terça-feira, 14 de agosto de 2012

OS NOVOS TERRITÓRIOS DA POBREZA NAS CIDADES FINANCEIRIZADA: NOTAS PARA UM NECESSÁRIO DEBATE


Benedito Carvalho Filho

Desse modo, viajando-se no território de Ercília, depara-se com as ruínas das cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem os ossos dos mortos que rolam com o vento: teia de aranha de relações intrincadas à procura de uma forma. (Ítalo Calvino. Cidades Invisíveis)

Desde a construção a Cidade Tiradentes foi planejada para ter pobres, para ter pessoas e uma classe social. As pessoas quando conheciam a Cidade Tiradentes se confundiam, porque era tudo padronizado, os prédios eram todos iguais e não tinha muros. (Daniel)

Em 2009 fui convidado pelo Instituto Pólis, de São Paulo, para redigir uma publicação sobre a cultura dos jovens da Cidade Tiradentes, na cidade de São Paulo.
 Analisei as entrevistas de três jovens que lideram um grupo de Hip-Hop neste local, transformado em livro, chamado Jovens da Cidade Tiradentes: de onde ecoam suas vozes?
A professora Cibele na sua palestra editada na primeira parte deste jornal fez comentários sobre esse enorme bairro de São Paulo.
Apesar de a publicação ter sido focada nesse espaço urbano da cidade de São Paulo, faço neste jornal algumas reflexões que podem contribuir para o debate sobre a que vem acontecendo em vários bairros de São Paulo, Rio de Janeiro e, certamente, aqui em Manaus.
São locais, como afirmou a professora Cibele, onde explodem coletivos de tudo: de grafites, de dança, de hip-hop, de teatro e do que se pode imaginar.
Mas não pense que esses espaços de cultura jovem ocorrem de forma pacífica. Cada um desses espaços - ­diz Cibele – se constituí em variados campos de disputas em que as representações, as formas pelas quais as populações se vêem e vêem o mundo estão se ocorrendo de forma singular.
E, no meio dessas disputas, o que está em jogo são as disputas e conflitos em torno da criação regulação da cidade.

OS TERRITÓRIOS  E SEUS  SENTIDOS

Ao ler as entrevistas dos jovens, percebi um pouco esses campos a que se refere Cibele, e pude perceber as representações afloram de um universo plural e heterogêneo do território em que transitam, pois outras vozes e agenciamentos circulam, constituindo multifacetadas formas de viver o cotidiano do bairro.
Isso porque a Cidade Tiradentes é constituída de muitas tribos, em constante processo de territorialização e desterritorialização,[1] e não somente um espaço físico longínquo da cidade de São Paulo e bastante emblemático, pois retrata a multiplicidade dos movimentos culturais que se multiplicam a cada ano. É visto como bairro violento e com forte presença de forças repressivas do Estado.
Uma multiplicidade de modos de vida, interações, afetos, encontros e desencontros, constroem e reconstroem a pluralidade de sentidos sobre o que significa habitar, neste e outros locais, a grande urbe paulistana.
 A Cidade Tiradentes é denominada por esses jovens como um refúgio ou comunidade. [2] Ali são vários os espaços de conflitos, lutas, conquistas, sonhos desfeitos, esperanças, memórias e lembranças, pequenas e grandes transgressões, perdas e aprendizados de rua.  Um mundão por onde circula e se produz (e reproduzem) diferentes visões de mundo e modos de construção de subjetividades. [3] 
 Foram esses jovens que nos forneceram os pequenos relatos etnográficos do lugar, através da linguagem oral, onde revelaram as dimensões da segregação espacial, a violência, assuntos, como dizem, em “moda” na academia, principalmente entre sociólogos e antropólogos, fato percebido com certa estranheza, quando afirmam ironicamente que se tornaram (segundo eles) ratos de laboratório de pesquisadores que realizam suas teses, levantam hipóteses e teorias para depois refugiarem-se nos muros fechados das universidades.
Suas observações e percepções são pertinentes: o mundo acadêmico, as inúmeras organizações não governamentais e outras instituições públicas e privadas, (maciçamente presente no território),[4] enfim, os que se debruçam sobre o mundo social, possuem as suas formas de virações legitimadas (ou não), suas heterogeneidades e contradições. Não sejamos tão inocentes em imaginar que esses jovens, os chamados objetos de pesquisa (na linguagem acadêmica), sejam tão ingênuos que não percebam as nossas artimanhas.
 Quando nos vêem nessa viração olham-no com desconfiança e estranheza e sacam os nossos interesses, talvez com mais acuidade do que o esforço dos pesquisadores para compreender seus universos.
 Canevacci[5] (2005), nos oferece uma crítica muito pertinente sobre a relação entre o mundo acadêmico e a mídia ao enfocar a vida dos jovens moradores das periferias dos grandes centros urbanos. Este autor  nos adverte que:

 (...) as culturas juvenis não cabem em pesquisas jornalísticas ou em abordagens generalistas que, fluídas e transbordantes, brotam pelos poros das metrópoles, o caleidoscópio de multivíduos. (p.7)

Nesses poros da metrópole, ou organismo vivo, como encarar uma taxonomia sócio-antropológica o que é naturalmente vário, fragmentado, policrômico? Como fixar em tabelas o que móvel e fugidio? 

Ou, dito em uma linguagem mais direta: como defrontar-se com a realidade desses jovens analisando somente as tabelas estatísticas, que mostram dados importantes, mas não captam em profundidade esse universo fragmentado que é móvel e impossível de ser percebido através de categorias meramente quantitativas?

COMO COMPREENDER ESSE UNIVERSO FUGIDIO, FRAGMENTADO E POLICRÔMICO?

