quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A CIDADE DE SÃO PAULO, ENTRE O SUBLIME E A BARBÁRIE


Sérgio Adorno, sociólogo, professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, membro do Núcleo de Estudo da Violência, USP.


Vou abusar um pouco de meu ofício de professor, procurando, no entanto, não abusar tanto. Vou fazer minha exposição fundada numa pesquisa que venho desenvolvendo desde alguns anos sobre a história de assistência social em São Paulo, particularmente no período de 1880 a 1920. É uma pesquisa que tem como objetivo entender um pouco a questão da pobreza num determinado momento da história da cidade, num período muito específico que é o período de formação desta metrópole. É um período extremamente importante.
Poderíamos dizer que, por volta de 1880, predominava em São Paulo as chamadas obras caritativas, cujo papel era simplesmente oferecer um apoio material, um conforto e apoio moral às pessoas que se encontram vagando pelas ruas. Um número considerável de pessoas vagavam pela cidade, pessoas doentes, imersas numa situação de pobreza bastante crítica.
Por volta de 1910 nós vamos verificar uma emergência em São Paulo de outro tipo de assistência que não é mais exclusivamente caritativa, mas que procura ser o que poderíamos chamar de assistência higiênica, que visa uma espécie de saneamento social e moral da cidade. É uma assistência fundada em pressupostos técnicos, baseados nas concepções científicas vigentes na época. É, sobretudo, uma assistência social mais associada à medicina.
Trata-se de uma espécie de higienização do trabalho e do serviço social do período. É um momento em que surgem as chamadas grandes formas de assistência, como, por exemplo, a Beneficência Portuguesa. As que já existiam irão sofrer transformações acentuadas, como, por exemplo, a Santa Casa, todas elas muito preocupadas com o controle social da população pobre.
Ao fazer essa pesquisa eu me dei conta que ela é importante para conhecer a cidade de São Paulo nesses 40 anos. O que vou relatar um pouco para vocês é um pouco a leitura que faço da cidade nesse período, trabalhando com a hipótese de que entendendo um pouco o que se passava nessa época seremos capazes de compreender esse nosso momento presente, sobretudo a Praça da Sé como uma espécie de metáfora da cidade. É um pouco esse exercício que vou fazer, tentando falar sobre o passado, tentando aproximar com o presente. Ou, como se diz comumente, tentando tornar o passado familiar.
Acho que tanto no final do século XIX como no início do século XX, e mesmo agora na era contemporânea, há uma sensação generalizada de que a cidade é um lugar privilegiado de decadência moral. Um lugar de decadência dos costumes e da sociabilidade de uma maneira geral. É o lugar do crime, da loucura, da devassidão. Essa percepção se deu particularmente no começo do século e penso que essas visões aterradoras que se tem, às vezes, da Praça de Sé também são visões que tentam mostrar o espaço como espaço pleno de decadência moral.
Essa tentativa de aproximar esse passado e esse presente através dessa percepção da decadência é o que eu vou fazer, tentando reconstruir algumas identidades e algumas diferenças entre a cidade do passado e a cidade do presente, mostrando, ao mesmo tempo, como a Praça de Sé é um espaço onde se dá de modo novo uma nova percepção dessa decadência.


