quinta-feira, 16 de agosto de 2012

PRAÇA DA SÉ COMO ESPAÇO DE PROTESTO





Roldão Arruda, jornalista, na época trabalhava no jornal O Estado de São Paulo e fez várias matérias sobre a Praça da Sé, especialmente sob a repressão policial contra os meninos e meninas de rua no centro da Cidade de São Paulo.


Não sou um espectador tão privilegiado com o Fúlvio Abramo dos acontecimentos da Praça da Sé. Estou aqui mais na condição de repórter que recentemente andou fazendo uma série de reportagens sobre a Praça da Sé. Gostaria, no entanto, de também falar de minhas impressões sobre essa praça, antes de chegar às histórias das reportagens.
Estou em São Paulo desde 1978. Sou um paranaense que veio para cá trabalhar em um jornal chamado Movimento. A cidade de onde vim não é pequena, mas de porte médio. São Paulo, no entanto, me assustava terrivelmente logo que cheguei aqui. O máximo que eu me permitia era andar do jornal até a minha casa - umas cinco quadras.
Um dia me aventurei e fui até a Rua da Consolação, mais exatamente no Cine-Belas Artes. Estava comemorando a minha vitória por tido a coragem de ter ido até ali, quando vi um atropelamento terrível. O primeiro choque.
Lembro-me que no fim da tarde as pessoas saiam e uma parte se concentrou nas escadarias da Igreja da Sé gritando slogans: “A Praça é do povo!”. Em seguida o comandante da tropa militar jogou os policiais em cima do pessoal que estava nas escadarias, e eu estava lá, correndo. Foi quando conheci o gás lacrimogêneo e pude ter a sensação terrível de correr da polícia. Com essa correria perdi o medo, me perdi na liberdade. Já estava dominando a cidade. Essa experiência foi na Praça da Sé.
Foi nos meses seguintes que voltei a apreciar outros acontecimentos. Aliás, uma das memórias que eu tenho da Praça da Sé é que ela tem sido muito disputada entre policiais e populares.
Em 1979 uma greve dos bancários começou com um piquetezinho na frente de um banco e empolgou um estranho exército de officys boys e pessoas que andam normalmente pelo centro da cidade. Esse exército de mensageiro, contínuos e pessoas que passavam por ali começaram um quebra-quebra que durou praticamente uma tarde inteira. Uma guerra contra cassetetes que foi até o fim do dia. Parece que o povo e aqueles meninos se cansaram e foram embora às dezoito horas. No dia seguinte a Praça da Sé amanhece ocupada, assim como o Largo de São Francisco, São Bento e qualquer lugar que pudesse servir de ponto de reunião.
Em abril de 1983, no Largo 13, começou uma concentração de pessoas desempregadas. Foi outra passeata que terminou num grande quebra-quebra, saques que veio se estender pelo centro da cidade. Duraram quase três dias esses quebra-quebras e saques pelas ruas da cidade. No quarto dia havia 200 policiais na Praça da Sé, que ficaram brigando com um grupo de officys boys. A Praça da Sé ficou ocupada durante quatro dias.
É bom lembrar que, naquela época, os dados oficiais indicavam 400 mil pessoas desempregadas na região de São Paulo. E havia um dado assustador em termos de inflação: naquele mês de 1983 chegou a 10%. Era uma coisa só superada nos últimos quarenta e cinqüenta anos. A mesma inflação que serviu de pretexto para a derrubada de Jango, quando ela atingiu 11%. Foi um ano, portanto, de grandes agitações na cidade de São Paulo. A Praça da Sé, toda vez que os militares achavam que era necessário, era ocupada pela polícia porque era um local de muita aglomeração.