Por onde começar quando se deseja conhecer a realidade dos jovens e seu mundo cultural?
Se as estatísticas não revelam esse universo fugidio, fragmentado e policrômico, por onde começar?  Como perceber a estranheza desse mundo e torná-lo familiar?
 Muitos estudiosos dos movimentos sociais conheciam a Zona Leste da cidade de longas datas, desde as lutas dos movimentos de bairro, o movimento sindical nos anos 80, os períodos de resistência à ditadura militar.
Mas, hoje, quando retornamos à região, ficamos perplexos e assustados o esgarçamento do espaço urbano, a ausência das idéias de direitos, justiça e igualdade (tão presentes nas décadas de 70,89 e 90), a diminuição do número de fábricas, assim como de trabalhadores assalariados, que, agora, buscam novas estratégias de sobrevivência na informalidade, prestando serviços onde aparecerem, e, não poucas vezes, atuando na ilegalidade com essas virações.
Isso porque a cidade, como outras cidades brasileiras, vêm mudando radicalmente, e, junto com ela, como bem observou Cibele, as formas de sociabilidade antigas esvaneceram-se, alterando a percepção do que seja centro e periferia.
 O que era considerado centro virou periferia, e o que era periferia adquiriu outro significado. Hoje as periferias têm seu centro que são os condomínios de luxo cercados por muros e redes eletrificados.
Os bairros fabris centralizados em redor de fábricas desapareceram.  Outros desenhos e diagramas e redes sociais foram criados. [6] 
No lugar das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), surgiram as seitas evangélicas e os católicos carismáticos. As fábricas fordistas e seus operários sofreram uma grande metamorfose; as novas formas de pobreza vêm adquirindo outras formas e o que se conhecia como centro e periferia, como nos mostrou Cibele na sua conferência, vem se alterando, pois os ricos foram (e estão indo) para o que se chamava periferia, onde  constroem os seus condomínios fechados,  levantando os seus altos muros eletrificados para se protegerem dos pobres.
O chamado mercado informal ampliou-se, assim como as seitas evangélicas com suas promessas de ascensão social, suas teologias da prosperidade, o empresariamento de si.
Tudo isso acompanhado por toda uma política  incentivada pelo Estado que substituiu as instituições de assistência social públicas por grupos, empresas, ONGs, etc.
Cibele chamou esse processo, ainda pouco estudado, de racionalização empresarial da pobreza, ou seja, nos tempos de hoje investir em programas sociais para a pobreza se transformou um negócio rendoso, como se tornou atrativo o investimento no setor imobiliário, como se observa em todos grandes centros urbanos do país.
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O que era considerado centro virou periferia, e o que era periferia adquiriu outro significado.
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Trata-se de uma nova configuração da cidade e um novo entendimento do que se entende hoje por pobreza, que não é a mesma do passado e, portanto, exige novas interpretações.
Essas novas configurações que vem assumindo a produção e o consumo do espaço urbano é alimentado por essa financeirização, ou seja, as forças econômicas que hoje manejam o destino das cidades no atual estado neoliberal brasileiro, que deixou praticamente o espaço urbano a mercê do jogo de interesses do mercado, quem, praticamente, dita as regras dessa desenfreada e frenética especulação.
Temos os exemplos de várias cidades brasileiras e aqui em Manaus, particularmente.
Qual o significado, hoje, dos Planos Diretores, do Estatuto das Cidades, que pretendiam imprimir alguma racionalidade na organização do espaço urbano, prevendo o seu crescimento e seus pontos de estrangulamentos?
O que se percebe nas grandes cidades brasileira (e Manaus não foge à regra) é que uma grande parte do espaço urbano, onde mora a maioria da população, é dominada pelos interesses privados. Ou seja, são as grandes corporações imobiliárias e construtoras quem praticamente ditam as regras e levam adiante as obras monumentais, como a ponte sob o Rio Negro, com 3.600 metros, uma das obras mais caras do país, cujo custo passou do bilhão de reais, 90% a mais do que estava previsto no seu orçamento inicial, incluindo obras complementares.[7]
Nem bem a ponte foi concluída e já são anunciados, através da mídia, grandes empreendimentos imobiliários no local, onde uma pequena e reduzida elite local pode desfrutar do bucólico e aprazível Rio Negro, vivendo do conforto dos novos prédios onde não faltarão serviços de infraestrutura e tudo mais.  
Essa lógica vem fazendo com que surja uma nova paisagem urbana, com suas pontes, torres, viadutos, condomínios fechados e, como conseqüência, a especulação imobiliária.
Para os mais pobres que não podem arcar com os aluguéis estratosféricos, como os sãos os cobrados em Manaus, restam as periferias distantes ou o remanejamentos daquelas áreas consideradas nobres da cidade.
Ou seja, aqui vigora a mesma lógica das grandes cidades brasileiras: os pobres vão para as zonas menos valorizadas da cidade. Em seguida o Estado entra com a infraestrutura, construindo vias públicas, luz, água, transporte, etc. As terras se valorizam e passam a ser cobiçadas pelas incorporadoras imobiliárias – sempre atentas às valorizações de novas áreas - e vendidas por alto preço.
 Em seguidas os antigos moradores são obrigados a ocupar, mais adiante, novos terrenos, muitas vezes invadidos, e o mesmo processo continua, se ainda tiver terra para ocupar.
Para compreender esse processo não podemos deixar de citar aqui um dos trabalhos mais emblemáticos da questão urbana nessa época de financeirização: o livro de Mariana Fix,[8] onde a autora nos mostra como vem se dando o processo de financeirização da cidade de São Paulo, com seus mega-projetos, torres, escritórios de luxo, hotéis, casas de espetáculos, shoppings centers, etc. onde o poder e o dinheiro mobilizam o Estado, o capital privado nacional e internacional, tornando-se parceiros nas várias modalidades de apropriação do fundo público. Ou seja, a cidade funciona como uma espécie de título financeiro.
Nesse processo, surge aquilo que Tereza Caldeira chamou de segregação espacial, onde os condomínios são vistos como separados da cidade, como mundos à parte da vida pública.
Nesses condomínios, o grande marketing é a segurança, o apelo à ecologia, lazer, segurança, ordem, saúde, enfim, uma promessa de vida melhor nos enclaves, onde as residências parecem clubes particulares, apesar do uso dos serviços ser muito baixo, servindo mais para ostentação.
A herança da Casa Grande e da Senzala cada vez mais se exime na vida das classes altas, uma vez que os serviços são administrados pelos condomínios ou empresas terceirizadas, em relações mais profissionais do que a tradicional relação permanente e individualizada de pessoas que moravam na casa e faziam os serviços domésticos. As antigas relações não desaparecem, apenas o enquadramento se modificou. Até mesmo nessa área a separação aparece como prestígio, com elevadores e entradas de serviço, apesar da proibição e ilegalidade destas.
O controle é exercido não somente pelos que vêm de fora, como também com os próprios funcionários e visitantes, claro que de forma proporcional ao status social.[9]
Como observa um arquiteto:
A "medievalização" da arquitetura residencial de alta renda mostra, com mais clareza, o medo crescente e estratégias contundentes utilizadas para a proteção e a segurança, e revela também, como aponta Harvey (1992:cap.17), o charme e o glamour que parecem simbolizar um estilo medieval de morar, com uma apropriação de elementos de estilos pretéritos que, por sua vez, podem funcionar como um escape ao enfrentamento do presente, como uma fantasia nostálgica que cai muito bem aos espíritos "pós modernos" e consolida certos modos aparentemente impressionantes de viver, adquiridos pela compra de um sistema de signos que, apesar de inautênticos, como "quase simulacros" são capazes de produzir diferentes representações, como nos mostra a foto seguinte. [10]
            Nesta mesma linha de interpretação, podemos ler o citado livro de Mariana Fix, que  vai nos mostrar as estratégias dos diversos atores econômicos e sociais no espaço urbano.
Ela procurou compreender as estratégias do mercado imobiliário que tem um forte papel no destino das cidades; os circuitos imobiliários; as tentativas de ingresso do capital internacional; a ação do poder público e as novas formas de acesso aos fundos públicos, essa mina de ouro sem qual é impossível compreender todo esse processo.
Também, de forma detalhada, procura compreender as resistências das populações ameaçadas de despejo, suas organizações, os dramas vividos pelos que vivem ali durante muitas décadas, as formas abertas e veladas de repressão, as intimidações, etc. Enfim, como ela afirma, buscou compreender uma história de negócios urbanos, cheia de impasses e conflitos na qual se definiram ganhadores e perdedores.
Citamos esses trabalhos de Mariana Fix e Tereza Caldeira porque hoje os pesquisadores que se preocupam em estudar a nova Cidade de Manaus e as demais cidades brasileiras parecem pouco atentos para esses aspectos ressaltados pelas autoras, limitando-se às clássicas descrições que podem num primeiro momento serem valiosas, mas não explicam de forma mais consistente o novo significado desse processo, que certamente exige outra estratégia de investigação, mais etnográfica e articulada com uma base teórica mais sólida entre os dados empíricos e a teoria. 
  