A CIDADE SÃO PAULO NO SÉCULO XIX  E XX

No final do  século XIX e início do século XX o que é a cidade de São Paulo ?
 Se olharmos a cidade de São Paulo por volta de 1870 era ainda um burgo de estudantes. Diziam os historiadores e os principais cronistas da cidade que a cidade era esse pequeno burgo. Aliás, a palavra burgo de estudantes aparece num livro de um historiador paulista chamado Ernani da Silva Bruno, autor de um livro chamado História e Tradições da Cidade de São Paulo. Nesse livro, o Ernani mostra que por volta de 1870 a cidade de São Paulo existe em função da Academia de Direito. Na verdade ela está constituída propriamente em função dos estudantes. Tudo se constitui em volta da Academia. As alfaiatarias, as confeitarias, o mundo do lazer, as livrarias, a biblioteca, tudo é feito, segundo esse autor, em função dos estudantes.
Até 1870, também, a cidade está envolta  em uma série de mistérios. São Paulo, no imaginário dessa época, é uma cidade misteriosa. Pesquisando o que escreveram os cronistas dessa época temos a sensação que é uma cidade de fantasmas, histórias que se perdem no passado. Uma cidade muito provinciana, muito regionalizada.
A partir de 1870 esse perfil começa a ser alterar por uma série de razões. A principal delas são as mudanças que se operam na economia brasileira e que vão transferir, já desde a segunda metade do século XIX, o eixo econômico do nordeste para a região sudeste do país.
Desde 1830, quando o café vai se constituir na principal atividade econômica dessa sociedade, isso vai significar uma grande concentração de riquezas e rendas que vão propiciar, de diferentes modos, o desenvolvimento urbano. Por volta de 1870 nós vamos ver grande número de cafeicultores que vão progressivamente transferindo-se de suas fazendas do interior e vão passar a administrar suas rendas, os seus negócios a partir da capital. Só para termos uma idéia, a cidade, construída em torno do chamado triângulo, na região compreendida entre a Praça da Sé, Praça da República e da região da Santa Ifigênia. Em 1870 a cidade era muito circunscrita a esse espaço e pouco a pouco vai expandindo seu perímetro urbano, mudando sua fisionomia, agregando novas pessoas. A partir desse ano, portanto, vamos ter uma cidade em franco desenvolvimento com mudanças substanciais nas relações sociais.
Nós sabemos que desde esse ano a cidade vai sofrendo metamorfoses, com a substituição progressiva do trabalho escravo pelo trabalho livre, o que vai transformar decisivamente as relações sociais, colocando o trabalho livre como sendo a forma predominante das relações sociais nessa sociedade. Isso vai se acentuando ainda mais a partir de 1880. Nós sabemos, por exemplo, que o movimento abolicionista, com todos os seus matizes estava bastante acentuado em São Paulo. A Academia de Direito é um dos focos desse movimento. Não sei se vocês sabem, mas informo que um dos movimentos mais radicais do período abolicionista tinha um estudante da Faculdade de Direito, o Antônio Bento, que era o líder maior. Só para vocês terem uma idéia como a questão abolicionista esteve profundamente presente nessa cidade e como foi um lócus político extremamente importante na Academia de Direito.
Como conseqüência, isso significou que todo o perfil da cidade vai se alterando. Surgem novos tipos humanos e a cidade não é mais apenas uma cidade de estudantes com seus serviçais. Juntamente com seus antigos ocupantes a cidade passa a congregar novos atores, os proprietários, comerciantes, filhos de comerciantes, trabalhadores livres das mais diferentes categorias. Enfim, é uma cidade que vai apresentando de 1870 até mais ou menos 1920 um grande crescimento demográfico. Para termos uma idéia, entre 1890 e 1900 a cidade começa ter um crescimento populacional acentuado. Entre 1900 e 1910 o crescimento da população é da ordem de 244%. Isso, para o nosso espanto, em dez anos. Foi um verdadeiro pool demográfico. Isso significou um maior número de pessoas disputando um espaço, disputando os mesmos equipamentos urbanos. Esse é o novo cenário que temos diante de nós. Juntamente com esses novos personagens aparecem em cena também os imigrantes de diferentes matizes, sobretudo portugueses, espanhóis, italianos, alemães e, a partir de 1910, os orientais.
Já no início do século XX existe uma grande preocupação do poder com relação à cidade. Esse período que vai de 1900 a 1920 é o momento que se formula um projeto de reforma moral e social dos indivíduos, implicando, inclusive, no confinamento de alguns dele em instituições especializadas. É o controle social da cidade que crescia. Começa a se intensificar as práticas judiciais e médicas para isolar as pessoas consideradas desajustadas. A modernidade da cidade exigia, portanto, um propósito de isolamento. Tratava-se, em outras palavras, de conferir ordem a uma população multifacetada e de ordenar tudo o que parecia em declínio.
Com o fim da escravidão, a imagem de uma sociedade cindida entre senhores e escravos vai desaparecer e no lugar dela vão aparecer às imagens de horrores e, sobretudo, as imagens do perigo que representa a invasão dos pobres no espaço urbano. Isso para termos uma idéia do que é essa sensação da cidade de São Paulo no final do século XIX.
Essas mudanças se operam no plano  econômico, social, demográfico, político e cultural,  e vão colocar, segundo meu ponto de vista, quatro problemas para o planejamento urbano. Desafios que eu chamo de quatro diversidade. A diversidade dos espaços, a diversidade dos tipos humanos, a diversidade dos costumes, a diversidade dos ambientes. Essas quatro diversidades, como tentei mostrar, são produtos de uma percepção da cidade como um espaço problemático de sociabilidade, de contratos de uns com relação aos outros. Isso significa que, no final do século XIX e início do século XX, a cidade de São Paulo vai ser expressa através de três imagens estéticas antagônicas. De um lado, o que podemos chamar de estética do sublime, e, do outro, o que nós poderíamos chamar de estética do terror.



