terça-feira, 14 de agosto de 2012

OS ESTABELECIDOS E OS HAITIANOS EM MANAUS


                                                                             
                                                                                                                                                                                                           Benedito Carvalho Filho

Um acontecimento recente vem sendo objeto de comentários na sociedade amazonense, como tem noticiado a imprensa local: a chegada dos haitianos para o Amazonas, que vieram em missão de paz, fugindo da miséria e da violência.
 A reação não tardou. O governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), filho de um imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, sugeriu que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Uma colunista social do local foi mais longe e atacou os haitianos, chamando-os de “abusados”.  Como observou o jornalista Ribamar Bessa Freire na coluna que escreve para um jornal local, o texto da jornalista foi boçal e preconceituoso. Ela reclama que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”. Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?
No domingo, dia 29 de janeiro, o texto do jornalista amazonense, que reside no Rio de Janeiro, deu o que falar na cidade. Diversos comentários apareceram na rede virtual, alguns tecendo críticas à vinda dos haitianos, outros apoiando o direito desse novo imigrante se estabelecer na cidade. A polêmica continua.
Como sociólogo, os ossos do ofício me fez desconfiar de certas idéias que apareceram nos comentários, quer na internet, quer nas conversas informais que tenho ouvido em vários cantos, inclusive naqueles onde circulam pessoas mais informadas. Vejamos algumas:
 No imaginário de muita gente é possível perceber algumas ambigüidades muito interessantes de observar. Para alguns a cidade de Manaus aparece como uma ilha de prosperidade, onde o povo está empregado, morando bem, com todos os serviços disponíveis pelo Estado. A modernidade, o progresso está associado à chegada da Zona Franca, alimentada por uma propaganda maciça feita pelos governantes e assimilada pelos amazonenses e os forasteiros que por aqui chegam.
Ela é tão forte que os empresários gostariam de perenizar o enclave, como se o capitalismo trabalhasse conforme os seus desejos; como se tivessem poder para determinar a lógica do capital cada vez mais financeirizado e volúvel.  
 Assim, os haitianos teriam vindo para Manaus abalar esse sossego nessa ilha de prosperidade. Ah, não só esse povo caribenho que lutou bravamente pela sua independência (o Haiti foi o primeiro estado latino-americano independente), mas os intrusos paraenses que hoje constituem uma parcela significativa da população de Manaus e são objeto de gracejos preconceituosos, principalmente os mais pobres.
A cidade, portanto, tem os seus estabelecidos e os outsiders, conforme a denominação usada pelo sociólogo Norberto Elias no livro chamado “Os Estabelecidos e os ousides”, onde ele nos mostra como os da “comunidade” (os estabelecidos), lançando mão daquilo que Alfred Schutz chamou de fundo de conhecimento à mão (a sabedoria do senso comum), encaram os que vêm de fora (os estrangeiros, sempre vistos como os que vêm sujar o pedaço.
 Não era assim que os nazistas olhavam os judeus? Não foi em nome dos do pedaço que mataram milhões os não estabelecidos? Não é assim que vem sendo tratadas as populações pobres na periferia das grandes cidades brasileiras, conforme podemos perceber nos últimos acontecimentos, como a expulsão de moradores pobres de São José dos Campos, em São Paulo? O que tem sido os chamados processos de gentrificação, “revitalização do centro” senão a expulsão dos indesejados, os sujos do pedaço, os farrapos humanos, enfim os sem nada?
 Quem são esses negros intrusos que estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial, que não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada, como esbraveja a raivosa colunista local incomodada com a chegada dos novos estranhos?
Como se os estabelecidos, os proletários que se matam trabalhando nas fábricas da Zona Franca fossem trabalhadores conscientes de seus direitos, reivindicando melhores salários e se organizando sindicalmente.
Se a colunista social lesse o livro da psicóloga Rosangela Dutra de Moraes, da Universidade Federal do Amazonas, chamado Prazer e Sofrimento com automação, onde os trabalhadores e trabalhadoras expõem as suas condições de trabalho no Distrito Industrial de Manaus, veria que não somente os haitianos passam hora trabalhando sem cobrar nada, nem são os únicos caladinhos. Se a mesma colunista procurasse ser mais jornalista e se sujeitasse menos ao fundo de conhecimento à mão, certamente não emitira um comentário tão preconceituoso como esse, onde acaba jogando trabalhador contra trabalhador.  
Sua sábia sugestão está condensada nessa pergunta: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas? Ou seja, sem ouvi-los, sem compreender o que está ocorrendo, a solução é enxotar os haitianos, que além de pobres, não negros, dois ingredientes que não cola bem na imagem que essa senhora faz do pedaço (ou do pedaço que ela imagina).
O governador tem a mesma solução, indignado certamente com a permissão do governo federal em permitir a entrada dos haitianos no Brasil: que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo, assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Esse que, no passado, foi um outsiders, filho de um imigrante palestino, pelo menos não fez como o prefeito, esse estabelecido, que diante de uma moradora desesperada com a possível perda de sua moradia falou um pérola que ganhou destaque nacional e internacional: que morra, morra!Alguma semelhança com a chamada solução final nazista? A nossa classe dominante local, na sua boçalidade, surpreende. Às vezes parece surreal!
A questão dos haitianos está encoberta por um problema maior, além da xenofobia manifesta. Talvez o que não se quer discutir é a nossa realidade, ou seja, as várias Manaus que os detentores do poder, político, mediático local querem esconder. Os caribenhos que estão vindo para Manaus vão fazer parte (se o estabelecidos deixarem) da cultura local.
Uma cidade que possuí um dos piores IDH (Indice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, e uma imensa população excluída dos benefícios da modernidade não tem o direito de se ufanar afastando os pobres, sejam eles nacionais ou internacionais. Aqui temos vários Haitis não resolvidos, o que nos  faz recordar a pequena frase da música de Caetano: o Haiti é aqui. Só que queremos esconder esse mundo haitiano que temos dentro de nós. Foi com essa carga de preconceitos e em nome da pureza branca, de cristão civilizado, que foram dizimadas as populações indígenas, até hoje marcadas pelo preconceito por aqueles que se acham donos do pedaço. Quem ler os clássicos que estudaram a sociedade brasileira vão descobrir quais foram as populações mais exploradas de nossa história.
Temos nesse país uma classe dominante escravagista. A manifestação de seus proconceitos de vez em quando emerge não só naquilo que Freud chamava de atos falhos, mas diretamente através de gestos, comportamentos e falas, como da colunista social como do governador. A mentalidade escravagista não morreu, o conflito permanece, pois esse homem e mulher que parecem tão cordiais, no fundo, escondem um grande ódio do estranho, seja dos haitianos que estão chegando seja dos antigos estabelecidos, os índios, apeados de suas terras ao longo da história.
Bem vindos povo do Haiti e obrigado por terem iniciado a luta pela descolonização nessa imensa América Latina.  

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