A RACIONALIZAÇÃO EMPRESARIAL  DA POBREZA

Como Cibele, concordamos que há, sim, um processo articulado de racionalização da pobreza, como ela demonstrou rapidamente na sua conferência, mas isso tem íntima relação com um processo geral de acumulação de capital e a articulação de atores diversos, passando pelo Estado, grupos econômicos que formam suas Ongs e OCIPs, igrejas, lideranças de favelas e bairros e muitos outros atores, cujo significado nem sempre é fácil de perceber.
Isso, também, não pode ser compreendido sem que se entenda esses processos de  internacionalização da economia e seus agentes dos setores imobiliários e financeiros, agentes institucionais, funcionários de empresas locatárias, associações de moradores e tantos outros agentes desse mundo que determinam a lógica de ocupação da cidade.
Nesse momento de grande euforia com a Copa do Mundo de 2014, isso se torna mais evidente, pois a disputa pelo espaço e o direito à cidade tornam-se visíveis, com as ameaças de remoções e remanejamento das populações de áreas residenciais para a construção de grandes obras, como estádios, hotéis e toda a infra-estrutura para receber os turistas assistirão a três jogos do campeonato.
 Assim, disputa pela cidade revela-se em sua nudez, com seus conflitos, fazendo com que venham à tona todos os interesses em jogo, bem maiores do que acontece no gramado de um estádio.

OUTROS ESPAÇOS DE LEGALIDADES E ILEGALIDADES

Junto com isso, como parte de um mesmo processo, se tem hoje nas cidades o rendoso tráfico de drogas, articulado a toda uma rede do crime mundial organizado, incorporando jovens, muito deles menores de idade aliciados por traficantes muito cedo para o mundo do crime e, muitas vezes, para a morte.
Se acompanharmos os noticiários da mídia, vamos perceber que não só os jovens que se encontram envolvidos nessas malhas de ilegalidade. Velhos, mulheres, jovens e crianças frequentemente são flagradas transportando drogas pelo país e fora dele.
 Uma pesquisa mais detida nas ocorrências policiais certamente nos deixaria  perplexos. 
O tráfico de drogas proibidas, que segundo Alessandra Dino e Wálter Franganello Mairovitch,[11] é estimado pela ONU movimentando US$ 400 bilhões/ano em países com produto interno bruto (PIB) dependente desse mercado.
Um estudo sobre o comportamento da juventude brasileira nos dá uma dimensão do problema:
O quadro de consumo de drogas ilícitas no Brasil comparado com o cenário internacional é discreto, embora venha aumentando marcadamente nos últimos anos. Essa informação é confirmada por uma série de estudos, sendo o mais recente deles o I Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país, realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas, o Cebrit (2002). [12]

Como reconhece Cibele na sua conferência, não há os dispositivos do tráfico e os dispositivos da pobreza, o que há é uma articulação territorial entre essas duas dimensões, portanto, há essa dobra entre legalidade e ilegalidade, que é nova no território da periferia brasileira.
Tráfico e pobreza são partes de um mesmo processo, o verso e o reverso de uma mesma moeda.
Como observa Paulini, a continuidade do fosso social, com o crescimento do número absoluto da miséria e a falta de perspectivas, aprofundará a violência nos grandes centros urbanos, por maiores que sejam os esforços envidados na área da segurança pública, e estimulará a indústria do narcotráfico, único “setor”que, para uma grande parcela da população, vem se mostrando “promissor”do ponto de vista do emprego”. [13]
É preciso reconhecer, também, que nessa dobra o tráfico existe não só porque existe a pobreza. Isso faz parte de uma complexa e poderosa cadeia, pois o tráfico de drogas existe porque existem os que consomem pertencentes aos estratos sociais de maior poder aquisitivo na sociedade brasileira. Não seriam tão predadores quanto os traficantes de drogas ilícitas?[14]
Assim como há um dispositivo do tráfego e o dispositivo da pobreza, há também outros atores fazendo parte dessa ilegalidade, só que acobertados e protegidos por uma justiça ineficaz e corporativista, que não passa ao cidadão comum a imagem de imparcialidade[15].
As margens que separam a legalidade e ilegalidade na sociedade brasileira são muito tênues e nem sempre fácil de perceber.
Mas, até que ponto isso não faz parte da jogatina desse capitalismo de cassino, onde o Estado não tem o mínimo controle, pois ele não é mais capaz de regular a sociedade em que vivemos.
 Menos Estado, como queria Margareth Thatcher e Ronald Reagan significa, como dizia Amaury Junior, a era dos predadores nesse parque jurássico de uso e costumes republicano, onde movem-se como Tiranossauro Rex e, com poder do dinheiro e o dinheiro do poder, devoram as principais presas. E há os pequenos, como o Velocirraptor. Pequenos, porém não menos vorazes. Astuciosos, agindo em bandos, usam repetidamente o mesmo método de ataque para engolir sua fatia dos despojos. [16]

A FINANCEIRIZAÇÃO DA POBREZA

É dentro dessa lógica que vem ocorrendo o que Cibele chamou de financeirização da pobreza, ou seja, para entrar no sedutor mercado de consumo, as pessoas dos mais diversos extratos sociais estão sendo induzidas pelas financeiras nos mais diversos centros urbanos do país a tomarem empréstimos, com juros a perder de vista. Mas quem pagará a conta depois?
 Jornalista José Arbex explica detalhadamente esse processo:

