, nós estamos acostumados a pensar que na sociedade capitalista cada um tem que se virar como indivíduo no mercado de trabalho para garantir o seu sustento. Ora, aquele que não têm o seu sustento garantido pela sociedade, que são jogados para fora da vida social, só é dado a alternativa de se servir do espaço público como condição de sobrevivência.
Aí a gente entende o sujeito que vende ervas, que diz que foi buscar com os índios, o camelô propriamente dito, aquele que fica na esquina, vende bugigangas variadas, coisas inúteis e, muitas vezes, absolutamente retrógradas, como aquele famoso espelhinho redondo, que é a única coisa que ele tem para passar brilhantina no cabelo. Tem os que vendem os radinhos de pilha, o brinquedo de corda. “Novidades, mercadoria trazida do Paraguai.”- dizem. E vão levando...A Praça da Sé, para eles, é condição de sobrevivência ...













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