A Praça da Sé também me recorda a Campanha das Diretas-Já, com bem lembrou o Fúlvio. Esse comício de janeiro de 1984, onde compareceu mais de cem mil pessoas foi um marco do fim da ditadura. Um fato curioso dessa manifestação - como de outras - era a preocupação dos políticos e jornalistas determinarem quantas pessoas havia naquele comício. O jornal O Estado de São Paulo contratou um helicóptero para fazer a medição mais precisa. O jornal Movimento passou uma tarde lá, desenhando um metro quadrado no chão. Colocavam as pessoas nesse quadrado e depois analisavam quantas pessoas cabiam dentro de um metro quadrado, para depois inferir o número global.
A EMURB (Empresa Municipal de Urbanismo) também se preocupou com os números e saiu com uma medida dizendo que em um metro quadrado cabem quatro pessoas. Chegaram à conclusão que lá cabem, no máximo, 180 mil pessoas. No dia seguinte houve outra manifestação que reuniu mais de 1 milhão de pessoas, segundo os jornais da época, no Vale do Anhangabaú. Começou com uma passeata no Largo da Sé e pelo centro de São Paulo. No dia 25 de abril, na votação das diretas, havia um placar na Praça da Sé. No dia seguinte houve tumultos na Praça num clima de descontentamento e revolta pela derrota. É interessante notar que alguns dias antes do golpe houve uma pesquisa em São Paulo que indicava que 87% da população era à favor das diretas já.Podemos então imaginar a tristeza, a raiva que campeou pela cidade naquele 26 de agosto de 1984.
Tem outros fatos. Mas o importante é mostrar que a Praça da Sé tem sido sempre disputada e ocupada. Ora por multidões politizadas, com seus comícios, ora por meninos e meninas abandonadas, ora por camelôs, ora pela polícia. No tempo do Jânio Quadros o grande confronto que havia era entre os fiscais deles e os camelôs. O Jânio iniciava um rapa, chegava lá e tirava os camelôs. Esse era a briga.
Aliás, eu gostaria de sugerir à Administração Regional da Sé a organização na Praça ou no Metrô uma grande exposição de fotos contando essa história da Praça da Sé.
 É fantástica essa história, porque falta contar para a população paulista o que foi essa Praça. É essa história que consolida a nossa identidade. Não a história que se escreve nas fachadas dos prédios, no piso da Praça. Aliás, andando pelo centro da cidade percebe-se o acinte dos comerciantes que têm a mania de cobrirem as fachadas dos prédios com placas de alumínio. Deveriam existir projetos para recuperar o centro da cidade, como foi feito em Curitiba.  São Paulo é uma cidade que recebeu nas últimas décadas milhões de migrantes nordestinos ou paranaenses como eu que precisam ter mais identificação com a cidade.
Vou dar um exemplo do que estou querendo dizer com essa questão da identidade. Nos livros de memória do Pedro Nava ele tem um prazer enorme com a questão da comida. Ele passa páginas e páginas descrevendo grandes comilanças, hábitos e costumes alimentares das três regiões do Brasil por onde passou. E eu que tinha certa vergonha de misturar muitas vezes macarrão com feijão, como muitos brasileiros fazem.  Lendo o livro, percebi melhor que a mistura existe em diversas culturas. Passei a me sentir melhor, mais identificado com isso. Essa identidade dos cidadãos com a cidade onde vive é fundamental. A história da Praça da Sé precisa ser contada. As pessoas não podem pensar que a Praça é uma coisa dada, mas uma coisa que conquistamos e que temos direito a ela.
Existem muitos olhares sobre a Praça da Sé. Cada vez que uma pessoa vem aqui e fala eu percebo que existem muitos olhares, muito mais que eu imagino. No imaginário de boa parte dos meninos e meninos de rua com quem eu conversei para fazer as reportagens, estar na Praça, dormir na Praça, assaltar na Praça é um tipo de estágio superior na vida de quem vive na rua.
O espaço da Praça é tido como uma terra para homens e mulheres fortes. Não é para qualquer um a Praça da Sé. O mais curioso é que é uma fama tão forte que só vai para a Praça da Sé quem tem colhão para enfrentar tudo isso. O mesmo podemos dizer com relação a outros regiões metropolitanas. Alguns meninos que estão na Praça não são nem de São Paulo; vieram de lugares distantes, como do Rio de Janeiro, Vitória e têm essa coisa em relação a Praça da Sé.
Outra visão da Praça da Sé é de que ela é um lugar bom para trabalhar. Trabalhar no sentido que eles entendem. Ou seja, de sobreviver, mesmo que seja fazendo um biscate, assaltando. Afinal passa diariamente por aquele espaço a cifra surpreendente de três milhões de pessoas. Sempre no meio da multidão há um cidadão descuidado, fácil de ser assaltado. Também é muito fácil fugir no meio da Praça.
Saindo um pouco dos meninos e das meninas, eu acho que outra visão habita o imaginário dos adultos. A Praça da Sé é o lugar onde você pode ver muitas coisas sem ser visto, sem ser reconhecido. É lógico que é um território tão anônimo que também se podem cometer ações consideradas escusas. Ao fazer uma pesquisa sobre prostituição masculino, um antropólogo da Unicamp constatou que o Metrô facilitou a vinda para o centro da cidade de um grupo grande de homossexuais que normalmente vem para o centro; mostrou uma outra face que não podem mostrar no local onde moram. Ele conta, inclusive, que em alguns lugares houve uma certa resistência a essa invasão. O reflexo disso, segundo o antropólogo, aparece nos banheiros públicos.
A Praça da Sé, como eu já disse, tem o poder de refletir de maneira mais cristalina tudo o que acontece em seu redor. No passado, relembrando esse episódio que contei sobre o Movimento do Custo de Vida, a praça refletiu determinada conjuntura, onde a Igreja funcionava como uma das instituições centralizadoras. Nos episódios atuais, envolvendo crianças abandonadas, reflete, como já foi dito, a face de um país que ficou mais miserável, mas que experimenta um pouco mais o exercício da cidadania.