Segundo um estudo da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em outubro de 2011, 64% das famílias que vivem nas 27 capitais estavam endividadas (88% em Curitiba e 86% em Florianópolis). No último ano, o valor médio da dívida familiar aumentou em quase 18%: de 1.298 para 1.527 reais. O total da dívida das pessoas físicas chegou a R$ 653 bilhões (em dezembro de 2009, era de R$ 485 bilhões). O que acontecerá quando uma parte significativa das famílias notar que não terá como honrar os compromissos?(18 de novembro de 2011 às 1:37, José Arbex, jornal Caros Amigos)
Os que não conseguem os empréstimos nas financeiras, por não terem empregos fixos, mas seduzidos pelo consumo, inventam as suas virações.
Muitos vão para o tráfico, servindo de mulas, arriscando suas vidas ou indo para os superlotados presídios e cadeias com suas vidas desperdiçadas, como dizia Bauman.
Isso com um custo imenso para o Estado, pois manter uma pessoa presa num presídio, no Brasil, custa uma média de 1.500 reais, como informa Luiz Eduardo Soares no seu último livro. [17]
Outros acabam enchendo os bolsos das centenas de seitas religiosas espalhadas por esse país e que vão, também, empresariar a pobreza, através das suas Ongs e Ocips, como nos mostrou Cibele, quando, num de seus achados de pesquisa, descobriu os novos operadores que estão por trás desse empresariamento:
Uma parcela, portanto, desse dinheiro fica nesse colchão de entidades, de tal maneira que é impossível compreender o funcionamento das bolsas de combate à pobreza sem entender esses novos operadores. O que, para mim, pelo menos esclareceu muito facilmente porque a Rede Record de Televisão é tão fanaticamente a favor do Governo Lula e Dilma. Elas são parte desse processo. 
  
OS LIMIARES E TRILHAS NOS UNIVERSOS EMPOBRECIDOS

Perguntávamos: o que estes jovens (e muitos outros da Cidade Tiradentes e de outros locais semelhantes) estão querendo nos dizer? O que estará submerso nos seus não ditos?
Certamente há uma polissemia de sentidos que não se consegue compreender de imediato ao mergulhar no mundo dos jovens das periferias dos grandes centros urbanos do Brasil e do mundo. 
Como nos adverte Telles:[18]
É seguindo as trilhas dos mais jovens que vão se delineando os perfis ambivalentes da modernidade globalizada, uma experiência social que vai se configurando nos limiares e nas passagens entre mundos distintos, entre universos empobrecidos da periferia e os shoppings centers e os lugares prestigiosos de consumo e lazer (referências urbanas inescapáveis para essa geração), os baixos empregos do terciário moderno e os circuitos do trabalho precários que tangenciam os fluxos de riqueza plasmados pelo espaço urbano. São esses limiares e essas passagens (e seus bloqueios) que precisam ser bem compreendidos e bem situados, pois é aqui que vai se armando uma teia de relações (e tensões) que escapa de definições modelares ditas de exclusão ou segregação urbana. (...)
Há sempre passagens que podem ser percorridas. Talvez o problema esteja nessas passagens, nos acessos modulados que elas permitem e no modo como os bloqueios se processam, não genericamente, mas sempre de formas situadas e mediadas por traumas de relações que conformam campos de força (e de tensão).(p. 20)

O que Vera Teles está nós dizendo nesse significativo e esclarecedor texto é que é preciso ter sensibilidade para sentir e perceber essas passagens, limiares e trilhas nos universos empobrecidos, pois como nos ensinou o geógrafo Milton Santos, o mundo é um viveiro de possibilidades. [19]
Mas, para captar esse campo de força, esses limiares que plasmam o espaço urbano, seja em São Paulo ou aqui em Manaus, é preciso afinar os ouvidos e aguçar o olhar, contextualizando as falas de nossos três jovens interlocutores, procurando compreender o lugar de onde estão falando, os percursos (não lineares) que tiveram que percorrer nesse mundo intensamente globalizado e financeirizado.
 E isso, como chama atenção Vera, escapa de definições modelares ditas de exclusão ou segregação social.
Afirmar que eles são excluídos, além da imprecisão desse termo, é não enxergar e não ter sensibilidade para perceber o que se olha. O que não se faz com dados quantitativos, esquadrinhando os espaços, pois através deles é impossível  perceber essas passagens e seus bloqueios.
Pelbart faz uma pergunta desafiadora:

Como detectar modos de subjetivação emergentes, focos de enunciação coletiva, territórios existenciais, inteligências grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capital, e que não ganharam ainda suficiente visibilidade no repertório de nossas cidades?

E vai mais longe:

Há alguns anos no Brasil eram visíveis as configurações comunitárias diversas, ora mais ligado à Igreja, ora ao Movimento dos Sem-Terra, ora às redes do tráfico, ou provenientes dos movimentos reivindicatórios e estéticos diversos, como o hip-hop, ou modalidades de “inclusão às avessas” proporcionado pelas gangues da periferia, mantendo com as redes hegemônicas graus de distância ou enlaces diversos. Eu não saberia dizer o que está nascendo hoje nos centros urbanos brasileiros, muito menos nas demais cidades do planeta. Mas há um fenômeno que me intriga, entre outros. No contexto do capitalismo cultural, que expropria e revende modos de vida, não haveria uma tendência crescente, por parte dos excluídos, em usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de autovalorização?Quando um grupo de presidiário compõe e grava sua música, o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas maneira de vestir, do “morar” na prisão, de gesticular, de protestar, de rebelar-se – em suma, sua vida. Seu único capital, a sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é disso que fizeram um vetor de existencialização, é essa vida que eles capitalizaram e assim se autovalorizou e produziu valor. É claro que num regime de entropia cultural essa “mercadoria” interessa, pela sua estranheza, aspereza, visceralidade, ainda que facilmente também ela possa ser transformada em mero exotismo étnico de consumo descartável. Mas a partir desse exemplo extremo e  ambíguo, eu perguntaria, à luz dos nômades de Kafka a quem me referi no início,se não precisaríamos de instrumentos mais esquisitos para avaliar a capacidade dos chamados “excluídos”, ou “desfiliados”ou “desconetados” de construírem territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, ou de territórios de miséria a que foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são capazes de transformar seus fiapos de vida em momento de desespero coletivo. [20]

Esses modos de subjetivações emergentes que escapam dos parâmetros consensuais são extremamente difíceis de perceber, principalmente para nós, acadêmicos, sociólogos e antropólogos, acostumados com o que Peter chamou de serialização, própria das abordagens jornalísticas e generalista, a que se referiu Canevacci  anteriormente citado.


