segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MODERNIDADE E PSICANÁLISE EM MANAUS

          Benedito Carvalho Filho

Qualquer pessoa que esteja acompanhando os ritmos das mudanças que a cidade de Manaus vem atravessando nessas últimas décadas percebe que, mesmo aos trancos e barrancos, a chamada modernidade já está presente, principalmente naqueles “nichos de desenvolvimento” criado por esse capitalismo selvagem em tempos de globalização.
Manaus, nesse sentido, muda e é quase impossível não ser afetado por essas mudanças, mesmo que, aparentemente, elas sejam imperceptíveis.
A juventude, por exemplo, não é mais aquela dos anos 1990-2000, onde já se experimentava grandes mudanças de comportamentos, já sentidos e adotados aqui nessa cidade, mas com menos intensidade com a que estava ocorrendo na região sudeste do país, aonde a psicanálise vinha se propaganda e se consolidando desde o final dos 70, criando uma cultura psi.
No norte e no nordeste, apesar das diferenças de ritmo, a chegada foi lenta, com exceção da Bahia e de Recife que, devido a uma série de circunstâncias, experimentou entre os setores médios de sua população avanços consideráveis, pois existiam muitos centros de estudos freudianos e lacanianos, assim como publicações na área e trocas de experiências. Em Fortaleza a psicanálise chegou lentamente nos anos 90, no período de grandes transformações da cidade e da região com o “governo das mudanças”.
Não tenho informações sobre em que momento a psicanálise passou a ser conhecida em Manaus. Parece que a cultura psi começa timidamente a chegar por aqui tardiamente, quando a Zona Franca ganha certo impulso, favorecendo a vinda de muitas pessoas de classe média para o Estado para trabalhar no Distrito Industrial. As pessoas recorriam (e talvez isso aconteça até hoje) mais a neurologistas e psiquiatras para resolver seus problemas subjetivos, quando não demandavam outros tipos de curas alternativas, como grupos espíritas e de umbandas e, também, aos padres da Igreja Católica e grupos evangélicos.
As universidades da região, ao contrário de outras regiões do país, que desempenharam um papel importante junto à classe média na difusão de cultura psi, não conseguiram ainda difundir a psicanálise, restrita, ainda, aos muros dessas instituições, alojadas nos cursos de psicologia, não criando focos de difusão cultural, como ocorreu (e vem ocorrendo) em outras regiões do Brasil.
Mas, nesses tempos de modernidade, nem sempre as mudanças materiais são acompanhadas por mudanças na ordem cultural, moral e religiosa. A história tem nos mostrado o quanto são poderosas e desagredoras as forças que emergem quando os valores e costumes são destruídos, criando  nova subjetividade, novos desejos, novas demandas, como aconteceu em Viena no final do XIX e que tornou possível Freud trabalhar na clínica com as suas histéricas e, assim, criar o que se chama psicanálise, se diferenciando da psiquiatria e do conhecimento dos neurologistas, ainda preocupados em termos médicos com essa enigmática “doença”. 
No turbilhão dessas mudanças, onde, como dizia Marx, tudo que é sólido desmancha no ar, quais são os mal-estares vividos por certos setores da sociedade de Manaus, em especial a diminuta -mas expressiva -classe média integrada à sociedade de consumo? Até que ponto, em termos de mentalidade, os valores dessa classe média vem conseguindo – e a que preço – se desvencilhar do velho patriarcalismo, tão forte nas elites amazonense? A cultura patriarcal está em crise? Não estarão eles fortemente internalizados, reproduzidos em habitus (para usar uma expressão do sociólogo francês Pierre Bourdieu),recalcados e não elaborados tanto na subjetividade das mulheres como dos homens? Com que intensidade vem ocorrendo as mudanças na família? As separações e divórcios são fenômenos freqüentes na cidade de Manaus ao ponto de abalar as estruturas familiares?  
 Aquilo descrito por Gilberto Freyre no livro Casa Grande & Senzala não terá exercido forte influência nos nordestinos – os que ficaram por lá e os que vieram para cá na época da borracha?  Como isso ainda se manifesta na relação homem e mulher dessa região?
Como (e de que forma) a cultura do barracão, onde o coronel de barranco mandava e desmandava ainda está presente no inconsciente do homem e das mulheres amazonense de todas as classes sociais?
 Numa região, como a Amazônia, cuja cultura foi fortemente marcada pela influência indígena, como se combinou e interagiu a escassez de mulheres com a cultura do barracão? Que mapas subjetivos se configuraram e  quais transformações estão passando?
Quais as novas formas de sociabilidades na cidade de Manaus?  Como a classe média vem redefinindo seus gostos e desejos, suas formas de consumo e as novas maneiras de pensar e sentir?