Quando eu estive na Praça fazendo reportagens, via um grupo flutuante de uns 300 meninos e meninas que giravam, passavam e se fixavam ali diariamente. Existe dados da Polícia Militar passados para mim na época em que estava o Capitão Lúcio indicando que 3 milhões de pessoas passavam por ali diariamente. São pessoas que passam e têm medo desses meninos com certa razão. Também tinha lá agentes pastorais da Igreja Católica, da Igreja Batista e, de vez em quando, representantes da OAB, da Secretaria do Bem Estar do Menor e outras entidades. Todo um grupo de pessoas dispostas a defender os direitos humanos desses menores. Havia a imprensa preocupada em refletir o terror do coração da cidade de São Paulo. A Praça da Sé tornou-se, na verdade ponto de confronto dessas forças e, mais uma vez, o espelho do que ocorre em todo o país. A solução de vigiar militarmente a Praça encontrada pela Polícia Militar e tirar os menores de lá pode ter dado um pouco mais de segurança para as pessoas que passam por lá. Mas isso, é evidente, não resolveu o problema do abandono dos menores e sua exploração por quadrilhas de adultos que continuam a atuar ali. Isso reflete, de certa maneira, o que acontece em todo o país. Reflete a postura desse governo que quer mudar o país através de uma emenda na Constituição que nem chegou a ser experimentada plenamente. Ou seja, não se garantiu os direitos dos meninos, mas se explora isso como se fosse a solução, jogando o problema para baixo do tapete.
Houve um impasse, mas não se resolveu o problema dos menores. Eu vi o terror que isso provoca. Eu vi meninos assaltando, assim como eu vi catando lixo na frente do Mc Donald, um dos lixos freqüentados por eles. E senti de perto que aquela Praça não é lugar para meninos. Esse é um princípio básico da questão. Ali tem riscos demais. Só existe o aqui e o agora. Mas, se não é o lugar deles, o que se vai fazer com eles? Devolvê-los para as famílias de onde muitos fugiram porque passam fome, são espancados ou foram expulsos? E a gente volta para a antiga pergunta, se perguntando o porquê eles estão lá, por que eles foram jogados ali. Estou percebendo que o governo brasileiro está muitíssimo interessado em mostrar o brutal  problema dos menores.
Eu tenho a impressão que é uma brutal pressão externa. Cada vez que o Collor - o nosso Indiana Jones - vai ao exterior com uma postura de quem quer colocar o país no primeiro mundo, alguém na Europa, nos Estados Unidos, virá e pergunta : “E aqueles meninos que vocês estão matando ? “ Então, o governo, por pressão, tem que falar dos menores. Cria-se o Ministério da Criança, mas não se investiga a fundo a causa dessas coisas todas. Não se associa causa e efeito. Não se associa isso com o arrocho salarial, com a miséria. É muito perigoso ficar falando de tudo isso porque se pode correr o risco de se chegar à conclusão de que a única maneira é esconder esses menores, como se fez na Praça até agora. Ou tirá-los de lá e levá-los para algum lugar que ninguém os veja.
Para encerrar, eu gostaria de falar de outro angulo sobre a Praça da Sé. Na sessão anterior desse seminário se falou muito sobre fatos ocorridos na Praça, situações, narrados algumas vezes com certa nostalgia. E se reconheceu diferenças mais visíveis entre aquele passado e o presente. Antes as pessoas ficavam na Praça porque se reconheciam na Praça. Hoje as pessoas passam pela Praça, fogem da Praça. Para mim isso é básico. Gostaria de levantar algumas questões sobre isso que ocorre.
No ano de 1978, quando foi inaugurada a nova Praça , mais exatamente em janeiro deste ano, a direção do Metrô colocou uma caixinha de sugestões para que as pessoas opinassem. A maioria das pessoas reclamou contra a falta de verde na Praça. Isso em 1978. O predomínio do concreto, a falta de árvores, a falta de sombra eram problemas visíveis já naquela época. Engraçado que de 1978 para cá essa situação permanece.
Outra observação é que a Praça não oferece uma sensação de integração. Toda vez que passeio pela Praça da Sé parece que estou ou sob um monstro desconjuntado que tem pedaços, ou então que são várias praças desconexas. Quando estou no fundo eu me identifico com a parte da Catedral, quando eu estou na parte da frente da Catedral eu não me identifico com o fundo.
Outra coisa sugerida pela pesquisa naquele época  era a instalação de bebedouros, ou torneiras com água limpa para as pessoas. Depois de todos esses anos não tem um bebedouro. Foi sugerido, também, que os banheiros ficassem, abertos vinte e quatro horas  (fecham às 10 da noite ). Também se pedia mais cestos de lixo e fonte de água, assim como música nos saguões do Metrô. Tudo isso foi ignorado.
Por que a Administração Regional não faz outra pesquisa ?  Existem muitas visões sobre o uso da Praça da Sé. O divórcio mais notado é o divórcio da vontade de quem administra, de quem constrói e de quem de fato usa a Praça da Sé. Na minha opinião, por exemplo, a direção do Metrô não entendeu que é uma estação do Metrô dentro de uma Praça. Dá a impressão que eles pensam que aquilo é uma Praça dentro da estação do metrô. A força com que eles se instalaram ali, a vontade que sua guarda tem de sair correndo e batendo atrás dos meninos com aqueles cassetetes novos é surpreendentemente grande. Eles não entenderam que são eles que estão dentro da Praça e por isso acham que tem uma força muito grande sob aquele espaço. Isso ajudou a descaracterizar a Praça da Sé.
Não sei se uma cidade como São Paulo vai conseguir ter pessoas tranqüilas e agradáveis. Acho, no entanto, que se devem buscar alternativas e esse seminário é fantástico nesse sentido, porque queremos ter uma maior participação no destino do espaço onde vivemos