Percebi nas entrevistas com os jovens da Cidade
Tiradentes essa tendência observada por Peter, de usar a própria vida, na precariedade de subsistência, como vetor de autovalorização, seja através da música, seja através das indumentárias, que entraram na moda e se tornaram mercadorias para o consumo nesse contexto do capitalismo cultural, onde tudo vira descartável, inclusive a própria vida e seus estilos de viver
Por que, de repente, as imagens das favelas e periferias são estandardizadas pela mídia, com suas novelas, filmes, difundindo estilos de vida?
Até que ponto as vestimentas, as formas de morar hoje não são os padrões que vendem no mercado, lojas, mesmo aquelas mais sofisticadas. Bermudas, chinelos, chapéus, tatuagens (tão familiares nos presídios) e uma infinidade de objetos bizarros hoje são modas, com seu exotismo, com suas asperezas e estranhezas.
Se tudo isso vai servir para construir novos territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, tenho as minhas dúvidas. Se, com esses fiapos de criação, eles irão além da mera autovalorização e criarão o desespero coletivo é algo que não sabemos. Sabemos que, no passado, os chamados hippies, nas suas irreverências, criaram uma cultura rebelde, que depois foi apropriada muito bem para alimentar a máquina capitalista.


AS MARCAS DAS TRANSFORMAÇÕES E SUAS SUTILEZAS

Ao ler os depoimentos dos jovens entrevistados percebi que suas vidas, as suas biografias, estão profundamente marcadas não só pelas transformações sofridas pela sociedade brasileira nessas três décadas, deixando marcas profundas nessas cidades repartidas que se espalham por toda a sociedade brasileira, tendo como exemplo mais paradoxal a cidade de São Paulo, hoje com mais de 16 milhões de habitantes.
Mas é preciso perceber as nuances de cada centro urbano, os seus vários territórios, que são, como afirmaram Guattari e Rolnik, um conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar pragmaticamente toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos.  
Como afirma Cibele na sua palestra na UFAM:
São novas sociabilidades coletivas que ela não sabe aonde vai dá, onde explodem coletivos de tudo: de grafites, de dança, de hip-hop, de teatro e de tudo o que se pode imaginar.
Em cada um desses lugares vão se constituir variados campos de disputas, como as que se dão em torno da regulação da cidade, onde entra: os saberes das mulheres, das redes de sociabilidade. 
  São nesses espaços que os habitantes dos bairros periféricos (aliás, o que é bairro periférico hoje, já que os ricos nos dias de hoje habitam os condomínios fechados das antigas periferias?) estão sendo profundamente marcados pelas carências no que diz respeito à infra-estrutura, como escolas, hospitais, postos de saúde, saneamento básico, creches e, sobretudo, trabalho, que, no final dos anos 90, com a globalização neoliberal e a chamada reestruturação produtiva, arrancou os antigos trabalhadores de seus tradicionais empregos.

INCÕMODAS PERSPECTIVAS PARA OS JOVENS

Cidadãos sem direitos, os pais, tios, ou mesmo os avós desses jovens, sempre citados como referencias importantes em suas vidas (ex-peões, ex-operários especializados, ex-empregados de carteira assinada, trabalhadores da construção civil, etc.), eram os antigos atores, que, no final dos anos 70 e começo dos anos 80, chegaram à cidade de São Paulo e ainda encontraram um mercado de trabalho.
Foi a geração dos anos 70,80,90 que migrou para a cidade de São Paulo no período do chamado milagre econômico. Operários de fábrica e da construção civil, recém chegado do campo, cujo mercado da força de trabalho exigia pouca - ou quase nenhuma – qualificação para o exercício da profissão.[21]
Com o fim época taylorismo-fordista [22] e a introdução da automação nas fábricas, esses trabalhadores foram apeados do mercado formal e, atualmente, muito dos que sobraram estão na informalidade, reinventando novas estratégias de sobrevivência ou retornaram para suas terras de origem ou migraram e para outras regiões do país.
Como ressalta  Rifkin (1995) [23]
                                                                 
A idéia de uma sociedade que não se fundamenta no trabalho é tão alheia a qualquer noção sobre as modalidades de organização das grandes massas de indivíduos, numa aglomeração social, que nos obriga a enfrentar a incômoda perspectiva de repensar integralmente as próprias bases do contrato social. (apud, Canevacci, 2005, p. 30)

Estes jovens, segundo Velho (2006), quando vieram ao mundo o encontraram em profundas transformações e é nesse turbilhon social, para usarmos uma expressão roussauniana, em que se encontram hoje, no momento em que

(...) o mercado de trabalho se complexifica e torna-se cada vez mais competitivo, com novas ocupações e mudanças nas expectativas de estabilidade e segurança (...). A música, nas mais diversas manifestações, produz e multiplica diferentes tipos de públicos e de aficionados. O funk, o forró, o hip hop, o samba tradicional e o chorinho estimulam interações interclasses e interétnicas pela sua extensão e profundidade.” (p.197)

Não se deve desconsiderar que a tecnologia atinge a população jovem de forma desigual, pois a exclusão digital é grande, mas

(...) introduz e difundem novas formas de comunicação e sociabilidade, como as ligadas ao mundo da informática. Redes de sociabilidades, namoros, novos tipos de interações aproximam as pessoas que podem estar distantes geográfica e socialmente. Os esportes, por outro lado, associados à preocupação com a saúde e a um ethos que tem na estética corporal um forte valor, ampliam cada vez mais na vida social da juventude. Também o vôlei, o basquete, o surfe, o futebol feminino, as ginásticas, a capoeira, entre outros, mobilizam jovens de múltiplos segmentos sociais. (pp. 197-198)

Os jovens criados na grande metrópole sejam paulistanos e outros centros urbanos do país, carregam em seus corpos e subjetividade parte importante do contexto histórico[24] pelo qual o mundo atravessa, nesse momento de profundas e imprevisíveis transformações em todas as dimensões da existência.
Muitos deles poderão sucumbir nessa epopéia, muitas vezes de forma macabra, como em certos espaços de terror, visíveis e invisíveis, do mundo urbano paulista e brasileiro.

No entanto, é preciso acreditar nas novas potencialidades que emergem nessa autodestruição criativa, recriadora de novas e imprevisíveis (e flexíveis) identidades e culturas, o que alimenta sempre a esperança de viver, mesmo em meio à fragilidade da vida. Afinal a vida é possível, mesmo quando ela se encontra no limite, na mais absoluta liminaridade e impossibilidade.
Como afirmava com ousadia um ex- militante jovem, em plena efervescência da chamada barricadas do desejo, na Paris de 68:
Aqueles que falam de revolução e luta de classes, sem se referir explicitamente à vida cotidiana, sem compreender o que há de subversivo no amor e de positivo na recusa das coações, esses têm na boca um cadáver[25]
   Curiosamente a compreensão dessa vida cotidiana está bem presente nos jovens. Não é alimentada somente pelo desejo de grandes revoluções, como nos tempos passados, mas como manifestação de um grande desejo de viver (ou sobreviver) nesta sociedade excludente, cujo exemplo, manifesta-se não só na Cidade Tiradentes de forma escancarada, através do racismo, das desigualdades sociais, da violência que transforma jovens em cadáveres. Presente, também, nos estigmas vivenciados cotidianamente contra o qual lutam a cada momento, ao circular pelo centro da cidade quando saem dos guetos com seus manos.