Alguns fatos de nosso cotidiano indicam que coisas importantes vêm acontecendo. O impacto do crescimento da cidade não é sentido da mesma forma entre as classes sociais. A emergente classe média, oriunda das elites que controlam o poder e os melhores empregos está vivendo um mal estar avassalador. Isso é visível, por exemplo, no número impressionante de pessoas tomando tranqüilizantes como um meio de lidar com o vazio e angústia.
A velocidade das mudanças é muito brusca e nada deixa de entrar no redemoinho da vida, causando crises existências, sensação de instabilidades em todos seus aspectos, principalmente na família, pois os papéis dentro da estrutura familiar vêm se desnaturalizando e provocando rupturas e solidão.
Nada é mais seguro, como no passado. As relações afetivas não ocorrem mais por causa de heranças e consentimentos, mas através de uma sociedade de afetos, onde o que vale é estar feliz enquanto se ama e não até que a morte os separe (com todas as suas hipocrisias e camuflagens).
A vertigem da vida urbana, com seu trânsito caótico e a ânsia de consumo também exige outro tipo de atitude mental, predominando o individualismo, a atitude blasé, como dizia o sociólogo alemão Simmel.
A indiferença, associada como o medo de uma metrópole que se urbaniza selvagemente como Manaus, cria a cultura do medo, o pânico, o terror e uma subjetividade onde os cidadãos evitam os espaços públicos para não se deparar com o diferente, o outro, temido e evitado, o que só aumenta a necessidade de isolamento nos condomínios fechados, vigiados por segurança privadas para aqueles que podem pagar. Daí para a neurose, as fobias e obsessões as chamadas síndrome de pânico é um passo.
Não menos importante nesse processo todo são as transformações da mulher, fenômeno que durante o século XX que fez com que o historiador marxista Erich Hobsbawn no seu livro A Era dos Extremos (o breve século XX) afirmasse que foi a única revolução que deu certo.
Hoje as mulheres estão nas universidades, lutando por uma profissão, estão trabalhando nas fábricas, como aqui em Manaus, onde a exploração é grande.
As jovens de hoje não imaginam como vivia a mulher antes da invenção da pílula anticoncepcional; não sabem que é sentar num bar e ficar sujeita às abordagens machistas. Foram grandes os avanços femininos no sentido da emancipação. Avanços objetivos e subjetivos, gerando aqui que o sociólogo Antony Giddens chama a revolução da intimidade.
Evidentemente que essa emancipação, essa revolução, não foi acompanhada pelo que detinha o poder patriarcal: o homem. Por isso ocorrem crises nas relações com as mulheres que não desejam ser aquela mulher que chamava a rainha do lar. Essa é uma das razões do mal-estar no interior da família nuclear. Daí o aumento da violência dentro de casa tem assumido grandes proporções no Brasil e aqui em Manaus. Os jornais vêm mostrando os índices alarmantes de casos de violência contra a mulher.
Por isso, em algumas cidades, não faltam mercado de terapias alternativas, onde estão presentes e disponíveis dezenas de novas técnicas terapêutica, massagens, relaxamentos, aconselhamentos, seitas orientais, leituras de cartas astrais, cursos de regressão a vida passadas, etc.
Não faltam também os chamados livros de auto-ajuda. As grandes livrarias das cidades expõem nas prateleiras, visíveis ao público, esses livros e a procura é enorme.
Como conseguir o equilíbrio? Como conseguir o ajustamento no casamento? etc.
Sistemas americanos novíssimos ensinam o caminho da felicidade. Você quer ficar rico? – pergunta. Os livros se dispõem ensinar como você pode fazer sua terapia, massagear seu ego, manter o equilíbrio narcísico para se mover no caos que é sua vida.
Fico impressionado, espantado e deslumbrado como os homens e as mulheres são capazes de imaginar, sonhar, delirar, principalmente quando a dura realidade nos puxa para baixo. Talvez precisamos delirar para não morrermos sufocados.Então  criamos e recriamos as nossas ilusões, os “além da vida” e queremos gozar a todo custo, atavicamente.
Queremos a felicidade delivery, que venha embalada, de preferência que seja rápida e nos leve ao céu, ou ao orgasmo inalcançável. Ou algo que disfarce a ausência de desejo, esse vazio que a monogamia compulsiva dos casamentos insatisfeitos com sofreguidão suporta. Sabe-se lá a que preço.?
Um dos efeitos visíveis dessa insatisfação sexual compulsória é essa proliferação do saber sexual. Tenho a impressão que nunca se fez tanto sexo como os dias de hoje. Para isso há invenções para todos os gostos.
 Como diz o psicanalista Contardo Calligaris, saber vendido e comercializado, claro, já que você tem que ser sexualmente feliz e não sabe o que isso significa.
Esses saberes – continua o psicanalista - proliferam e constituem notícias estrondosas na mídia. Primeiro foi o “ponto G”, que é preciso solicitar; depois se anunciou a “descoberta” de uma posição amorosa que possibilitaria o gozo feminino, uma espécie de papai-mamãe alterado que deve existir desde a Idade do Ferro. É de morrer de rir. Mas as pessoas lêem. Mas transformar a sexualidade em manual talvez seja a única forma efetiva de perversão sexual.


