terça-feira, 7 de agosto de 2012

A DESCOBERTA DA SEMENTE E NOSSAS TRAVESSIAS

                                      ( Benedito Carvalho Filho)

                                      A impressão que eu mais recordo
                                      do tempo em que comecei a ir para
                                      a escola foi a descoberta de que  a
                                      banana tem semente, que ela nasce
                                     da semente”. (De uma aluna)

A vida de cada um de nós é como umas grandes colchas de retalhos aonde vão sendo impulsionados pelo desejo de viver, de amar, de estar vivo. É ele que, invisivelmente, vai definindo as nossas trajetórias de vida, sem que a gente perceba. Trajetórias tecidas no meio de contradições, de lutas, de perdas (e danos), de alegrias e tristezas. Não há um caminho já dado, pronto e acabado, um destino inexorável, um plano. O caminho se faz vivendo, andando, fazendo-se e refazendo-se, se autocriando.
Às vezes, quando estou em sala de aula, pergunto-me: quem são essas pessoas (chamadas, genericamente, de alunos e alunas)? Pessoas que um dia se espantaram, ao descobrirem que da semente nasce a bananeira. Pessoas marcadas por tantas histórias e estórias, reais e fictícias. Histórias de famílias, de amores e desamores, de perdas e frustrações que deixaram marcas visíveis e invisíveis e os tornaram o que são hoje.
         Cada um de nós constitui um ser singular, único. Mas o que nos move e nos torna vivos? O que fez (e faz) com que sejamos seres pulsantes, desejantes, abertos para as mil possibilidades que a vida nos oferece?
O Nietzsche tem um livro onde ele se pergunta: Como me tornei o que sou hoje? Como foi (e está sendo) a trajetória de cada um de nós até agora? Uma trajetória “é uma seqüência cronológica de fatos (...), sendo que todos os fatos destes é uma experiência onde habitamos um ou vários lugares e por ele somos habitados. Isto quer dizer que somos afetados por múltiplos e variados elementos que constituem cada um destes ambientes, o que produz experiências mais variadas.” (Cartografia Sentimental do Desejo, Suely Rolnick p. 13)
Veja vocês o que ela está dizendo. A Samara, por exemplo, nasceu em um lugar, antes de chegar à idade razão. Foi um dia criança e adolescente no pequeno-grande mundo em que viveu. Isso lhe afetou profundamente, mesmo que ela não tenha consciência. Da mesma forma aconteceu com Jessica, Gabriela, Irlândia, Nayara, Izabelle, Camila, Rayssa, Rosangela e todas que vejo diante de mim. São pessoas que viveram em ambientes diversos e que trazem em seus corpos, em suas mentes as experiências do meio em que viveram (e vivem). Ambiente que influenciou sobremaneira as suas maneiras de sentir, de pensar e desejar. Nesses ambientes, todas elas construíram seus imaginários, suas percepções.
E – o que é surpreendente - cada uma de vocês pode viver o mesmo ambiente e ser afetado de múltiplas formas. Uma, por exemplo, pode ter sentido uma curiosidade agradável quando descobriu o mistério da semente da banana que nascia, outra pode ter sido sensibilizada por algo diferente. É esse mundo externo (que é o meio social de onde vivemos), mais as experiências que vivenciamos que marcam a nossa vida, de uma forma ou de outra.
Uma coisa curiosa no diz a autora na página 14. Diz ela:
“Um critério possível para avaliar e inventariar estas experiências refere-se aos graus de potência com que a vida se afirma em cada uma delas. Este grau depende basicamente do quanto estamos abertos para acolher os afetos mobilizados por cada experiência, sejam eles de que espécie for, dos mais fáceis aos mais difíceis, o quanto mais nos deixarmos afetar por este estado inédito que se apresenta e que fica sobrando em relação aquilo que compõe nosso atual equilíbrio. Esta sobra ou excesso nos mobiliza e nos exige a invenção de um novo equilíbrio feito de sua incorporação.( o grifo é meu)
Olha só, por exemplo, o que nós diz Nietzsche :