              

                   O QUE É A “ESTÉTICA DO SUBLIME”?


                 A estética do sublime diz respeito à sensação que o advento da modernidade trouxe à cidade. A indústria, as artes, as ciências, a expansão dos serviços de lazer, a expansão da circulação de informações através dos jornais, livros, a modernidade trazida pela rede ferroviária. No início do século, modernidade é, sobretudo, a máquina e a máquina é, por excelência, a ferrovia. Esses são símbolos modernos, e dela nada havia o que suspeitar. Modernidade era progresso e progresso está associado à vida urbana, a existência de uma arte afinada com uma indústria e a expansão do que nós chamamos civilização.
Um conjunto de padrões sociais e de valores culturais, afinados com a idéia de contrato. A sociedade nesse mundo moderno é pensada como contrato, resultado do fato de que os vários indivíduos, embora posicionados de forma diferente na sociedade, aceitam participar da vida social. Alguns, na condição de proprietários, outras na condição de trabalhadores. Um contrato que supõe, em princípio, igualdade jurídica, através das quais diferentes contratantes entram nesse contrato.
A idéia é que esse contrato é um contrato entre iguais e isso funda uma sociedade construída à imagem e semelhança das leis de mercado. Sobretudo os setores burgueses, os setores que investiam na expansão urbana e industrial apostaram muito nessa estética do sublime. Não foi por acaso que, no início dos anos dez deste século, apostou-se na possibilidade de fazer de São Paulo a capital do capital, torná-la o maior centro desenvolvido, senão do país pelo menos da região sudeste.





A estética do sublime diz respeito à sensação que o advento da modernidade trouxe à cidade. A indústria, as artes, as ciências, a expansão dos serviços de lazer, a expansão da circulação de informações através dos jornais, livros, a modernidade trazida pela rede ferroviária. No início do século, modernidade é, sobretudo, a máquina e a máquina é, por excelência, a ferrovia.






A “ESTÉTICA DO TERROR”



Ao lado disso, foi surgindo também uma estética do terror. Essa estética do terror parte do sentimento e da constatação de que, apesar do progresso, o progresso também traz o medo. O medo de que? O medo da perda de controle dos espaços sociais. O medo do crime, o medo da loucura (a desrazão ), o medo da prostituição, o medo dos acidentes, o medo das desgraças e, sobretudo, o medo dos inimigos visíveis e invisíveis que estão espalhados pela cidade.
Quem são esses inimigos ? O estrangeiro que desobedece, que desafia as regras da sociedade nacional, o medo dos recém egressos da escravidão (os negros) que reivindicam direitos iguais aos brancos, dos vagabundos que se recusam a participar do contrato, as crianças abandonadas que denunciam a desordem familiar e, sobretudo, os doentes que denunciam os perigos de contágios pouco regulamentados.
Essa estética do terror  é uma estética que, ao lado do sublime, mostra o outro lado da cidade.
Essa cidade é iluminada pelo resplendor por todas as conseqüências trazidas pelo progresso e, por outro, ela traz também o seu lado perverso. Ela traz um entrecruzamento caótico e pouco regulamentado de tipos humanos e de costumes. Alguns deles herdados do mundo agrário tradicional e, outros, afinados pelo mundo urbano e modernizado.