O QUE É QUE A PSICANÁLISE TEM A VER COM ISSO?

Eu diria: muita coisa. E explico:
Quando uma sociedade encontra-se emaranhada nas próprias teias da estrutura social, econômica, política, cultural, ética e religiosa produzidas para a existência, e, ao mesmo tempo geradora de miséria, de violência (das mais diversas formas), é oportuno refletirmos um pouco o que a psicanálise tem a nos dizer frente a tudo isso.
Frente à realidade onde estamos imersos a psicanálise não pode ficar enclausurada entre quatro paredes, como se nada estivesse passando ao seu redor.
Não podemos esquecer que Freud, em Viena, na sua época, mobilizou reações violentas enquanto divulgava seus conhecimentos sobre o inconsciente, razão suficiente para despertar a ira coletiva. Não somente pelo fato de ser judeu e ter vivido numa época de anti-semitismo cruel e violento, mas porque mostrou que não somos senhores em nossa própria casa, que o desejo nos move e que não somos centro do universo. Negamos o que somos e o que (e como) desejamos, encobrindo-nos de hipocrisias, de falsas racionalizações e temos medo das verdades (sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos).
Por isso negamos a nossa realidade psíquica, esse mundo interior estranho, porque temos medo de nossas estranhezas, de nossas invejas e mesquinharias. Daí vem o medo da psicanálise que não compactua com a mentira e opta não por caminhos suaves que é essa felicidade prete-a-porter água com açúcar, temerosa do sofrimento, do envelhecimento e a morte, o nosso destino.
Da mesma forma como negamos a nossa própria vida, o nosso estranho mundo, negamos a realidade social. Marx, juntamente com Freud, não temeu em nos mostrar no espelho, quando fez com que víssemos as raízes de nossa alienação através da razão. Por isso são os dois gigantes perseguidos em sua época.
Posso dar um exemplo:
Tomemos a fome. A fome, em si mesmo, é exclusão, uma condição humana no limite da sua existência. Exclusão da terra, da renda, do emprego, do salário, da educação, da economia, enfim, da vida e da cidadania.
Quando a pessoa chega a não comer é porque tudo lhe foi negado. É uma espécie de cerceamento moderno, de exílio. A morte (ou melhor, a pulsão de morte) em vida. O exílio da terra.
Poderíamos perguntar: o que acontece em uma sociedade onde os indivíduos se vêem frustrados no seu direito primário de subsistir?
É fato conhecido que, no momento em que as massas sentem-se frustradas em suas satisfações, como mostrou Freud, são inevitáveis ações individuais e grupais, explodindo em atos de violência. Os saques denunciam sintomas sociais de um meio que vem frustrando até os limites às forças instintivas, necessidades básicas de sobrevivência. São soluções catastróficas que põe em xeque o chamado processo civilizatório.
Quando esses fins foram substituídos pela carência excessiva ou a insacidade da gula, pelos fins narcísicos do eu acima de tudo, ou pelos fins da inveja que visa a destruição do “bom”, os fins culminados serão a morte e não mais a vida.
Enquanto as estruturas econômicas se colocarem sob a dominância dos fins instintivos a serviço da morte, como nos fascismo, no nazismo e nas ditaduras militares, nenhum código de ética econômica, política e religiosa será suficiente para a preservação da vida individual e coletiva.
A psicanálise, numa sociedade desigual e concentradora da renda, como Manaus, não será possível existir enquanto a maioria dos homens e mulheres estiverem emaranhados na luta pela existência. Ou, como dizia a filósofa Agnes Heller, é preciso passar da necessidade como carência, para as necessidades como projeto.
Talvez seja por isso que a recepção da psicanálise esteja chegando de forma tão tímida e destinada apenas a uma pequena e reduzida parcela das camadas médias. Não foi sem razão que ela foi criada e se propagou numa cidade européia onde a civilização estava mais avançada. Talvez ela seja pouco visível aqui em Manaus, uma cidade onde a modernidade, no sentido pleno da palavra, não é uma realidade.
Nem mesmo na Universidade, onde o conhecimento da psicanálise deveria ser divulgado, não só nos cursos de psicologia, mas em todas as áreas de humanas, ela deixa de ser vista com certa desconfiança, com desdém de certo marxismo stalinista, que a via como uma coisa pequena burguesa. Por isso, foi expulso da União Soviética o psicanalista alemão Wilhelm Reich, quando começou o programa da Sex Pool, uma tentativa de desenvolver programas de educação sexual na Rússia, em uma época patriarcal, onde o autoritarismo predominava. Era demais para um homem com o perfil de Reich.
Esse é o caráter revolucionário da psicanálise, que, unindo Freud-Marx, buscava saídas alternativas para a miséria (objetiva e subjetiva), como vimos no livro Escuta Zé Ninguém, que todos deveriam ler e perceber como o Zé ninguém está bem presente na nossa sociedade.

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