"O homem é corda distendida entre o animal
e o super-homem: uma corda sobre um abismo;
travessia perigosa, temerário caminhar,
perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar."
Nietzsche "Assim falou Zaratustra", 1883


A vida é isso: amar o universo e seus temores, como diz a canção, pois viver de verdade não depende somente da quantidade de tempo que se vive, mas da intensidade com que se vive os momentos. É uma travessia perigosa e única para quem está disposto a sair de sua condição animal que recebe tudo passivamente e busca recriar a cada momento sua existência, pois a vida, enquanto pulsa, é sempre uma autodestruição criativa, um reinventar-se permanentemente, mesmo que seja do nada, mesmo que seja na situação limite, como a morte.
Estamos acostumados, às vezes, a levar uma vida medíocre, longe das intensidades e desafios porque temos medo de perder o pé ou o controle das situações. Temos medo de mudar, de nos desequilibrar, de ousar, de caminhar no terreno perigoso e mergulhar em nossos caos e abismos e assim vamos vivendo a vida, sem muita potência, sem nos lançar em novas experiências.
         Todos imaginam que o que pensamos de nós é o que é verdadeiro. Construímos uma idéia de nossa identidade é única e imutável, que temos uma essência que nos acompanha até o dia que abandonamos o nosso ego e o nosso corpo. Nunca imaginamos que a nossa biografia, a nossa identidade, são dimensões que desconhecemos, e, assim, fechamo-nos para os mistérios que habitam o nosso ser. Mal sabemos que a vida que estamos vivendo é ditada por meras convenções sociais, como se estivessem repetindo aquilo que nossos avós e pais sempre fizeram ( lembrem-se do que aprendemos sobre Durkheim).
Reconhecer esse "outro lado" é estar atento e trabalhar a nossa subjetividade, o nosso mundo interior e conhecer esse nosso lado invisível que age em nosso ser sem que tenhamos consciência, pois o que chamamos consciência é somente uma ponta de um iceberg. É não ter medo de descobrir que obstáculos interiores e exteriores se interpõem, fazendo com que não vivamos a vida na sua potência afirmadora, porque, como diz a Suely, tem “experiências em que a vida se afirma com grande potência, e que nos fazem saborear o gosto de viver até aquelas impotencializadoras que nos fazem sentir vontade de morrer”.
O que é viver a vida na sua potência afirmadora? Não é como diz ela, viver experiência só prazerosa, mas também aceitar a dor do crescimento, pois para viver com intensidade é inevitável o sofrimento. Não se pode fritar os ovos sem quebrá-los.
É preciso, no entanto esclarecer que a impotência não tem a ver com dor e sofrimento: também a experiência da dor é de afirmação e de potencialização quando nos abrimos para recebê-la. Mas nem sempre isso é possível: quando a dor passa de certo limiar de suportabilidade pode gerar a impressão de que ela é fatal, de que nunca mais a vida voltará a vicejar em nossa existência, de que nunca mais voltaremos a sentir o gosto de viver, e esta impressão pode como que esgotar nosso amor para a vida e até nos levar a pedir a morte como descanso. Quando isso acontece, às vezes a única condição possível para