O grande problema é quando essas populações se vêem e passam a ser tratadas simplesmente como clientes e não como pessoas que reconhecem como sujeito de direito. Isso, realmente, despolitiza as pessoas, pois não cria novos mecanismos de organização coletiva, fazendo com que o Estado seja visto como uma espécie de pai dos pobres.
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A DESPOLITIZAÇÃO DA POBREZA

Finalmente, o último ponto  discutido, mas que consideramos muito importante é a chamada, por Cibele, a despolitização da pobreza.
Faremos algumas breves considerações, esperando maior debate com os leitores.
É verdade que as políticas compensatórias levadas a cabo pelo Estado segmentaram a pobreza, com seus programas setorializados, como vimos anteriormente na palestra da professora Cibele.
Esses programas, principalmente aqueles voltados para as populações que se encontram em situação de risco, inquestionavelmente são importantes, pois quem se encontra numa situação de miséria absoluta, carente de tudo que é necessário para viver condignamente não tem a mínima chance de exercer a sua cidadania.
O grande problema é quando essas populações se vêem e passam a ser tratadas simplesmente como clientes e não como pessoas que reconhecem como sujeito de direito.
Isso, realmente, despolitiza as pessoas, pois não são criados  novos mecanismos de organização coletiva, fazendo com que o Estado seja visto como uma espécie de pai dos pobres.
Quem viajou por esse imenso país e viu, por exemplo, a miséria nos anos 70, com as famílias morrendo de sede e de fome no sertão do nordeste sabe da total impossibilidade de organização dessas populações. Sabe, também, o quanto elas eram (ou são, ainda) manipuladas pelos coronéis do sertão, esses, sim, com intenções bem políticas e muito interessados na despolitização da massa miserável.
Qual é o pior, o velho clientelismo ou o clientelismo do atual Estado, com seus programas setorializado, citado por Cibele?[26]   
Mas, um contexto mais geral e o que se hoje é um grande desinvestimento e arrefecimento das lutas coletivas.
Diferentemente dos anos 70-80, quando os movimentos sociais partiram para a luta, com suas reivindicações por melhores salários, educação, saúde, transportes e outras melhorias urbanas.
Hoje, o único movimento popular com alguma visibilidade na cena política é o Movimento dos Sem Terra (MST) e algumas associações, como as que lutam pelo direito à moradia em São Paulo.
Mas será que não há uma forte nostalgia de um passado que, para alguns foi glorioso?
É verdade que nos bairros de muitas cidades brasileiras surgiram os movimentos sociais, e, juntamente com eles, o forte movimento sindical.
 Hoje, no entanto, não podemos deixar de nos perguntar: o que desejavam esses novos atores que entraram em cena durante o período de resistência à ditadura dos anos 70-80? Em que contexto eles aparecem na cena política brasileira?
 A grande massa recém chegada das zonas rurais do país não estaria lutando pela modernidade, ou seja, pela entrada no mercado de consumo? Quais eram suas expectativas?
Outro aspecto: não podemos desconsiderar a grande reviravolta que ocorreu no mundo nos anos 90 com a política neoliberal que contribuiu fortemente para a desmobilização não dos setores populares, mas também de uma classe média, principalmente aquela parcela mais politizada e intelectualizada que envolveu-se com as organizações populares.
 A relação do Estado com sociedade mudou, os movimentos sociais ficaram fragilizados, sem canais de interlocução nessa nova política, que, com a sua reestruturação produtiva, jogou milhares de trabalhadores no desemprego, pois as indústrias passaram a adotar políticas radicalmente diferentes das antigas fábricas fordistas-tayloristas. 
Os sindicatos, que nos períodos anteriores lutavam pela elevação dos salários e melhores condições de trabalho, foram para a defensiva, lutando pela defesa do emprego, sem muitas condições de barganha diante do novo quadro econômico e político em que se encontrava o país.



É verdade que nos bairros de muitas cidades brasileiras surgiram os movimentos sociais, e, juntamente com eles, o forte movimento sindical. Mas, hoje, não podemos deixar de nos perguntar: o que desejavam esses novos atores que entraram em cena durante o período de resistência à ditadura dos anos 70-80?

