terça-feira, 14 de agosto de 2012

VOCÊ GOSTA DE LER? NÃO? NÃO SABE O QUE ESTÁ PERDENDO



Benedito Carvalho Filho

Tem muita gente (uma minoria, certamente) que está intoxicada de tanto ler, seja Kant, Goethe ou Nietzsche. Os intoxicados certamente estão de saco cheio. Certamente leram obrigados. Tinham que passar de ano, fazer prova ou qualquer outra obrigação. Outros ouviram falar desses filósofos e poetas, como no caso de Goethe, por exemplo. É moda. Ouviram um comentário de amigos e amigas no bar e lá foram eles ler. Não conseguiram compreender as primeiras páginas. Veio a reação de ojeriza.
Por que certas pessoas sentem essa reação diante da leitura?
A resposta parece simples. Em primeiro lugar existem aqueles que raramente lêemm, como a maioria dos brasileiros, segundo as últimas pesquisas publicadas e comentadas pela mídia nativa. São os leitores abstêmios, avessos à descoberta de Gutenberg, mas afinados com os textos do Facebook, ou consultores de Google, onde  copiam textos para fazer seus trabalhos universitários.  
Em segundo lugar temos os que lêem por obrigação. Aqui a UFAM está cheia desses personagens. Mas é bom advertir: esses pressionados leitores não lêem o livro (eles estão muito caros, dizem), mas os fragmentos dos livros fotocopiados, que, ao contrário do que dizia Roland Barthes, não geram discursos amorosos, mas aversão. Lêem para fazer fichamentos (que palavra horrível! Já pensou fazer fichamento dos autores citados na tira acima?).
O destino desses fragmentos de livros é o armário caseiro, e, com o tempo, vão-se  apagando as letras  e o leitor não sabe de onde foi retirado aquele capítulo e joga-o sem piedade no lixo. Esse tipo de leitor é pragmático; raciocina no ritmo daquela expressão do finado Chico Anísio: vapt vupt! É a era, antecipada por Walter Benjamim, da reprodução técnica, antes mesmo da invenção da Xerox.
Por isso, o que se vê por aqui são as salas da reprografias lotadas e as livrarias e bibliotecas desertas. Os livros mais usados estão no matadouro da reprodução.
O terceiro tipo de leitor parece ser um tipo em extinção, não por intoxicação, como parece revelar a tira acima, mas por ser um tipo raro. Sua relação com o livro não á a mesma dos dois tipos anteriores, uma relação pragmática ou quase nenhuma.
O livro é uma caixa sedutora de mistérios, de curiosidade, um companheiro com quem ele dialoga nos seus momentos solitários. Aliás, esse tipo de leitor nunca está na solidão, pois conversa com os poetas e escritores, os mortos que nunca morrem porque deixaram as suas marcas no mundo; codificaram e transformaram sentimentos em letras, frases, períodos, e, por isso, são imortais.
Ler autores como Dostoiévski, por exemplo, não algo que provoca sofrimento, dor, nem tem um objetivo pragmático. Sofre com Raskólnikov e percebe o que ocorreu na sociedade russa da época. Entra no texto e se encanta por sua estética. Saboreia cada capítulo. Ri, chora, identifica-se com os personagens, dialoga com eles.
Esse tipo de leitor normalmente foi acostumado desde criança a ter o contato com o livro. Certamente nasceu numa família, ou sofreu a influência de alguém próximo, que gostava de ler e, por contágio, passou a gostar do livro, seu companheiro. Aconteceu, por exemplo, de seu pai, sua mãe ou parente, possuir uma pequena biblioteca e numa relação quase epidérmica com aquilo foi descobrindo um mundo encantado dos livros.
Quando o amor por esse misterioso objeto se torna uma paixão ninguém segura. Por isso mantém o que poderíamos chamar de relação erótica com esse objeto encadernado, com seu cheiro, com sua cor, o formato de suas letras e sua apresentação. Conheço leitores que memorizam um livro pela cor, pelo cheiro, enfim, pela forma do livro, o seu layout, como se diz. Alguns sabem até a página e os capítulos onde se encontra um texto que está procurando, por incrível que pareça. Nessa pequena turma estão os bibliófilos, cada vez mais raros, especialmente no Brasil.
Neste país e no mundo há histórias folclóricas de homens e mulheres que amavam os livros. Tem até uma filme sobre isso, A Leitora. Recordo de uma delas: um professor erudito, como o Maurício Tragtenberg, que amava os livros e encantou algumas gerações, uma vez recebeu um dinheiro de sua esposa, uma artista, para comprar uma geladeira. Maurício, quase por instinto, rodou pela cidade de São Paulo, cheia de livrarias, principalmente de “sebos” e chegou em casa com várias sacolas abarrotadas de livros, para a exasperação de sua mulher desesperada, mas que depois riu do “menino Maurício”.
Outro caso foi contado por Antônio Cândido no depoimento que deu em um belíssimo vídeo sobre a vida de Sérgio Buarque de Holanda.
A família dele vivia numa modesta vida paulista de classe média e sua esposa, Dona Amélia, controlava as despesas. O professor quando chegava em casa abarrotado de livros usava uma artimanha para burlar o controle de D. Amélia. Ao invés de entrar logo pela porta da frente de sua casa contornava pela lateral e entregava as sacolas de livros para a empregada. Depois retornava e entrava pela porta da frente.
Todos os dois, tanto Maurício como Sérgio, eram movidos pelo princípio do prazer, o prazer pela leitura. Não recordo bem quem disse uma frase que ficou gravada em minha memória (talvez tenha sido Sigmund Freud)  mais ou menos assim: “quando se tem uma paixão para descobrir o mundo vende-se até o piano e móveis da casa.”. Por favor, não levam essa metáfora ao pé da letra.
Um personagem brasileiro com quem tive a felicidade de conviver um pouco foi o educador Paulo Freire. As palavras o encantavam; ele as saboreava como quem saboreava um bom vinho. Tinha uma relação de amor para com elas, pois o faziam descortinar outros mundos, outros seres encantados. Indignava-se com o analfabetismo, que achava uma violência para com os pobres, pois dizia que lhe roubava a cidadania, o direito universal de participar do mundo simbólico com toda sua beleza e mistério. Sofria com essa sonegação da sociedade capitalista e dizia que a impossibilidade do indivíduo entrar nesse mundo era uma verdadeira castração indesculpável.
Mas ele também sabia que ler o mundo (veja seu livro sobre a leitura, O ato de ler) não se dá só pela leitura de uma brochura chamada  livro. Os seres humanos, nas suas formas e situações mais variadas estão constantemente lendo o mundo, como os personagens de Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas. Mas algo lhes é sonegado: a história registrada dos antepassados sobre o mundo, o que só se pode fazer quando se tem acesso ao registro daqueles que viveram antes de nós.
Portanto, alunos, colegas e conhecidos, aprendam a ler. Vocês não sabem o que estão perdendo quando menosprezam os livros. Tornamo-nos zumbis, sem memória, sem passado, sem referências. Por isso, morremos um pouco quando não nos permitimos ter acesso aos livros. Não de forma burocrática deformada pela academia, como vem ocorrendo, mas cultivando o prazer de ler nos alunos. Isso exige certamente outra pedagogia e não essa prática bancária de que nos falava o velho mestre da Pedagogia do Oprimido, muito lido, mas pouco seguido nesses rincões.


Nenhum comentário:

Postar um comentário