nos proteger dos dissabores da vida, é construir em nossa existência estratégias defensivas que nos colocam numa região imaginária onde ficamos supostamente salvo do confronto com a dor e a morte. Na verdade - diz ela - ficamos salvos apenas (o que é muito) dos rastros daquelas experiências que ultrapassaram um grau de violência, e com isto não corremos muito tanto risco de seus efeitos nefastos contaminarem todo o nosso gosto de viver. Porém, por outro lado, tais estratégias ao nos instalarem na ilusão de que estamos sendo potentes, quando, ao contrário, estamos numa espécie de vida enfraquecida, tiram nossa força de luta e de trabalho necessários para sair desta limitação, enfrentar a dor e com isso afirmar de fato a vida com mais potência. Fica como uma ferida que, embora relativamente isolada, não cicatriza. Em outras palavras, estas estratégias existenciais que construímos como defesa, por um lado, protegem nossa vida constituindo-se como uma ponte para a retomada de sua expansão, mas, por outro lado, a tolhem. São como remédios que cura e ao mesmo tempo produz efeitos colaterais para a saúde.( p.15).
Vejam as estratégias defensivas que as pessoas adotam hoje frente ao mal estar da sociedade contemporânea. As pessoas estão vivendo um tremendo desassossego, vivendo vazios insuportáveis. E o que elas estão buscando?
A Suely Rolnick, num artigo escrito no livro Cultura e Subjetividade (Editora Papirus), nos mostra o imenso mercado de ilusões criadas pelas pessoas. As drogas criadas pela indústria farmacológica (do Lexotan, Somalium, aos Prozacs da vida), os coquetéis de vitaminas miraculosas. As drogas oferecidas pelas TVs (que os canais a cabo se fazem multiplicar), pela publicidade, pelo cinema comercial e outras mídias mais. Os viciados nessa droga vivem dispostos a mitificar e consumir toda imagem que se apresenta de forma minimamente sedutora, na esperança de assegurar seu reconhecimento em alguma órbita do mercado.” (p.22).
Outra droga apontada para lidar com o mal estar é toda uma literatura de auto-ajuda, que lota cada vez mais as prateleiras das livrarias, ensinando a exorcizar os abalos das figuras em vigências. Essa categoria inclui a literatura esotérica, o boom evangélico (vide os pregadores das Assembléias de Deus, os Marcelos Rossis da vida) e as terapias que prometem eliminar o desassossego.”
Depois tem todas as drogas oferecidas pelas tecnologias diet ligth, com suas promessas de purificação orgânica.
Vejam também as síndromes de pânicos. Ela acontece quando a desestabilização atual é levada a tal ponto de exacerbação que se ultrapassa um limiar de suportabilidade. Essa experiência traz ameaça imaginária de descontrole das forças, que parecem prestes a precipitar-se em qualquer direção, promovendo um caos psíquico, moral, social e, antes de tudo, orgânico.
Diz a Suely, na conclusão desse artigo: fruir da atualidade depende de as subjetividades enfrentarem os vazios de sentido provocado pelas dissoluções das figuras em que se reconhecem a cada momento. Só assim poderão investir a rica densidade de universos que as povoam, de modo a pensar o impensável e inventar as possibilidades da vida.”(p.24.).