 Foram tempos difíceis. Muitos foram para o mercado informal, outros voltaram para suas de origem, tentando montar algum negócio por conta própria.
Com a retirada cada vez maior do Estado como regulador da sociedade, o que passou a predominar foram as políticas compensatórias, como o Programa Comunidade Solidária, e, depois, seu aprofundamento dessa política pelo governo petista, agora com outro discurso e outra prática.
Os pobres, clientes de oligarquias regionais, se tornaram clientes desse programas sociais, geridos pelas centenas de organizações não governamentais, agora segmentados em políticas setoriais, como observou Cibele na sua conferência.
Mas não podemos desconsiderar os outros fatores que contribuíram para esse estado de letargia e despolitização dos movimentos populares.
 Um desses fatores foi retraimento dos partidos políticos, principalmente do Partido dos Trabalhadores (PT), que, no passado, desde a sua fundação, tinha como proposta a organização pela base, através de seus núcleos criados nos bairros, nos sindicatos e outras instâncias da sociedade civil.  Depois se lançou na luta meramente parlamentar e mirando seus objetivos na tomada do poder do Estado.
Mas não podemos explicar a despolitização somente por esses fatores. Fenômenos mais gerais, como o desmantelamento da antiga União Soviética e o fim do Muro de Berlim e de socialismo, significaram grandes abalos na esperança de grandes transformações sociais, tão sonhada no século XX.
Posteriormente vieram as chamadas políticas neoliberais, o desmantelamento do Estado, as desregulamentações e o predomínio hegemônico do deus mercado, exacerbando o individualismo e o consumismo.
Passou a predominar o capitalismo financeiro e, junto com ele, a criação de uma ideologia, onde se falava no fim da história, no empresariamento de si, na idéia de sucesso a qualquer custo. Novas formas de exploração surgiram, a pobreza foi financeirizada e vimos surgir uma sociedade cuja centralidade é o consumo, a cultura de massa e uma nova geração mais aberta para novas formas de vida e com uma mentalidade muito diferente dos seus pais, alguns deles, como vimos anteriormente, engajados, no passado, nas lutas sociais, seja no movimento sindical, seja no nas lutas nos bairros nas últimas décadas do século passado.
Foi, também, o tempo da globalização, do acesso das massas ao consumo, à comunicação e à sociedade do espetáculo, tão fortemente impregnada nos dias hoje no estilo de vida e na subjetividade das novas gerações.
A televisão, o celular, o computador, as redes sociais criaram variados estilos de vida, assim como novas expectativas de vida e novos desejos.
É verdade que a pobreza aumentou como aumentou a riqueza dos mais aquinhoados. Afinal, se sabe que, no capitalismo, acumulação e miséria sempre andam juntas.
Mas é inegável que a nova pobreza adquiriu nova face. Temos 12 milhões de brasileiros vivendo em favelas, a maior deles vivendo no Rio de Janeiro e São Paulo. Milhares dele vivendo em ocupações irregulares. Mas não é a mesma pobreza do passado, pois o pobre dessa época era totalmente carente, não tendo acesso aos bens de consumo, como hoje. O que se chamava pobreza no passado hoje se chama miséria, ou seja, aquelas pessoas que se encontram no limiar da sobrevivência e agora e agora estão sendo amparado pelas políticas sociais criadas pelo Estado.
Outro aspecto importante: a pobreza não é um fenômeno localizado no que, antigamente, se chamava Terceiro Mundo. Hoje ela se estende por grandes cidades mundiais, como Londres Nova Yorque, Paris e tantas outras cidades consideradas como centros de difusão da modernidade.
Há, sim, uma dimensão fortemente protagônica do mercado e novos padrões de consumo, com afirmou Cibele, e, com isso está havendo fortes alterações que se diferenciam da antiga integração latino-americana (e não só) pensada pelo assalariamento. Por isso, não se fala mais (ou se fala pouco) de classes trabalhadoras, mas em pobres, categoria que passa assumir outro significado.
É a chamada da nova classe média baixa, no meio de um padrão de consumo onde se misturam formalidade e informalidade, tanto do ponto de vista da situação de trabalho, como do ponto do ponto de vista da situação urbana.
Com isso a existência de uma forte indefinição de atores e personagens e novas relações entre estado e mercado.
A vida pública encolheu, a sociedade transformou-se e adquiriu novas configurações. A urbanização, com suas megálopes, vêm se acelerando e estão vendo alteradas radicalmente.
Quais suas novas faces das  ainda estão para ser estudado. Não mais com os parâmetros de análise do passado, mas com novos enfoques e com maior interdisciplinaridade.   
A despolitização da pobreza é somente um aspecto do declínio da política e da democracia nessa era de uma séria crise que atravessamos nos dias de hoje. Talvez tenha razão o maior paladino do iluminismo europeu, Junger Habermas, filósofo da razão comunicativa e do diálogo democrático, quando, diante o desmoronamento da Europa afirmou num jornal alemão:
Um pouco depois de 2008, entendi que o processo de expansão, integração e democratização não protegida automaticamente por necessidade


[1] Os seres humanos se organizam segundo territórios que os delimitam e articulem aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto ao espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada em si. Ele é um conjunto de projetos e de representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos. O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fugas e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num intenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios originais se desfazem ininterruptamente com a divisão do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com seus sistemas maquínicos que o levam a atravessar cada vez mais rapidamente as estratificações materiais e mentais. (Guattari e Rolnik, 1986:p. 323)

[2]  É  preciso tornar mais explicito o que os nossos entrevistados estão denominando costumeiramente de comunidade. Em seu estudo sobre comunidade, Bauman adota como ponto de partida a identificação de um sentimento nostálgico com relação à comunidade no mundo contemporâneo. A comunidade com suas promessas de aconchego, segurança, confiança e parece um refúgio contra a implacabilidade do mundo de hoje, sendo capaz de evocar “tudo aquilo de que sentimos falta e do que precisamos para viver seguros e confiantes.” Entretanto, a própria noção de comunidade encontra-se um paradoxo: como conciliar a segurança proporcionada ao indivíduo com a liberdade ao mesmo tempo almejada? (Coelho, Maria Claudia. Juventude e sentimentos de vazio: idolatria e relação amorosa. In Velho op.cit. p. 180) Como nos chama atenção Pais, esse conceito desenvolvido por Ferdinand Tonnies (Gemeinchaft) foi interpretado de uma forma diferente por Herman Schmalenbach, designando “um tipo particular de comunidade afetiva constituída por elementos psíquicos de adesão intensa, independentemente de laços primordiais ou físicos. Essa adesão psíquica, ideável, que torna possível uma crença nos afetos virtuais: crença que, por isso mesmo, é partilhada por sedutores virtuais – e mais dificilmente por quem não vive a experiência de um bund virtual”.(Dias, op. Cit p. 30).

