terça-feira, 14 de agosto de 2012

O QUE ESTÁ EM JOGO É A GRILAGEM, ESTÚPIDO!

                                 
Benedito Carvalho Filho

Acabo de ler o Dossiê Jornal Pessoal nª 1, de março de 2012, chamado Grilagem – A pirataria nas Terras da Amazônia, publicado pelo jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, de Belém do Pará.
São 75 páginas, onde o leitor pode tomar conhecimento de forma  detalhada dos acontecimentos que vêm se desenvolvendo ao longo desses longos anos, registrados agora nessa publicação, onde é possível perceber os meandros em que o jornalista está envolvido na justiça e os rocambolescos antecedentes que estão por trás das grilagens de terras no Xingu, Pará.
O estopim que o levou a fazer essa publicação foi a denúncia da tentativa de grilagem de 5 milhões de hectares de terra , cujo chefe maior foi o empresário Cecílio de Rego Almeida (já falecido), proprietário da Construtora C.R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, sediada em Curitiba, Paraná.
Esse fato já foi relatado nacional e internacionalmente em blogs, revistas e gerou debates acalorados durante o final do mês de fevereiro e início de março.
A leitura das 75 páginas do Dossiê provoca uma sensação estranha, para não dizer macabra, do que ocorre nos kafkianos corredores do judiciário paraense. Seus rituais, a linguagem jurídica dos processos, os procedimentos de seus agentes (advogados, juízes e juízas, desembargadores e tantos outros atores), mostra-nos que o poder é algo que funciona através do discurso, porque os discursos são elementos ou bloco de táticas no campo das relações de força, como diria Michel Foucault.
Sim, porque os discursos, as tramas dos processos, como se pode perceber, não são neutras, mesmo quando dizem estar em busca da Verdade. [1]
O judiciário, como claramente podemos perceber no Dossiê, é um lugar de disputas, camuflado pelo discurso da transparência, da argumentação racional, cuja intencionalidade aparente de seus operadores é a busca da verdade e da justiça, quando na verdade o que se percebe são as práticas e discursos de Juízes e juízas venais e antiéticos convivendo com outros que acreditam na imparcialidade da justiça, que, como se diz vulgarmente, tarda mais chega (e parece nunca chegar, mesmo!) Enfim, como se percebe, lendo as matérias do Dossiê é nítido o jogo de interesses, a delinqüência convivendo com pessoas corretas, íntegras, sofrendo violentas pressões de todos os lados.
Na página 45, onde o jornalista narra como se deu a sua condenação (No fim de tudo, a condenação) temos a descrição detalhada da “racionalidade” que acompanhou o julgamento: os desembargadores decidiram sem sequer consultar os autos do processo, desrespeitando o rito processual. Veja no Dossiê, por exemplo, os procedimentos de juízas e juízes e desembargadoras.
Como observa o jornalista: O processo judicial se tornava, dessa forma, uma farsa e um instrumento a serviço dos mais ardilosos propósitos, por isso mesmo inconfessáveis, já que o conteúdo dos autos não era adequadamente examinados pelos  que impulsionavam o processo judicial. Os pressupostos que tornaram uma ação apta deixaram de ser preenchidos e o contraditório resvalou das normas jurídicas para o mundo do “non-sense”, transformando os autos numa peça mais de acordo com o mundo de Alice no país das maravilhas do que com a tutela jurisdicional. E tinha que ser condenado. De qualquer maneira. Mas não seria tão fácil assim. Haveria outros personagens na história.
Eis aí bem evidenciado a intencionalidade dos que julgam o processo: condenar, esconder-se através do discurso jurídico. Não se trata de um mundo da Alice nem de um non sense, mas de uma estratégia, de um ardil, onde a única finalidade era condenar, silenciar o réu e, se possível, aprisioná-lo para que não mexa na ordem das coisas.
Esse Dossiê publicado pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto é, também, um rico material para os cidadãos, pesquisadores, juristas e tantos outros intelectuais possam uma dia se debruçar sobre o material com mais acuidade e criticidade.
Nesse importante documento podemos encontrar as formas pelas quais as terras são apropriadas; a grilagem com suas velhas e novas estratégias e facetas (ou espertezas); as alianças dos operadores da justiça com os chamados grileiros (ao ponto de criarem, como podemos perceber no Dossiê, “donos de terra” que são personagens de propriedades que não existem; fantasmas criados pelas tramas fantasmagóricas desses operadores da justiça, ágeis, espertos e sem escrúpulos).
Lúcio, como sociólogo-jornalista, esboça na apresentação desse material, o oportuno pano de fundo que articula toda essa trama: o avanço da fronteira agrícola e as frentes de expansão, quando o Vale-do-Araguaia-Tocantins serviu, como ele diz, de porta de entrada do Brasil na Amazônia, fazendo com que as terras se tornassem mercadorias, ou, como dizia José de Sousa Martins, reserva de valor; as mudanças na paisagem, transformando 20% da Amazônia em savanas no momento em que a pata de boi chegou à região. Enfim, seguindo o rastro do saque (título de um de seus livros) o jornalista traça a cartografia humana, social e geográfica da última fronteira do Brasil, denunciando e informando o que vê, ou, como ele diz: procurando alertar a sociedade sobre esses problemas, colocando-os diante dos fatos e dos verdadeiros contextos, escamoteando as falsas explicações, os argumentos maliciosos, as versões utilitárias.
