sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A LUDICIDADE COM ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA




Maria Stela Graciani é educadora, na época, Vice-Diretora Geral do Centro de Educação da PUC-SP e desenvolvia trabalhos educativos com seus alunos na Praça da Sé.

 

O cenário contraditório e cheio de contraste da Praça da Sé nos leva a percebê-la como verdadeiro mosaico dialético de muitas determinações, sem unidade, verdadeira fragmentação do mundo.
Ao olhá-lo em seu aspecto retrospectivo vemos combinar arquitetonicamente o gótico da imponente Catedral, ao lado da moderna imagem concretada de cimento frio e linear do final de século XX. As características plurifacetada da luta com significado político das manifestações variadas que acolhe, convive com o sermões esdrúxulos das seitas religiosas nascentes, os come-fogo, os vende-ervas e raízes para salvar a vida, ao mesmo tempo que o crente vocifera e anuncia o fim do mundo, ao som do forró.
Mais: leitores mágicos das linhas da mão, do resgate da esperança perdida e do cansaço existencial, alavanca uma visão de futuro.
É uma praça dinâmica, movimentada, tanto na crosta como no seu subsolo, constituindo estacionamento e, ao mesmo tempo, passagem do migrante sem rumo, sem futuro e sem chance. Se para este grupo itinerante é o local de alegria nos fins de semana, para os transeuntes anônimos é o lugar do medo, insegurança e violência.
Aqui sobrevive a astúcia, os trapaceiros e trapaceados, a aplicação dos golpes fazem parte do cotidiano de seus atores sociais individuais e coletivos (civis e militares). O confronto e enfrentamento sempre se reverteram de visões maniqueístas, discriminatórias, racistas nas relações sociais, mantidas concretamente ou subliminares; a relação panóptica preside a paisagem. Forças vivas organizadas rodeiam como um cinturão concêntrico: bancos, fóruns, centrais de trabalhadores, pastorais, batalhões, etc ... olhando o epicentro do drama social, e lhe caracterizando como marco zero da principal cidade da América - Latina.
Praça da Sé, símbolo de antigüidade/modernidade, absorve o mercado formal e informal em correlação de forças; o ir e o vir se constituem em liberdade vigiada horizontal e vertical em eterno movimento.
Se a noite é sinistra, o dia é drástico, mas as relações de poder territorizalizadas, se manifestam em grupalizações, diferenciando defensivos e ofensivos num eterno vir a ser. Mais: as fantasias eróticas, a solidão e o pensar a vida, são absorvidas pela cor cinzenta predominante de sua geografia, onde os cidadãos se perdem e se acham, e os achados e perdidos são encontrados.
 O verde úmido das palmeiras imperiais convive com o chafariz exótico, dando a possibilidade de vender livros em sebos históricos do mundo jurídico, o mesmo acontecendo com as várias quinquilharias do candomblé, além do lanche imperialista do Macbrega que satisfaz o ego do consumo da população miserável.
Enxertados no espaço físico da Praça, encontramos alguns moradores, representantes da classe popular empobrecida, que são os atores principais da luta pela sobrevivência e subsistência: os meninos e meninas de rua, os serebos**, os sofredores de rua, mendigos e catadores de papelão, legítimos representantes, símbolos de uma sociedade injusta, que não divide a renda, não propicia trabalho, escolas, saúde, moradia para todos.****
Para esses cidadãos a esperança não morreu com a crise econômica, ética e política. Eles mantêm um fio de resistência que perpassa as suas existências. São brechas para a expressão da cultura popular e manifestação do lúdico em conteúdo e forma. A sedução que o lúdico exerce, suas possibilidades de denúncia da realidade social, faz com que os valores do lazer possam desempenhar audaciosamente um papel de subversão dos meninos e meninas de rua.
Trata-se de um processo lúdico de resistência, caracterizado por manhas e artimanhas que driblam as armadilhas e recuperam o sentido da recreação, como re-criação; criar de novo, dar vida nova, com novo vigor numa vivência de aventura e de perigo, de avanço e de recuo, de persistência e de sonho, de ternura e violência.
A realização do lúdico se dá no jogo da vida, em atividade livre, conscientemente, tomada como séria e exterior à vida habitual, mas, ao mesmo tempo, capaz de absorver o jogador de maneira intensa, integral e total. No caso específico, é uma atividade de luta, ligada ao interesse material de sobreviver, praticada dentro dos limites espaciais e temporais próprios, segundo uma ordem e certas regras, apenas assimiladas pelos grupos de participantes.