RESPOSTAS ÀS DUAS VISÕES ANTAGÔNICAS DA CIDADE

A questão que se colocou foi o que fazer diante dessas visões antagônicas da cidade. Como elaborar uma proposta e um projeto que pudesse dar conta desse medo, desse terror que se avizinhava da cidade?
A solução colocada pelas elites e, sobretudo, pelos planejadores da cidade no início do século XX foi o saneamento moral e higiênico da cidade. Ou seja, tratava-se de combater os focos de contágios, de doenças consideradas orgânicas e, ao mesmo tempo, morais. Tratava-se de reconstituir os vínculos perdidos entre os indivíduos e as instituições e, daí, a necessidade de enfrentar os problemas e as adversidades que se colocavam para a consolidação de uma ordem contratual fundada na substituição do trabalhador escravizado pelo trabalhador livre. Tudo isso fundado, como vimos, no contrato, na lei, e numa certa concepção de justiça e num certo padrão de reciprocidade e sociabilidade.
Quais eram as adversidades? A primeira deles diz respeito ao espaço. Se olharmos o início do século XX nós vamos ver que as mudanças operadas na forma de acumulação das riquezas mudaram substancialmente. Até 1850 a forma predominante de acumulação de riqueza, sobretudo na região sudeste, era a propriedade escrava. Ser rico significava ter a propriedade escrava. No final do século XIX, sobretudo no início do século XX, muda-se a forma de propriedade e a forma de riqueza. A riqueza não mais se expressa sobre a forma escrava, mas nos bens e imóveis. Propriedades das indústrias, do comércio, e, sobretudo, propriedade do dinheiro e de ações. O início do século XX conheceu a formação de uns cem números de companhias de seguro, de companhia de ações, através dos quais os capitalistas, que haviam acumulado riquezas na cafeicultura, vão poder proporcionar a urbanização da cidade de São Paulo. Vão se implantando, então, todo o sistema de canalização de águas, todo o sistema de edificação, arruamentos, abertura de avenidas, o sistema de traçados surgidos na cidade no início do século XX, sobretudo ao longo dos primeiros anos.
Esse processo de urbanização significou a construção de novos edifícios e a destruição dos antigos, a abertura de novas ruas. A solução, inclusive espacial e arquitetônica das ruas sinuosas de São Paulo.
O que a urbanização vai fazer é abrir esses caminhos, asfaltar as ruas. Não sei se vocês conhecem os projetos de criação da Av. Paulista. Em 1910 essa avenida está totalmente aberta. É uma avenida extremamente européia. Se vocês vissem as fotos da cidade, perceberiam algo absolutamente impressionante. Não sei se vocês já sabem, o projeto do metrô de São Paulo foi formulado como projeto pelo Le Corbusier. Essa proposta que nós temos hoje é uma proposta antiga. O que mostra que a cidade era uma cidade pensada para ser moderna. Mas, o que significa isso?  Isso significava vencer alguns obstáculos e os principais estavam associados com a concentração da população pobre na zona central da cidade. Essa urbanização significou basicamente as destruição dos cortiços e a destruição das habitações populares e, sobretudo, a expulsão e o afastamento dessas populações para a periferia da cidade.
O projeto de modernização significava, como já vimos, transformar os não-proprietários em trabalhadores assalariados. Mas o parque industrial de São Paulo no início do século XX é muito reduzido, constituído principalmente por empresas familiares.
Na verdade, se formos analisar mais detidamente, vamos verificar que  grande parte dessas indústrias  eram empresas de fundo de quintal. Não era uma base industrial que permitisse absorver grande quantidade de trabalhadores.  Normalmente eram trabalhadores ligados aos setores informais da economia: engraxates, padeiros, sapateiros, vendedores ambulantes. Só para vocês terem uma idéia eu vou me permitir ler a quantidade de ocupações que existiam na cidade neste período.
Vendedores de queijos frescos, padeiros, vendedores de batata, cebola, verduras, frutas, aves, ovos, peixes, miúdos de carne, aos quais se associavam carvoeiros, vendedores de utensílios e ferramentas, reparadores domésticos, tintureiros, vendedores de resíduos industriais.
Junto a esse mundo caberia elencar charreteiros, colchoeiros, carroceiros, carreteiros, barqueiros, carregadores de sacos, composta por uma massa heterogênea de brancos, pardos, imigrantes paupérrimos de diferentes nacionalidades, vendedores de bugigangas e repassadores de mercadorias roubadas, jornaleiros, capinadores de quintais, lavadores, vendedores de pipoca, balas e sorvetes, artistas ambulantes, instrumentistas, atores, malabaristas, cantadores, lavadeiras, passadeiras, parteiras, limpadoras, entregadores de aviso e de carta, ajudantes de igreja, auxiliares de lojas e engraxates.
Relato isso aqui só para vocês terem uma idéia como era difícil uma cidade como São Paulo absorver trabalhadores não necessariamente voltados para a indústria. A cidade que apostou na modernidade industrial conviveu com uma grande diversidade de tipos humanos, uma grande diversidade de trabalhadores. Mas eles tinham algo em comum: a pobreza e tudo que ela significava em termos de condições de trabalho e de vida. Há relatos contundentes da vida dos trabalhadores da cidade de São Paulo no final do século XIX e início do século XX que falam das condições de habitação, de alimentação e as condições de trabalho de uma maneira em geral, mostrando como elas são profundamente precárias.
Que outros tipos de adversidade a cidade enfrentou?
Enfrentou a chamada adversidade de costumes. A despeito da modernidade, a cidade de São Paulo tem uma densa rede de relações sociais, de formas de solidariedade e conflitos muitas vezes pouco compatíveis com os padrões de modernização urbana. O padrão básico de sociabilidade estava fundada nas relações tetê a tetê, nas relações intersubjetivas, apelando, muitas vezes, para  proximidades, para a caracterização moral das pessoas e, sobretudo, para um tipo de relação em que a violência era um componente básico da estrutura social.
Lendo os depoimentos da cidade de São Paulo nesse período verificamos coisas surpreendentes. As brigas entre os vizinhos, as brigas de ruas, muitas brigas entre mulheres, por exemplo, entre condutores de veículos e transeuntes. A cidade, conforme poderemos verificar nesses relatos era marcado pelos padrões de violência, onde a sociabilidade violenta, herdada do período colonial, sobretudo do escravismo, era a tônica. As elites paulistas só ofereciam essa linguagem; só sabiam lidar com o controle social no chicote. O problema é que a cidade não é o lugar do chicote, mas dos trabalhadores livres; a cidade não se funda na repressão, mas no consentimento. Eram os problemas que a cidade tinha que resolver.
Quero chamar atenção nesse momento para dizer que as elites tinham grande preocupação com o ambiente urbano. Elas e os planejadores enfrentaram sérios problemas, muitos ligados, sobretudo à criminalidade em 1910. Há uma sensação de que a cidade é um lócus privilegiado de delinqüência.
Há um estudo clássico sobre essa questão do historiador Boris Fausto que fez um estudo fantástico sobre a criminalidade em São Paulo entre 1880 a 1920. Lendo esse livro a gente tem uma sensação que ele está se referindo a São Paulo dos anos 90. As mesmas preocupações com relação à violência criminal, com relação aos delinqüentes, com relação ao aumento da criminalidade aparecem de uma maneira decisiva na década de 10.
Outra preocupação é com a loucura. A grande percepção é que a cidade é povoada por indivíduos não necessariamente portadores de doenças mentais. A grande preocupação é com a disseminação e a circulação dos loucos pela cidade. Outra preocupação é com as crianças que passam pelas ruas. Há toda uma preocupação, sobretudo para impedir que elas caíssem na delinqüência ou na prostituição.