E NÓS... ?

          O que isso tem a ver conosco? Lembram-se, o nosso primeiro texto de sociologia tinha como título um texto do Marshall Berman chamado "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Ouvi alguns comentários. Algumas de vocês já falaram sobre isso. Lembro de uma pessoa dizendo que o curso lhe abriu muitas janelas, demonstrando que foi afetada não só intelectualmente pelo que estudou. De certa forma - disse  - mudou um pouco a minha vida. O que isso quer dizer? -  fiquei me perguntando. Mudou a vida ou a forma de percebê-la? Mas, será que quando a gente percebe a forma de perceber as coisas a vida também não muda? Podemos olhar para uma pintura e não nos sensibilizar, ficarmos indiferentes. Mas,  se nos deixarmos afetar por aquilo que estamos vendo, vamos perceber que olhamos para esse quadro com outro olhar, com outra sensibilidade, com outra curiosidade, como a menina que descobriu que da semente da banana nasce a bananeira.
 Todo os que estão aqui nesta sala tem uma história e olham o mundo de forma diferente.. Todos podem afirmar ou não as potências afirmadoras da vida. Elas são movidas pelos invisíveis (mesmo neguemos que ele existe), pelo que poderíamos chamar de inconsciente. Por que estão fazendo esse curso? O que os motivou? O que esperam de tudo isso aqui e da vida de uma maneira em geral?
Ainda a Suely Rolnick quem nos diz:
A primeira linha, linha dos afetos, é como podemos nos dar conta do invisível e do inconsciente. Ela faz um traçado contínuo e ilimitado, que emerge da atração e repulsa dos corpos, em seu poder de afetar e serem afetados. (...) Ela é um fluxo que nasce entre corpos: ora veloz, apressada, elétrica, ora lenta e lânguida, ora exuberante, viçosa, brilhante, ora cansada e esmaecida; ora desenvolta, enérgica, ora tímida e vacilante; ora fogosa, incandescente, ora apagada, fria; ora revolta, ora trepidante. Ela é incontrolável. Estanca-la, só fingindo... É que quando se está vivo não se pára de fazer encontros com outros corpos (não só humanos) e com corpos que se tornam outros. Isso implica novas atrações e repulsões; afetos que não conseguem passar em nossa forma de expressão atual, aquela do território em que até então não reconhecíamos. (p. 47).
Tem muita gente que quer segurar essa força, estancar a vida, com medo de pirar Até que as coisas vão mudando, pequenas mudanças invisíveis, “rupturas que ocorrem imperceptivelmente”.  De repente, é como se nada tivesse mudado e, no entanto, tudo mudou.
Outro aspecto : “o inconsciente é ilimitado e sempre ambíguo.
O último aspecto é sua face finita, visível e consciente.
É isso que ela chamou de “corpo afetivo”, “corpo vibrátil
Estas marcas reverberam, e esta sua vibração em nosso corpo afetivo nos convoca e gera um movimento mobilizado por uma necessidade de criação de um novo território existencial que a incorpore, ao qual corresponderá uma nova cartografia. A evolução destes movimentos se faz pela ressonância destas marcas em outros ambientes que vamos encontrando ao longo de nossas vidas e os quais nos atraem exatamente por serem oportunidade de reatualização. Podemos simplificar e dizer assim :
O significado de cada momento vivido pelas Andréa, pela Nayara, pela Taynah, pela Neuza, pela Hercilane, por todas da sala que compõem um percurso,  cujas  marcas são deixadas pelos momentos vividos. Marcas dos afetos e das composições que têm a força de nos colocar em movimento de criação e nos deslocar. Ou seja, as marcas que impulsionam o movimento vital. E estas não são melhores nem piores do que as marcas de outras existências, mas, apenas, singulares.
A trama de nossa existência ocorre em dois planos: a linha de trajetória que se delineia segundo uma seqüência cronológica de fatos (o ano em que nascemos, os tempos de infância, adolescência, juventude, idade adulta, velhice) e as linhas dos movimentos, que se delineiam segundo outro tempo; o tempo dos afetos (lembrem-se dos filmes que vimos:) A cada ponto da trajetória em que nós detivermos, tomará corpo uma espécie de bloco de movimentos, podendo inclusive ir se compondo com outros movimentos desencadeados por outras marcas. As marcas dos tempos de escola, as professoras e professores que todos nós tivemos, o tempo histórico em que vivi esse período, as viagens e mudanças, as mortes de parentes, as paixões amorosas, casamentos e tantos outros acontecimentos da vida. Também o nosso tempo interior: como os acontecimentos foram vividos e percebidos por mim, com que intensidade foram vividos, as marcas que eles deixaram impressas em meu corpo, na minha subjetividade, em todo o meu ser.
O que é importante é não deixarmos essa força vital desaparecer de nossas vidas, pois é ela que nos fazer desejar e não nos tornar escravos modernos (como vimos no filme), mas sermos seres pulsantes, capazes de sentir a potência de viver, pois o escravo está encouraçado, temeroso de correr o risco de se aventurar no desconhecido. Amem, dêem vexames, ousem dizer – sem medo – o que sentem, o que pensam; enfrentem os vazios de sentido e não procurem formas milagrosas de salvação, pois a melhor salvação é enfrentar os seus demônios com coragem e determinação. Não esqueçam que temos só uma vida e ela é muito curta, mesmo quando ela nos parece longa. Não busquem o saber por uma mera convenção, pois assim não vão ficar curiosas em saber  que  a  banana tem semente, que ela nasce  da semente.



                                                                   Manaus, Outubro de 2011



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