Usam códigos verbais, gestuais e simbólicos, organizam os disfarces e as tramas de operacionalização, com mil e um segredos e mutretas, com estreita mutualidade. Tudo se passa como sendo brinquedo, brincar e brincadeira de uma ação coletiva, cuja prática, a destreza, agilidade se aproxima do desejo de vencer, superar, de mudar via uma disputa, que, na maioria das vezes, é desleal, desigual, mas se constitui um componente da cultura historicamente situada, a partir das relações sociais dadas.
A noção da cultura é entendida como um conjunto de modos de fazer, ser, interagir e representar que, produzidos socialmente, envolvem simbolicamente e, por sua vez, definem o modo pela qual a vida social se desenvolve, pois no reconhecimento de que a atividade do homem está vinculada à construção de significados que dão sentido à sua existência.
Não há separação entre o trabalho e o lazer do menino de rua. Sua relação é interdependente enquanto atuação concreta, enquanto atividade humana. O menino de rua brinca quando trabalha e enquanto trabalha, brinca. E, nessa situação vivencial, reconhecemos o desenvolvimento social e pessoal, o aguçamento preceptivo e a sensibilidade variada que este exercício enseja, apesar da situação drástica e exploradora adversa às condições peculiares de socialização participativa e criativa.
A lógica deste jogo da vida não compactua com a lógica da produtividade, mas denuncia a validade social de maneira invertida aos padrões estabelecidos insuportáveis.
Segundo Rubens Alves, no seu livro Conversa com quem gosta de ensinar, o jogo exprime o anseio por uma nova forma de organização social, organização que proporcione o prazer, apesar da dor, que expresse a liberdade, apesar da coerção. E é dessa forma que existe a possibilidade de se operar, na cultura, a conversão do jogo em política. O lazer pode ser considerado, portanto, como possibilidade privilegiada para a vivência de valores que embasam mudanças, ou abram perspectivas para a mudança de ordem moral e cultural, necessárias para a implantação de uma nova ordem social, como possibilidade de encontros informais que geram valores, estabelecem novos vínculos afetivos, relacionamentos sociais, que são sinais de uma nova utopia.
Estas atividades não conformistas e acomodadas dos meninos de rua, que se constituem sujeitos historicamente situados, criam uma participação contraditória efetiva na sociedade, negando a imposição da coerção de valores, daí a ludicidade ser considerada uma estratégia de resistência, que cria uma das bases, sem ser a única, de discussão e debate para uma sociedade democrática, mais justa e igualitária.
Como afirma HarveyCox, no seu livro Oferta dos Foliões, “talvez os excluídos dos benefícios de uma sociedade sejam os que mais freqüentemente sonham sobre uma outra, entrando às vezes em ação para realizá-la.” E é nesse sentido que o autor vincula a fantasia a um futuro realmente novo dentre os descontentes.
Esses são estes dados reais, de vivência na Praça da Sé, como educadora social de rua que nós persuadem a sugerir aos órgãos responsáveis pelo atendimento da infância e adolescência da cidade de São Paulo (governamentais e não-governamentais) que suas práticas educativas resgatem a pedagogia fundada na criatividade da dimensão lúdica, da imaginação e da cultura, através de atividades de lazer, recreação e jogos relacionados com todas as esferas da vida social deste grupo.
É fundamental, portanto, que se assegure à criança e ao adolescentes o tempo e o espaço para que o lúdico seja vivenciado em todas as propostas educativas, com intensidade capaz de formar a base sólida da criatividade e da participação cultural, e, sobretudo, para o exercício do prazer de viver como um cidadão transformador da realidade social. Este é o significado profético da educação, que tenta esculpir a utopia, na construção coletiva de um novo projeto de mundo como ato pedagógico-político do futuro.
   

                                              






** serebos: velhos que vivem a maior parte de seu tempo sentados nos bancos da praça.
**** Dos 11,3 milhões de habitantes da cidade, 61,4% (7 milhões) vivem nas favelas, cortiços e loteamentos irregulares. Há na cidade 90 mil cortiços ( 3 milhões de pessoas ) e 1600 favelas ( 1 milhão e meio de pessoas ). Morrem 53 de cada 1000 crianças que nascem. (Fonte: Folha de São Paulo - 20.10.91)

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