PROJETOS HIGIENIZADORES ANTIGOS RESSURGEM NA PRAÇA DA SÉ ATUAL: VELHOS TEMORES, ANTIGAS TRAGÉDIAS, NOVAS FARSAS

O que há de comum entre esse passado e esse presente dos anos 90?
Se a gente fizer um estudo sobre a percepção dos moradores da cidade, particularmente sobre a Praça da Sé,  a metáfora da cidade, nós vamos ver os mesmos temores do passado ainda estão presentes.
Qual é o temor da Praça da Sé? É o temor com relação à diferença, o temor da possibilidade de que outros cidadãos possam compartilhar o mesmo espaço. É o temor de que os indivíduos diferentes possam dividir o direito à cidade, possam dividir o direito à circulação, à troca e a reciprocidade.
O que está em causa hoje na Praça da Sé é a idéia de autonomia, é a idéia da cidadania. É a idéia de que a cidade possa conviver com suas diferenças e, se possível, tolerar as desigualdades; que seja possível conviver com o medo, com as incertezas e aceitar direitos iguais para indivíduos e grupos que são diferentes: os brancos, os negros, as mulheres, as crianças.
O que hoje está em discussão na Praça da Sé é o fato dela ser vista como um espaço perigoso. Também o fato do controle social ter falhado, se dissipado. O que se propõe como remédio para sanear esse espaço perigoso é exatamente aquilo que se propunha há 50, 70 anos atrás. Ou seja, repor o controle, criminalizar o espaço urbano, identificar o espaço degradado como o espaço de classes populares consideradas como dificuldade e obstáculo para o avanço da modernidade, do progresso. Isso significa, em outras palavras, a necessidade de repor os controles sociais.
É assim que eu interpreto essas propostas de aumento dos efetivos policiais na Praça. É assim que eu entendo a proposta de higienização e saneamento da Praça da Sé.
Eu, como cientista social, acho que se essa proposta se apresenta como tragédia, me parece que a segunda vez repete como farsa, para lembrar uma frase de um pensador do século XIX. É contra essa farsa, contra esse medo, contra essa possibilidade de ver o espaço como espaço esquadrinhado, segmentado, dividido, que exclui o cidadão, que devemos lutar.
Espero que a gente tenha aprendido a lição de um passado que demonstrou  que essa solução de controle não democrático não pactuado, não discutido, não é uma solução que dê certo. Há 70 anos não deu. Em minha opinião, como pesquisador, se repetir essas fórmulas não dará certo.   








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