[3] Velho chama atenção para alguns aspectos muito importantes que não podem ser esquecidos ao escutar os nossos entrevistados. Em primeiro lugar, é preciso procurar ir além dos estereótipos e ressaltar a importância do trânsito que os indivíduos realizam permanentemente entre mundos sócio-culturais e províncias de significados. Esse movimento, que é incessante e, de certo modo, mais intensamente nas metrópoles da sociedade moderno-contemporânea, implica mudanças de foco. Em segundo lugar, ele chama atenção ao afirmar que os jovens não constituem tribos ou segmentos isolados, apesar de algumas metáforas.(Ver Velho, Gilberto). Juventude Projetos e Trajetórias na Sociedade Contemporânea, in Culturas Jovens – novos mapas do afeto. Organizado por Almeida, Maria Isabel Mendes de & Eugênia, Fernandes. Jorge Zahar Editor., Rio de Janeiro, 2006,  p. 193.
[4] É impressionante o número de grupos e organizações (governamentais e não governamentais) na Cidade Tiradentes. Igrejas, órgãos do poder público, organizações nascidas no próprio bairro, das mais variadas tonalidades ideológicas, fervilham na Cidade Tiradentes, revelando, de certa forma, uma sociabilidade bem desenvolvida. A própria forma como surgiu esse Distrito teceu isso, pois a conquista da moradia fez parte de um amplo movimento social, a luta pela moradia, surgida nos anos 80.
[5] Ver Canevacci  M. Culturas Extremas (Mutações Juvenis nos Corpos das Metrópoles. Rio de Janeiro:.DP&Editora, Tradução de Alba Olmi; 2005.
[6][6] Todo esse processo, evidentemente, ganha maior visibilidade na cidade de São Paulo, cuja tradição e a cultura industrial vêm desde a década de 30, criando um forte movimento social, operário e sindical. No caso da cidade de
Manaus, que possui uma história radicalmente diferente da capital paulista, que passou rapidamente do extrativismo para indústria de enclave da Zona Franca, a conformação urbana vai adquirir novos contornos, apesar de estar reproduzindo o mesmo fenômeno que ocorrendo nos grandes centros urbanos do país.
 A cidade vem experimentando uma forte migração do interior (e mesmo de Estados vizinhos e mais distantes) para a cidade. É verdade que surgiram formas de resistência em alguns bairros ocupados por freqüentes invasões, assim como um movimento sindical depois da implantação das fábricas no Distrito Industrial,mas não houve uma tradição de luta como em São Paulo. Ou seja, a modernidade chega numa região onde boa parte dos novos trabalhadores e trabalhadores são oriundos de uma cultura rural e consideram o emprego nas fabricas como um meio de ascensão, quase como uma dádivida, principalmente para quem vivia em pequenos lugarejos do interior do Estado sem perspectivas, às vezes vivendo do pequeno comércio, ou do extrativismo, pouco integrados no circuito da troca mercantil
Aqui, além da exploração da força de trabalho nas fábricas da Zona Franca, as contradições adquirem maior visibilidade na ocupação do espaço urbano, cada vez mais disputado pelas grandes corporações imobiliárias que se aproveitam da expansão e da infraestrutura proporcionada pelo Estado e constroem luxuosos condomínios fechados para as reduzidas classes A e B, embaladas pela especulação no mercado financeirizada.
Os deslocamentos de populações das áreas em processo de valorização vêm se acentuando ao longo do tempo. Uma cidade ocupada por migrantes, que num passado não tão remoto possuía 300 mil habitantes e hoje tem 2 milhões, o espaço urbano tornou-se  um campo de disputas e conflitos e tende a se agravar.Por isso, seria importante que se faça, além de pesquisas quantitativas, também estudos e pesquisas qualitativas, etnográficas, que captem as redes de sociabilidades, as novas culturas, os novos desenhos e diagramas, as representações de seus habitantes, principalmente os mais pobres, sobre a cidade que tem um dos piores indicadores sociais do país.
[7] Ver Catarse número 7.
[8] FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global. Editora Boitempo Editorial, 2007, p. 14,
[9] CALDEIRA, T. Cidade de Muros; Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. Parte III: Segregação urbana, enclaves fortificados e espaço público. Ed. USP. São Paulo, SP.
[10] Ver http://br.monografias.com/trabalhos/arquitetura-violencia-cidades-contemporaneas/arquitetura-violência-cidades-contemporaneas2.shtml
[11] DINO, Alessandra & MAIROVITCH (org.), Novas tendências da Criminalidade transnacional. Editora da UNESP, 2010, São Paulo. p. 26
[12] Ver BRANCO, Paulo Martori; ABRAMO, Helena Wendel e outros, in Retratos da Juventude Brasileira, Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo,  capítulo, Jovens e drogas: saúde, política neoliberal e identidade jovem, p.303-319. São Paulo, 2005.
[13] PAULINI, Leda. Brasil Delivery,Coleçao Estado de Sítio, Editora Boimtempo, Sp, 2008,p.31.
[14] O livro do jornalista Amaury Ribeiro mostra a fantástica viagem de fortunas tucanas até os paraísos fiscais das Ilhas Virgens Britânicas. Trata-se de um capitalismo de cassino, de rapinagem do dinheiro público, um dos maiores escândalos dos últimos tempos. (ver RIBEIRO Jr., Amaury. A  Privataria Tucana, Geração Editorial, 2012, Sào Paulo).
[15] Ver: Sem enxergar suas obrigações. Por Wálter Franganiello Maierovitch. Revista Carta Capital, n.678, 28 de dezembro de 2011.
[16] Op.cit. 41.
[17] SOARES, Luiz Eduardo.Justiça, pensando alto sobre violência, crime e castigo Editora Nova Fronteira, 2011, Rio de Janeiro.
[18] Telles, Vera da Silva & Cabanes, Robert (organizadores). Nas Tramas da Cidade: Trajetórias urbanas e seus territórios. Associação Editorial Humanitas e IRD – Instituto de Recherche pour Development. Coleção Estudos Urbanos. São Paulo, agosto de 2006.
[19] Ver jornal O Estado de São Paulo, de 2 de novembro de 2007, em que o jornalista Francisco Quinteiro Pires, no Caderno Cultura, ao fazer uma longa resenha dos livros do geógrafo Milton Santos, usou essa expressão ao analisar suas idéias.
[20] PELBART, Peter Pál. Vida Capital, ensaios de biopolítica, Editora Iluminarias, São Paulo, 2011, páginas 23 e 23.
[21] O perfil de muitos trabalhadores dessa época pode ser encontrado nos depoimentos colhidos por Rainho, no seu livro Os Peões do Grande ABC, Editora Vozes, 1989. São Paulo.
[22] Este termo refere-se a uma forma de produção, na qual os trabalhadores produziam nas linhas produção, como é bem evidenciado no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
[23] Rifkin J. La Fine del Lavoro. Milano:Baldini &Castoldi, 1995.
[24] (...) São esses percursos da segunda ou terceira geração no interior dessas mesmas famílias que nos fazem perceber as conexões entre trabalho e experiência urbana. Não são mais as referencias que ordenavam a experiência social dos tempos do “trabalho fordista” da primeira geração. Não mais as mediações do trabalho regulados, dos direitos trabalhistas e sindicatos que ritmavam os tempos da vida e os articulavam com os tempos políticos da cidade. Mas nem por isso o trabalho mesmo precário e descontínuo, incerto e de futuro mais incerto ainda, deixa de ser um poderoso conector com o mundo social. Outra experiência de trabalho, outra experiência urbana. Outros vetores de relações que articulam o trabalho (e o não trabalho), a cidade e seus espaços. Outro diagrama de referências e relações que redefinem espaços e territórios, os agenciamentos da vida e as formas de vida, nos quais e pelos quais é possível apreender a nervura própria desse campo social.” (Telles, op. Cit. p. 20-21)
[25] O autor desta frase é Raoul Vaneigem que publicou o livro dos situacionistas Seus escritos serviram de inspiração para as palavras de ordem que infestaram os muros parisienses em 1968.. Diz ele: "se o antigo grito “Morte aos Exploradores” não ecoa mais nas ruas, é porque ele deu lugar a outro grito, vindo da infância, proveniente de uma paixão mais serena e não menos tenaz: “A vida antes de todas as coisas”!"( (mais informações no livro Situacionista - Teoria e Prática da Revolução, publicado na Coleção Baderna).

[26] É preciso considerar que um dos mais antigos programas sociais destinados às populações pobres das áreas rurais do país foi criado pelo governo autoritário e atende hoje milhões de trabalhadores rurais do país. Foi um dos programas responsáveis para o alívio da miséria no campo.

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