Com isso o jornalista revela o sentido e a dimensão de seu trabalho como jornalista e sociólogo, nos mostrando que não se trata de uma birra pessoal ou um denuncismo vazio, a denúncia pela denúncia com o objetivo de destruir pessoas, como muita gente pensa, ao dizer, por exemplo, que seu conflito com os maioronas é uma briga de família, como as brigas de família no nordeste.
A sua opção é profundamente política, não no sentido partidário, mas de um cidadão-profissional comprometido com seu país, em especial com a Amazônia. Mais, ainda: percebe-se que seu compromisso é com a história, com o futuro da Amazônia, com uma região menos desigual. Por isso exerce um papel importante ao desvendar o que quer permanecer oculto pelos que denegam a realidade. Creio que a publicação desse Dossiê teve essa intenção.
Também era inevitável que diante dessa realidade dramática, conflitante e explosiva, como é o atual contexto amazônico, Lúcio teve (e tem) que pagar um preço, como os inúmeros processos que responde na justiça paraense: processo de grileiro, porque chamou o empresário de pirata; processo dos donos da maior rede de comunicação no Norte do país, filiada à Rede Globo de televisão que se pretende dona da opinião pública paraense e tantos outros.
Na verdade, conscientemente, se meteu num vespeiro e duela como um hábil jornalista que sabe apurar os fatos, que desconfia das falsas versões, age com ética e conhece os seus limites. Fico impressionado com o jornalista pela forma como domina o jargão jurídico, seu conhecimento do ritual processual, um ganho colateral que sua inteligência privilegiada lhe permitiu adquirir nos embates, certamente.
Por que seus adversários o odeiam tanto? Acho que o que mais gera ódio nos seus adversários, principalmente aqueles que fazem tudo para que suas deliquências permaneçam escondidas, é a impossibilidade de refutar a maioria de seus argumentos.
 Não é sem razão, por exemplo, que os processos que responde não ocorreram porque ele negou o contraditório, ou porque não abriu o espaço de seu jornal para que os acusados tivessem a oportunidade de contra-argumentar. Quase todos os que acionaram a justiça alegam razão morais ou éticas. O empresário paranaense não refutou seus argumentos, mas tentou desqualificá-lo, contratando, inclusive, um hábil jornalista. Em seguida processou o jornalista porque ele o chamou de pirata fundiário. O mesmo seu deu com os filhos do falecido Rômulo Maiorana.
 Quando se apela para acusações nesse sentido esconde-se uma realidade: a falta de argumentos, critérios e elementos para levar um debate racional, aceitar a controvérsia, como diz: base de um diálogo civilizado. Como afirma acertadamente: a pérola da democracia é a controvérsia que elucida as questões e ilumina os caminhos da sociedade. Talvez, como os vampiros, certos setores da sociedade paraense detestam a luz, porque nesse ambiente não podem sobreviver. Não é por menos que quem ousar trazer um pouco de luz, iluminar, fazer com o que o está escondido venha à tona é considerado no Pará um criminoso nas instâncias judiciais do Estado. E não só aí.
Talvez esse pode ser um dos caminhos para responder a inquietante e angustiada pergunta feita pelo jornalista na página 1: Por que a sociedade não reage? E por que, quando eventualmente esboça uma reação, ela não é eficaz? Ou ainda: por que os ladrões de terras e de madeira são bem sucedidos?
Será porque a justiça é impotente? Será que essa impotência não é funcional para a manutenção desse estado de coisa, onde os privilegiados ganham enquanto os desvalidos e sem poder sofrem as conseqüências? No fundo o que está em questão não é a propriedade e a defesa do Estado (que não é neutro, mesmo quando aparentemente se mostra como tal) dos interesses dos donos de terras?
O Estado, por acaso não é conivente com essa lógica que alimenta a grilagem? Essas novas estratégias de grilagem envolvendo operadores da justiça não é parte desse jogo?
Numa sociedade neocolonial como a nossa, que conheceu pouco o que se chama democracia e que resolve os conflitos na base da violência e recusa (e criminaliza) qualquer debate crítico sobre a realidade pode haver democracia? Será que o surgimento de várias Elianas Calmons vai resolver o problema da Justiça nesse país? Quem são os corruptos e os corruptores? Por que a sociedade silencia?
Esse debate deve ser feito. Certamente daria um novo Dossiê do Jornal Pessoal. Desçamos à rinha, como convidava no passado o jornalista.

  


[1] Foucault no seu livro A Ordem do discurso estabeleceu a articulação dos mecanismos do poder e os discursos. Na História da Sexualidade ele modifica a sua interpretação e tenta descobrir a partir dos discursos quais as intencionalidades do sujeito falante, onde ele não se preocupa com o sujeito falante, mas com as diferentes maneiras pelas quais o discurso cumpre uma função dentro de um sistema estratégico, onde o poder está implicado e pelo qual funciona. Como ele afirma: o poder não está fora do discurso. O poder não é a fonte nem a origem do discurso. O poder é algo que funciona através do discurso, porque o discurso são elementos ou bloco de táticas no campo das relações de força (ver Ditos e Escritos III, Paris Gallimard). Se olharmos mais de perto os discursos dos diversos personagens que aparecem no Dossiê, poderemos perceber o essas relações de força de que nos fala o filósofo francês.

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