Texto de um Telex enviado para o Administrador Regional da Sé pela Rádio Eldorado, 20.05.91, 7:25 h.:


“Um dos poucos representantes do antigo centro de São Paulo não resiste às mudanças bruscas, e se retira para outra região.
Depois de cem anos, o quinto Tabelionato de Notas, o Tabelião França, deixa no fim deste mês a Praça da Sé, onde ocupa o prédio n.158. Ele é um dos últimos ocupantes tradicionais que desiste do centro da cidade, em virtude da violência de deterioração dos últimos anos.
O Tabelião José Roberto França explica que decidiu abandonar a Sé de uma vez, pois os clientes tradicionais passaram a se recusar a ir ao escritório, alegando falta de segurança, presença constante de trombadinhas e dificuldades para andar a pé, com as calçadas tomadas por marreteiros, apenas contínuos e mensageiros vão ao Tabelionato ultimamente, confessa o tabelião José França.
O mesmo falar por telefone fica difícil, pois a Sé foi tomada por tocadores de Berimbau e pregadores protestantes, que usam amplificadores para veicular mensagens. A mudança do Tabelião contradiz o otimismo dos urbanistas dos anos 80, que apostaram tudo na transformação do centro de São Paulo numa área valorizada pelo Metrô e destinado ao comércio de coisas raras. É que nos países desenvolvidos a tendência é que no centro se concentrem as lojas que vendem o que se compra todo o dia e precisam da clientela de toda a cidade para sobreviver, é o caso de quem vende muletas e cadeiras de roda, essenciais para a produção de perfumes ou mesmo livrarias especializadas, e aí se enquadra a prestação de serviços do Tabelião que faz escrituras e testamentos, mas em São Paulo da previsão não deu certo.”




















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